A estagnação da atividade econômica, provocada pela pandemia de Covid-19, reforça a necessidade de atuação do Estado, especialmente em países marcados por desigualdades, como o Brasil. Sem a formulação de políticas públicas, a situação de excepcionalidade tende a agravar-se, ampliando a vulnerabilidade, sobretudo, dos grupos historicamente mais frágeis, como trabalhadores informais, a população negra e as mulheres.
De acordo com o professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Fernando Salgueiro Perobelli, a questão da vulnerabilidade econômica está diretamente relacionada à renda familiar ou renda individual, e se amplia quando considerados raça e gênero.
“Podemos afirmar que a vulnerabilidade econômica dos indivíduos de menor renda é maior neste momento, uma vez que sua capacidade de poupança é menor e para algumas classes de renda essa capacidade é inexistente. Em outras palavras, tais indivíduos, em sua imensa maioria, não tinham recursos poupados que poderiam ajudá-los a diminuir as perdas que estão ocorrendo por diminuição da atividade econômica.”
“Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2019, de forma geral, há uma diferença salarial de 45% entre trabalhadores brancos e negros” – Fernando Perobelli
Perobelli acrescenta que as desigualdades estão presentes na economia qualquer que seja o indicador analisado. “Para termos uma ideia, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2019, de forma geral, há uma diferença salarial de 45% entre trabalhadores brancos e negros. Nas pesquisas de gênero chega a ser maior para mulheres, e para mulheres negras maior ainda, chegando a 70% no mesmo cargo e na mesma função.”
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os 10% de brasileiros com menor rendimento, 75,2% são negros. Em termos de rendimento médio domiciliar per capita, na população preta ou parda, esse valor é de R$934,00.
“Entre as pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza extrema (classificada na pesquisa como renda de US$ 1,90 por dia), os negros também dominam: 8,8% das pessoas de cor ou raça preta ou parda tinham rendimentos inferiores a esse valor. As taxas de desocupação e subutilização também têm maiores índices entre pretos e pardos. Cerca de 2/3 dos desocupados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%) na força de trabalho em 2018 são de pessoas pretas ou pardas. Os negros também têm mais trabalhos informais. Entre os trabalhadores informais 47,3% são de cor ou raça preta ou parda”, aponta o pesquisador.
Políticas públicas
“Não há economia de mercado que traga equilíbrio e crescimento econômico num país com o grau de desigualdade social como o Brasil” – Fernando Perobelli
Perobelli ressalta que com as heterogeneidades de renda, de acesso à saúde e educação as políticas públicas são necessárias. “Não há economia de mercado que traga equilíbrio e crescimento econômico num país com o grau de desigualdade social como o Brasil. Nos últimos anos tivemos um ciclo de políticas públicas voltadas para a diminuição da pobreza, que se mostraram positivas. O retrato disso, foi a mudança na estrutura de consumo das classes C, D e E. Importante salientar que qualquer tipo de política deve ser reavaliado periodicamente”, pontua.
No período mais recente, o que vemos é uma diminuição da força desse tipo de política no Brasil. “A ‘solução’ está perpassando por uma política de mercado, onde as forças dele atuam para equalizar oferta e demanda, por exemplo. Mas, como dito, somente essa atuação não é suficiente num país com o grau de desigualdade da economia brasileira. E, o momento em que vivemos, de crise econômica local, regional, nacional e mundial, o que acontece com os mercados? Eles se paralisam. Temos, o que os economistas chamam de falhas de mercado. E, neste momento de crise, urge a necessidade de atuação do Estado, que é o ente capaz de minimizar os efeitos da crise”, adverte.
“Neste momento de crise, urge a necessidade de atuação do Estado, que é o ente capaz de minimizar os efeitos da crise” – Fernando Perobelli
De acordo com o pesquisador, há a necessidade de implementação de políticas de transferência de renda, créditos diferenciados para microempreendedor individual, micro e pequenas empresas, dentre outras.
“No caso brasileiro, tais políticas devem ter um caráter perene, dadas as características da nossa economia. E, neste momento de crise, o atraso em sua implementação ou a não implementação delas pode agravar ainda mais o poder de recuperação da economia. Assim sendo, o Estado, nesse caso, tem o papel de ‘aliviar’ a crise e não de impor ainda mais restrição de renda aos indivíduos, uma vez que isso deprime o consumo, que gera menor produção de bens, diminuindo os empregos, e levando a uma menor arrecadação de impostos. Portanto, políticas compensatórias por parte do Estado são essenciais em nosso modelo econômico.”
Ações afirmativas
Para o professor da Faculdade de Educação e diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, é fundamental também o investimento em ações afirmativas, com o objetivo de corrigir as desigualdades entre brancos e negros, provocadas pelo racismo que estrutura a sociedade brasileira.
“É justamente essa desigualdade sócio-racial e de gênero que coloca os mais pobres, que no Brasil se constituem basicamente pela população negra, entre a maioria das vítimas da Covid-19” – Julvan Oliveira
“Com as ações afirmativas é possível vislumbrar que um dia não teremos diferenças tão gritantes na distribuição de renda, no acesso ao mercado de trabalho, nas condições de moradia, na escolaridade, nas vítimas da violência e nas representações políticas nos diversos espaços de poder. É justamente essa desigualdade sócio-racial e de gênero que coloca os mais pobres, que no Brasil se constituem basicamente pela população negra, entre a maioria das vítimas da Covid-19, como de outras situações.”
Em outros termos, de acordo com o pesquisador, os dados evidenciam que a pandemia não afeta a todos da mesma forma. “São justamente os negros, especialmente as mulheres negras, as principais vítimas. Quando o IBGE aponta que tínhamos 727 mil trabalhadores domésticos, por exemplo, 92,4% destes são mulheres e, todos sabemos que as domésticas são basicamente mulheres negras, das quais, 73,2% não tinham registro em carteira, pelos dados de 2019. Como estão essas mulheres negras e outros pobres com a pandemia do novo coronavírus?”, questiona Oliveira.
A avaliação é compartilhada pela integrante do Fórum de Coletivas e Mulheres Feministas 8M de Juiz de Fora e mestranda em Serviço Social na UFJF, Lucimara Reis. “Falta de saneamento básico, emprego, direitos, acesso aos equipamentos básicos como os de saúde, educação e cidadania, que são obrigação do Estado, é algo que a população periférica convive diariamente. Como vivemos num país em que as relações sociais são racificadas e genereficadas, as mulheres e a população negra são as mais atingidas numa sociedade que segrega território, economia e bens simbólicos.”
“A população está percebendo o quanto um Estado minimamente comprometido em regular a relações econômicas e sociais é importante” – Lucimara Reis
Ainda segundo Lucimara Reis, a situação de excepcionalidade serve de alerta sobre a necessidade de comprometimento do Estado com a sociedade. “A população está percebendo o quanto um Estado minimamente comprometido em regular a relações econômicas e sociais é importante. O peso das contra-reformas trabalhistas e da previdência, da Emenda Constitucional 95, estão aparecendo. Também não há como deixar de falar no problema do racismo. Quando falamos na proximidade de implementação de um governo autoritário, precisamos lembrar que o AI-5 [Ato Institucional n°5] nunca deixou de existir nas favelas. Estão nos matando. Todos os dias famílias choram seus mortos.”
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