Uma população de milhares espalhada pelo país, mas ignorada pela contagem nacional de brasileiros do IBGE. Por vezes tratadas como parte da sujeira das cidades, as pessoas em situação de rua ganharam um olhar aprofundado por parte de pesquisadores do país. Cerca de dez anos de estudos foram reunidos no livro “Cidadão em situação de rua, dossiê Brasil – grandes cidades”, organizado pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Dmitri Cerboncini Fernandes e pelo cientista social Igor de Souza Rodrigues

O Brasil não possui dados unificados sobre o tamanho de sua população de rua – alguns indicam 40 mil pessoas, outros cem mil. “Ficamos reféns de censos locais, impedindo uma visão mais completa do fenômeno. Exatamente por isso apresentamos o diagnóstico qualitativo para pensar que questões vinculam o agrupamento no Brasil. A questão central não é exatamente quantos, mas que tipo de vida, rotina, dificuldade e estratégia coligam estes indivíduos enquanto agrupamento social”, define o pesquisador Igor de Souza Rodrigues sobre o objetivo da publicação.

O lançamento da obra acontece nesta quarta-feira, dia 6, às 19h por meio de live. O link para a transmissão ao vivo no “Hangout” será disponibilizado na página do Facebook do Centro de Estudos Sobre Cidadãos em Situação de Rua.

A pesquisa foi realizada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Vitória, Juiz de Fora, Fortaleza e João Pessoa. Os dados são apresentados por 16 pesquisadores em eixos centrais como identidade, saúde, educação, trabalho, questões de gênero e mobilidade urbana. “Buscamos fazer um trabalho com artigos de várias áreas, mas que tem o mesmo objeto como foco. Isso mostra que um mesmo tema pode ser visto por diferentes prismas, sendo um estudo muito caro no nosso país”, avalia o professor Dmitri Fernandes. 

O diagnóstico desconstrói alguns mitos sobre esses cidadãos. Entre eles, a ideia de que a rua é uma escolha. “Os entrevistados demonstraram querer sair desta situação. A aparente ‘escolha’ deve ser interpretada a partir das possibilidades que o indivíduo tem, do que lhe está posto”, apresenta Igor Rodrigues. Os abrigos ou albergues são um exemplo das condições oferecidas. “De modo geral, é um modelo impositivo, não contempla as reais necessidades dessa população, não existe um albergue para casais ou local para guardar o carrinho, ou seja, o albergue destoa da prática e das dificuldades enfrentadas por esta população.”

Políticas públicas mantém a marginalidade

De acordo com o doutor em Ciências Sociais Igor Rodrigues, não houve redução no quadro quantitativo nem melhora qualitativa significativa na vida destes indivíduos nas últimas décadas. Ele aponta que há, inclusive, uma degradação das relações sociais na população em situação de rua no Brasil. Em muitas cidades, Rodrigues diz que esse grupo frequentemente é usado como marketing político, para maquiar e tornar oculto conflitos sociais mais profundos. 

Cidadãos em situação de rua têm sido confundidos por políticas públicas recentes com sujeira (…), coisas a serem lavadas e que enfeiam as cidades, enquanto a discussão deveria ser outra, justamente o porquê da condição

“Nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, os cidadãos em situação de rua têm sido confundidos por políticas públicas recentes com sujeira, tratados como poluentes, lixo, coisas a serem lavadas e que enfeiam as cidades, enquanto a discussão deveria ser outra, justamente o porquê da condição e a forma como a sociedade configura quadros hierárquicos em torno de uma quantidade de cidadania a partir das assimetrias e distribuição de capitais simbólicos e materiais.”

No estudo, uma das questões centrais dessa percepção míope está relacionada ao trabalho ou a falta dele como pensa a maioria. “Quando fomos a campo, constatamos o contrário disso. Na verdade, esses cidadãos sustentam todo ramo da reciclagem, por exemplo. A lucratividade de grandes depósitos de sucata e multinacionais que se orgulham da marca ‘sustentabilidade’, mas não empregam sequer um indivíduo na ponta da coleta.” Outras atividades, segundo ele, também foram observadas como a de chapa, para carga e descarga em comércios e feiras. 

Uma forma de reconhecimento efetiva desse trabalho seria possível com políticas, de formalização dos vínculos jurídicos-trabalhistas, com subsídios às cooperativas e infraestrutura. “Os cidadãos em situação de rua são um dos grupos mais necessitados, se não o mais, e que os auxílios não chegam.”