O distanciamento social adotado para frear a transmissão do novo coronavírus tem provocado intensos debates no Brasil nas últimas semanas, tendo como pano de fundo um suposto conflito entre saúde e economia.

Para os defensores do isolamento horizontal – caracterizado por uma restrição maior na circulação de pessoas, com fechamento de todas as atividades não essenciais – o método é o mais eficaz no combate à covid-19, sendo este o tipo de distanciamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Já os filiados ao isolamento vertical – em que apenas os grupos considerados de risco são isolados – argumentam que a atividade econômica do país e a geração de renda não podem parar, e que se as empresas continuarem com as portas fechadas estaríamos diante de uma recessão, em que os brasileiros morreriam não pelo vírus, mas pela falta de recursos financeiros.

Olhando assim, parece uma faca de dois gumes em que ou sangramos o bolso ou sacrificamos a saúde da população. Mas para a economista e professora do campus da Universidade Federal de Juiz de Fora em Governador Valadares (UFJF-GV), Amanda Ferrari Uceli, é possível, sim, manter o isolamento e, ao mesmo tempo, garantir a subsistência dos brasileiros. Na entrevista abaixo, a docente fala, entre outras coisas, sobre as medidas econômicas adequadas para momentos de crise e sobre o papel do Estado na economia.

Como conjugar economia e bem-estar da população? Quais medidas devem ser adotadas para proteger a atividade econômica do país sem arrefecer o isolamento social?
Bom, economia é, entre outras coisas, bem-estar social. Economia, por definição, é o gerenciamento dos recursos escassos. E esse gerenciamento deve compreender a distribuição dos recursos sem precarizar a vida de ninguém e preservando a fonte dos recursos, que é a natureza. Do ponto de vista da economia, os agentes, que somos nós, são essenciais para o funcionamento das coisas. É claro que o sistema econômico, que é formado por empresas, Estado, pessoas e fontes de recursos, sofrerá nessa pandemia. E a razão é um tanto simples: ela atinge as pessoas, e as pessoas são o motor da economia. Sim, os agentes fundamentais do sistema econômico são as pessoas. Só isso já seria suficiente para que a preservação da vida fosse o principal foco em qualquer instrumento econômico, mas vamos pensar o peso do isolamento sobre a geração de renda, que tanto tem sido evocada pelos que defendem o arrefecimento do isolamento.

“Os agentes fundamentais do sistema econômico são as pessoas. Só isso já seria suficiente para que a preservação da vida fosse o principal foco em qualquer instrumento econômico.”

Entre os agentes que formam a economia do país está o Estado (na forma de governo e seus entes). O Estado tem o poder de impedir que a pandemia seja responsável por uma perda generalizada de bem-estar. Isso porque o Estado detém a maior fonte de recursos financeiro no sistema econômico. O que isso significa? Significa que o governo federal (em soma com os governos estaduais e municipais) são os agentes mais ricos em uma economia. Por essa razão, os indivíduos devem ser poupados pelo governo via – entre outras coisas – por transferência direta de renda. Por essa razão, os países que enfrentam a pandemia há mais tempo que o Brasil têm vivenciado políticas públicas agressivas dos seus gestores: estatização do sistema de saúde, proibição de demissões em meio à quarentena, suspensão de cobranças que oneram pessoas e firmas. Mas uma dos mecanismos centrais é o que garante uma renda mínima para os indivíduos que, ou não têm renda fixa, ou estão empregados mas seus empregadores não são capazes de seguir garantindo os salários com a interrupção das atividades.

“O Estado tem o poder de impedir que a pandemia seja responsável por uma perda generalizada de bem-estar.”

Em outros episódios, o governo brasileiro adotou medidas mais drásticas para conter crises, como a compra de sacas de café e posterior destruição do produto, em 1929. Elas surtiram efeito? Qual deve ser o papel do Estado na agenda econômica em tempos de crise?
Essas medidas tem efeito de curto prazo, que é o que estamos enfrentando nesse momento: uma necessidade de solução imediata! Mas é evidente que, junto com políticas de contenção de perdas no curto prazo, é preciso propor políticas de longo prazo. Ou seja, como vamos agir depois? O ministro da Economia já falou sobre isso em uma videoconferência com governadores. Ele, prudentemente, ressalta que no curto prazo precisamos priorizar vidas e pensar em soluções de longo prazo.

“No momento, precisamos que o Estado assuma a sustentação do país enquanto sociedade e economia.”

As soluções de longo prazo não são simples, definitivamente. Talvez sejam necessários alguns anos para voltarmos aos que éramos em 2019, por exemplo. Mas no momento, precisamos que o Estado assuma a sustentação do país enquanto sociedade e economia.

É o momento de pensar em crescimento econômico e de se preocupar com o aumento da dívida pública?
Definitivamente, o crescimento econômico não é sequer possível nesse cenário. É evidente que devemos manter o que é essencial ao funcionamento, e isso inclui vários setores da economia. Mas se o foco não for a manutenção da vida, teremos não só um caos na saúde, como um caos econômico, para o fim do período. Se hoje já vivemos uma escassez de recursos para atendimento dos que estão doentes, uma expansão desordenada da contaminação levará ao colapso do sistema de saúde. Isso leva ao direcionamento sem controle e sem preparo dos recursos para a saúde e, por consequência, uma demanda crescente de ação nos demais setores.

“Se o foco não for a manutenção da vida, teremos não só um caos na saúde, como um caos econômico.”

Hoje, é possível se antecipar em alguma medida. Sabemos que prevenir é melhor que remediar, seja no sistema de saúde, seja na economia. A dívida pública é frequentemente utilizada como mecanismo de controle da economia, e esse é mais um momento da história em que ela deve ser acionada. O Estado é capaz de se recompor, as pessoas não serão sem auxílio. E, novamente, as pessoas são os principais agentes que fazem a economia funcionar.

Fazendo um exercício de previsão, como você enxerga a economia do Brasil após esse período de pandemia?
Não há como prever, seria leviano estabelecer um cenário. Inclusive, são as decisões políticas e individuais de hoje que definirão o que ocorrerá no futuro. O que parece evidente, olhando para os países europeus que já enfrentam a pandemia há mais tempo, é que se não preservarmos as vidas, teremos um quadro de drama social, político e econômico. A economia brasileira já viveu desaceleração e grande recessão em períodos anteriores, mas se recuperou e vai se recuperar, disso não tenho dúvidas. O que se deve propor são mecanismos de reversão da queda após a superação da pandemia.