Na segunda entrevista da série sobre o Centro de Referência LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros,Transexuais, Queers e Intersexuais), os entrevistados são a operadora de produção, Alice Prado, 25 anos, e o estudante de Psicologia, Jason Canongia, 23 anos. Ambos integram o programa de extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sob coordenação do professor da Faculdade de Serviço Social, Marco José Duarte.
Nesta quarta-feira, 29, quando é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, os entrevistados enfatizaram a importância do combate às violências transfóbicas e da criação de políticas públicas que garantam o acesso dessa população ao mercado de trabalho formal. “Dentro da comunidade LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans], temos muitas discussões sobre vários temas, mas nós, trans, estamos lutando pelo nosso básico direito de existir, de sobreviver “, ressalta Jason.
A avaliação é compartilhada por Alice, que acrescenta: “As pessoas trans muitas vezes não se qualificam porque o ambiente escolar, de modo geral, é muito cruel para nós, muito violento. Essa violência faz com que muitas pessoas trans acabem por abandonar o sistema escolar. Assim, não é possível ter qualificação para certos empregos formais, restando apenas os subempregos, quando conseguem.”
Confira as entrevistas na íntegra:
Portal UFJF – Há quanto você integra o Centro de Referência LGBTQI+?
Alice Prado – Faz pouco tempo que estou integrando a equipe do CeR-LGBTQI+. Eu comecei como atual coordenadora do Coletivo Força Trans, junto com Jason e Sidney. Desde então, estou fazendo parte da equipe nessas questões referentes à comunidade trans.
Portal UFJF – Em linhas gerais, o que é preciso destacar no que se refere ao acesso da população trans ao mercado de trabalho formal?
Alice Prado – “Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans estão em situação de prostituição ou desemprego.”
Alice Prado – O cenário do mercado de trabalho para a população trans, especialmente o mercado formal, é muito negativo. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans estão em situação de prostituição ou desemprego. É um número muito alto. Desses 10% que estão no mercado de trabalho formal, apenas 4% são mulheres trans. Quando paramos para pensar que somente em 2019 a primeira pessoa trans pôde se aposentar, assumindo sua identidade, vemos o quão assustadora é a situação. Essa dificuldade de ingressar não é só devida ao preconceito do mercado de trabalho. Muitas vezes é por conta da falta de qualificação profissional também. As pessoas trans muitas vezes não se qualificam porque o ambiente escolar, de modo geral, é muito cruel para nós, muito violento. Essa violência faz com que muitas pessoas trans acabem por abandonar o sistema escolar. Assim, não é possível ter qualificação para certos empregos formais, restando apenas os subempregos, quando conseguem.
Portal UFJF – Há projetos de incentivo à qualificação profissional de pessoas trans?
Alice Prado – Há um projeto de incentivo à qualificação profissional de pessoas trans desde 2013, chamado Transempregos, que tem ajudado pessoas trans a ingressarem no mercado de trabalho formal. O projeto vê com algumas empresas a possibilidade de capacitar trabalhadoras e trabalhadores trans. É bem interessante, mas, que eu saiba, só acontece nas grandes capitais. Nem toda pessoa trans está nas grandes capitais do Brasil. Estamos em todo o país, em todo o mundo. Não adianta capacitar só pessoas de um determinado lugar. É muito complicada essa questão. Veja bem: você também tem que capacitar os seus trabalhadores cis para receber uma pessoa. As pessoas cis não estão prontas para lidar com pessoas trans em vários sentidos. Você tem que aprender sobre como respeitar uma pessoa para trabalhar com ela!? Há algo de errado nisso aí. É muito complicado, porque nem toda empresa tem uma pessoa trans. Como você capacita uma pessoa cis para tratar bem uma pessoa trans, se essa pessoa nunca conviveu com alguém trans? Muitas empresas ficam até perdidas nesta questão por ser um assunto delicado lidar de maneira apropriada com minorias.
Portal UFJF – Como funcionou este processo na empresa na qual você trabalha?
Alice Prado – “Muitas pessoas trans são expulsas de casa e essa [a prostituição] se torna a única forma de sobrevivência. Você precisa de um lugar para viver, precisa se alimentar.”
