Em meio à pandemia da Covid-19 e aos esforços para evitar o aumento no número de casos da doença em diversos países do mundo, as autoridades sanitárias orientam a população a reforçar os hábitos de higiene e a manter o distanciamento social. Mas como promover tais ações em países marcados pelas desigualdades, nos quais boa parte da população não tem acesso, por exemplo, ao saneamento básico, à água potável, à habitação adequada?
Esses são alguns dos questionamentos de inúmeros pesquisadores de universidades públicas brasileiras que trabalham com as temáticas dos grupos populacionais mais vulneráveis, como os negros e pobres, conforme aponta o professor da Faculdade de Educação e diretor de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Julvan Moreira de Oliveira.
O pesquisador, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), também salienta como a pandemia tem exposto as fragilidades do modelo neoliberal, na medida em que as intervenções do Estado são fundamentais para a contenção do novo coronavírus.
Sobre essas questões, Oliveira conversou com o Portal da UFJF. Confira o conteúdo na íntegra:
Portal da UFJF – Comente, por favor, sobre como situações de excepcionalidade, a exemplo da que vivemos hoje com a pandemia da Covid-19, colocam em risco, especialmente, os grupos mais vulneráveis da população.
“A vulnerabilidade atinge especialmente os negros, por um racismo estrutural, as mulheres, os homossexuais e os transexuais, com uma carga muito maior quando esses são pobres” – Julvan Oliveira
Julvan Moreira de Oliveira – Você me pergunta algo em que estou ligado diretamente. Os professores universitários e pesquisadores analisam de uma forma mais fria esses acontecimentos, no entanto, eu faço parte, embora professor universitário, de um grupo mais vulnerável nesta sociedade. Pertenço a uma família em que meu pai foi “peão”, trabalhador braçal, inicialmente nas lavouras da região e, nos últimos anos de sua vida, como servente numa indústria de tecidos, sempre ganhando um salário mínimo. E minha mãe foi empregada doméstica na adolescência, após o casamento lavou roupas para fora. Essas lembranças não saem de mim, pois eu estava lá, trabalhando desde os 10 anos. Estou querendo dizer que, embora eu tenha tido essa oportunidade de ter uma ascensão com os estudos, tenho familiares que vivem numa condição econômico-social bastante desfavorável. E isso é um drama para mim, das condições de vida de pessoas muito próximas a mim. Ou seja, a minha fala, por mais racional que eu gostaria de ser, é carregada de emoção, pois impossível se desligar disso, e nem quero.
“Para os negros, a cidade durante muitos anos foi um lugar de infortúnio, na forma de pobreza, doenças, insegurança psíquica” – Julvan Oliveira
Bem, historicamente, as tragédias que atingem a humanidade, têm um peso muito maior sobre os grupos mais vulneráveis. Na sociedade brasileira, especificamente, devido a nossa história marcada por uma herança escravista, em que alguns ainda se comportam e pensam dentro daquele modelo colonial, há que se pensar que a vulnerabilidade atinge especialmente os negros, por um racismo estrutural, as mulheres e os homossexuais e transexuais, com uma carga muito maior quando esses são pobres. Não há como se pensar em vulnerabilidade no Brasil sem considerar a interseccionalidade desses grupos, que já foi apresentada a nós por Lélia Gonzalez, na década de 1970, no que ela denominava “o lugar social estabelecido com base na hierarquização por sexo e raça”. São justamente esses grupos – de mulheres negras pobres, transexuais e homossexuais negros pobres – os mais atingidos, devido não só às condições de vida econômico-social, mas sócio-cultural. Primeiro, porque estão em moradias precárias, sem nenhuma infraestrutura, ocupados em subempregos, sem um atendimento básico de saúde e, somado a isso, toda carga do preconceito sobre eles, seja do racismo, do machismo, da homofobia e da transfobia. Muniz Sodré também já nos apresentava que a sociedade brasileira cristalizou-se a partir de dois eixos. Para os negros, a cidade durante muitos anos foi um lugar de infortúnio, na forma de pobreza, doenças, insegurança psíquica. Se houve mudanças nos últimos anos, elas foram extremamente tímidas, pois ainda é explícito esse quadro gritante de desigualdade.