Alice Prado – Por exemplo, na empresa na qual trabalho, eu sou a única pessoa trans. E é uma empresa que tem quase um século de existência. É bem tenso para mim. Eu sou muito privilegiada, porque esta empresa na qual trabalho, eu trabalho lá através de concurso. Então, é um grande alívio para mim em muitos sentidos. Eu não tive a dificuldade de precisar ter um currículo aceito. Muitas pessoas trans chegam a entregar currículos e as empresas simplesmente dizem ‘não estamos aceitando agora’ ou coisas piores. Normalmente isso acontece com pessoas menos ‘passáveis’, ou seja, com pessoas que têm menos características que são lidas socialmente como exclusivas de pessoas cisgênero. Isso acontece com muita frequência. E eu não estou falando de mulheres trans, homens trans, pessoas não-binárias, especificamente. Isso é geral, acontece com todas as pessoas trans. Não tem quem esteja sofrendo mais nesse sentido. A questão mais delicada do mercado de trabalho para a população trans é a prostituição, porque 90% das pessoas trans estão na prostituição. E não estão porque querem. A maioria esmagadora foi forçada a isso. Muitas pessoas trans são expulsas de casa e essa se torna a única forma de sobrevivência. Você precisa de um lugar para viver, precisa se alimentar.
Portal UFJF – Conte-nos, por favor, sobre como o acesso ao trabalho formal impactou a sua trajetória.
Alice Prado: “Emprego no Brasil já não é fácil nem para pessoas cis. Para pessoas trans, é ainda mais complicado”
Alice Prado – Nos tempos de escola, eu não tinha muita noção do que era a transexualidade. Quando eu saí da escola, fui entender o que acontecia comigo. Foi quando tive consciência de que queria transicionar. Eu sempre tive a sensação de que algo estava incorreto comigo e de que precisava mudar. Quando me dei conta disso, notei que precisava de um trabalho para correr atrás do que eu queria, ou seja, para poder fazer a transição de gênero. Eu pensei que precisava de um emprego para conseguir correr atrás de hormônios, cirurgias, enfim, de todas as mudanças que eu gostaria de fazer. Foi um pouco complicado, porque nunca correspondi ao padrão da cisnormatividade, por isso foi difícil para mim durante muito tempo conseguir emprego. Quando consegui, tive que me adequar a um padrão que me deixava muito desconfortável com o meu corpo. Eu tive uma crise muito grande de depressão que foi se agravando quando tive que me adequar a um padrão com o qual não me identificava para conseguir me manter. Então, eu parei de trabalhar e fiquei muito tempo desempregada. Vi a dificuldade que era. Emprego no Brasil já não é fácil nem para pessoas cis. Para pessoas trans, é ainda mais complicado. Aí surgiu a oportunidade de fazer esse concurso. Fiz e pensei: agora é o meu momento, vou esperar me fixar neste emprego e vou começar a minha transição do modo como gostaria. E foi exatamente o que fiz. Até hoje é muito complicada a questão da minha transição no meu local de trabalho, porque poucas pessoas entendem o que é a transexualidade e como lidar com pessoas trans. Durante muito tempo, mantive em segredo, falava sobre o assunto apenas com pessoas mais íntimas, mas chegou uma hora que eu vi que não dava mais. Tem sido bem difícil, mas reconheço que sou privilegiada. Veja só, apenas 4% das mulheres trans estão na mesma situação que eu. Isso dentro dos 10% que ocupam empregos formais. Eu sou a exceção da exceção. Não posso reclamar muito nesse sentido. Tenho consciência de que é um problema estrutural da sociedade não exclusivo da empresa.
Portal UFJF – Como você avalia a importância da criação do Centro de Referência LGBTQI+ ?
Alice Prado – “Uma coisa importante é que o CeR-LGBTQI+ tem feito é pautar a questão trans com um pouco mais de carinho, nos abraçando mais, nos ouvindo mais.”
Alice Prado – A importância é que agora nós temos a quem recorrer, quando ocorre algum tipo de situação de violência ou tem alguma questão que precisa ser avaliada. Uma coisa importante é que o CeR-LGBTQI+ tem feito é pautar a questão trans com um pouco mais de carinho, nos abraçando mais, nos ouvindo mais. A questão trans no mercado de trabalho mesmo. Quando uma pessoa trans consegue ingressar no mercado formal de trabalho, são pessoas trans com mais passabilidade. Esse é o termo que usamos para falar das pessoas que, quando são vistas, não são logo identificadas como trans. As pessoas cis só aceitam pessoas trans se elas tiverem seguindo uma espécie de cartilha do que é ser trans. Essa não é a realidade de todo mundo, nem todo mundo quer essa passabilidade. Nós precisamos de acolhimento nessas questões. As pessoas precisam ser livres para se expressarem da forma que são, e terem reconhecimento por ser quem são. O Centro de Referência tem sido muito importante, porque, quando ocorrem situações mais delicadas de opressão em geral, sabemos onde buscar informação, ninguém precisa mais sofrer em silêncio.
Portal UFJF – O Brasil, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é um dos países que mais violentam a população trans em todo o mundo. Conte-nos, por favor, sobre este cenário em âmbito nacional e sobre a realidade das pessoas trans em Juiz de Fora.
Jason Canongia – “Uma das primeiras violências que sofremos, como pessoas trans, é que nos invisibilizam. Agem como se nós não existíssemos. Nós estamos sempre à margem da sociedade.”
Jason Canongia – Sim, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. A nossa expectativa de vida é de 35 anos. Isso nas avaliações mais otimistas. Há estimativas até de 31, 32 anos. Nós estamos falando de violência…Os problemas que temos de acesso à saúde são também uma violência. As dificuldades quando recorremos aos órgãos públicos também são. Uma das primeiras violências que sofremos, como pessoas trans, é que nos invisibilizam. Agem como se nós não existíssemos. Nós estamos sempre à margem da sociedade. Os nossos corpos são tratados como públicos. As pessoas acham que têm o direito de fazer perguntas íntimas para a gente. Estamos constantemente sendo invalidados em todas as instâncias. Dentro da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans), temos muitas discussões sobre vários temas, mas nós, trans, estamos lutando pelo nosso básico direito de existir, de sobreviver. Eu sou uma das pessoas mais privilegiadas que você pode pensar. Eu sou homem, hetero, sou branco, faço uma faculdade, nunca fui expulso de casa…Ainda assim, muitas violências são constantes. Já tive dificuldade, por exemplo, para votar e ter o meu nome respeitado. Quanto ao acesso à saúde, muitas equipes não estão preparadas para lidar com a comunidade trans. E como falei antes: nós somos invisíveis para muitas dessas pessoas. Tanto é que temos uma expectativa de vida baixíssima no Brasil. Importante dizer que as meninas, as travestis que fazem programa na rua, são as mais vulneráveis. Elas passam por situações de violência intensa, de abandono da família, do Estado. Não têm acesso a outros postos de trabalho.
Portal UFJF – Qual a importância da criação do Centro de Referência LGBTQI+ (CeR-LGBTQI+) ? Como a medida pode fortalecer a comunidade trans na busca por igualdade de direitos e oportunidades?
Jason Canongia – “Em Juiz de Fora, não tínhamos nada como o Centro de Referência. Os encontros do Força Trans acontecem para o fortalecimento e o empoderamento do grupo.”
Jason Canongia – A equipe do CeR-LGBTQI+, se não me engano, conta com seis pessoas trans. Usamos o espaço do Centro de Referência para realizar as reuniões do Coletivo Força Trans, que tem um número maior e variável de integrantes. E é coordenado por mim, Alice e Sidney. Em Juiz de Fora, não tínhamos nada como o Centro de Referência. Os encontros do Força Trans acontecem para o fortalecimento e o empoderamento do grupo. Pensamos em estratégias. O Centro de Referência ajuda muito nesse sentido, porque é uma porta de entrada, para termos contato com outras pessoas. Uma pessoa vai indicando a outra também. As pessoas trans tomam conhecimento de que nos reunimos aqui. Isso é importante, porque, na maioria das vezes, somos muito solitários, muito sozinhos. O máximo que temos são certos grupos de internet. Com o Força Trans e o CeR-LGBTQI+, começamos a nos conhecer e vimos que não estamos sozinhos. Juiz de Fora tem muitas pessoas trans e a gente não sabia da existência uns dos outros. Saber que muitas pessoas passam pelas mesmas situações que você, participar de reuniões, pensar estratégias para enfrentar violências, nos ajuda a avançar. Aqui também encontramos, além das pessoas trans, outros aliados para a nossa luta por direitos.
O Centro de Referência LGBTQI+ (CeR LGBTQI+) fica na Avenida Barão do Rio Branco 3.372, no Alto dos Passos.
Saiba mais:
Programação cultural marca Dia Nacional da Visibilidade Trans
Centro de Referência LGBTQI+ incentiva organização coletiva da população trans
Outras informações: (32) 3218-6996 – Centro de Referência LGBTQI+