“A primeira pessoa que morreu no Rio de Janeiro, em decorrência da Covid-19, foi uma doméstica, cuja patroa chegou de viagem dias antes, com a doença e não revelara” – Julvan Oliveira
Portal da UFJF – Podemos afirmar que a pandemia da Covid-19 expõe ainda mais as desigualdades brasileiras, expõe o racismo estrutural? Algumas figuras públicas postaram, por exemplo, conteúdos sobre isolamento social, mas não dispensaram do trabalho as empregadas domésticas….
Julvan Moreira de Oliveira – Os jornais noticiaram que a primeira pessoa que morreu no Estado do Rio de Janeiro, em decorrência da Covid-19, foi uma doméstica, cuja patroa chegou de viagem dias antes, com a doença e não revelara. Estou falando de uma doméstica que dormia quatro dias por semana naquele cubículo para as domésticas, durante 20 anos. Não há como eu não ficar tocado, pois foi dessa forma que minha mãe trabalhou como doméstica desde a adolescência. Dormindo na casa dos patrões, todos os dias da semana, sem direito à folga, sem carteira assinada, ou seja, uma herança do modelo escravagista brasileiro. É essa a relação existente em nosso cotidiano. Este não é um caso específico dessa doméstica, de 63 anos, mas de tantas trabalhadoras e trabalhadores, que para sobreviver se submetem a relações desumanas e, neste caso, que serão potencialmente vítimas da doença Covid-19. Não é coincidência que o primeiro paciente do novo coronavírus, a morrer em São Paulo e no Brasil, era um porteiro de 62 anos e, pior, o pai, com 83 anos, e a mãe, com 82, também foram hospitalizados, sem contar a crueldade da família só ficar sabendo de sua morte após o hospital ter passado a notícia para a imprensa.
“As principais medidas de prevenção para conter a Covid-19 não estão ao alcance de uma parte considerável da população” – Julvan Oliveira
Portal da UFJF – Há inúmeros municípios brasileiros com grande concentração de moradias sem saneamento básico e sem acesso à água tratada adequadamente. Por outro lado, as autoridades sanitárias recomendam que os cuidados com a higiene sejam intensificados…
Julvan Moreira de Oliveira – Se considerarmos que as principais medidas de prevenção para conter a Covid-19 são lavar as mãos, fazer uso de álcool gel e praticar o distanciamento social, elas não estão ao alcance de uma parte considerável da população. As nossas cidades expressam de uma maneira muito forte essas desigualdades, com bairros periféricos, onde muitas ruas ainda não são calçadas ou asfaltadas, as casas bem simples, como a que eu nasci, que o chão era de terra e mais tarde foi colocado um vermelhão. Normalmente, nesses bairros, não há um sistema de água e esgoto, cujos trabalhadores estão no mercado informal, com renda menor e que, certamente, serão os mais afetados por essa pandemia.
Portal da UFJF – Há alguma questão que você considere importante acrescentar?
Julvan Moreira de Oliveira – Eu acredito que é necessário investir nos serviços públicos, de forma intensa, pois somente assim essa população mais vulnerável poderá ter um atendimento básico, seja no hospital público, numa educação pública de qualidade para os seus filhos, seja através de uma política de moradia digna. Estamos vendo que, nos países europeus e nos Estados Unidos, os governos anunciaram diversas medidas de auxílio, desde o cancelamento do pagamento de contas de água e esgoto, até o pagamento de auxílios para os trabalhadores. O coronavírus está revelando que o neoliberalismo não é a saída para nossos problemas econômicos, pois o Estado se mostra presente mesmo nos países liberais. No Brasil, de forma bem tímida, também é o Estado que prestará uma atenção aos vulneráveis e já deveria estar distribuindo água, álcool em gel e materiais de higienização e limpeza para essa população. Neste quadro e neste momento, os moradores dessas comunidades mais carentes e bairros periféricos que precisam se articular e pensar ações para se prevenirem, de acordo com suas necessidades. É angustiante.
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