Movimento completa centenário e professores analisam sua história, pioneirismo e contradições

alemanha, 1919. em um país falido e polarizado, abalado por crises políticas e econômicas, um grupo de artistas plásticos, designers e arquitetos reúnem-se, pela primeira vez, com um único objetivo: repensar a vida moderna.

ao unir arte e produção industrial, o pensamento da escola estendeu-se do aprimoramento dos móveis domésticos até a reformulação da malha urbana europeia. em meio à instabilidade, o movimento viu surgir inúmeras possibilidades para um futuro baseado não só na estética, como também na praticidade – no qual até as letras maiúsculas poderiam ser ornamentos dispensáveis. desta forma, a bauhaus mudou para sempre a forma como a sociedade se relaciona com a arte.

A arte e a indústria

Para entender a Bauhaus, é necessário voltar mais de dez anos antes de sua criação: para a fundação da Deutscher Werkbund, na cidade de Munique, em 1907. A Werkbund foi uma associação de profissionais variados – como artesãos, designers e funcionários públicos – que estavam preocupados com os padrões de qualidade do design alemão e que desejavam igualar a produção do país com as grandes nações industrializadas: a Inglaterra e os Estados Unidos.

Exterior do AEG-Turbinen-Fabrik, em Berlim, Alemanha. (Foto: Doris Antony)

A Werkbund foi uma das muitas tentativas dos artistas europeus de tentar entender como se daria a relação de arte e indústria em uma sociedade que cada vez mais ambicionava o desenvolvimento tecnológico. Seu trabalho histórico para a eletrotécnica AEG, principal empresa alemã da época, foi responsável por repensar diversos aspectos da produção industrial da companhia: a estética dos produtos, o logotipo e a publicidade da empresa, o uniforme dos funcionários e até mesmo os prédios. A fábrica de turbinas, principal obra do arquiteto e diretor artístico desta empreitada com a AEG, Peter Behrens, foi o primeiro edifício em aço e vidro do país.

“Essa é a primeira vez que o design é aplicado e pensado dentro de uma indústria”, explica a professora do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Maria Lúcia Bueno. Ela denota que a Werkbund contou com a participação de inúmeros artistas que, em poucos anos, despontaram como grandes nomes em suas áreas. Esse é o caso de Walter Gropius, um dos fundadores da Bauhaus.  

Apesar de só existirem registros em preto e branco, o Pavilhão de Vidro, de Bruno Taut, chamou a atenção pelo seu interior e por suas cores exuberantes. (Foto: Werkbundarchiv)

Em maio de 1914, a Werkbund inaugurou sua primeira exibição na cidade de Colônia, na Alemanha. O evento foi uma sensação e finalmente colocou a organização no cenário internacional do design. No livro “Desenho Industrial”, o escritor John Heskett afirma que tendências populares nos apartamentos europeus do pós-guerra já apareciam nos trabalhos da associação, como armários de cozinha embutidos e superfícies de trabalho contínua.

No entanto, poucos meses depois da abertura, a exibição em Colônia teve que ser interrompida devido ao início da Primeira Guerra Mundial. As ideias da Werkbund continuaram latentes, mas só seriam retomadas de forma significativa depois do conflito, em um cenário completamente diferente.

Depois da guerra, a retomada

O entreguerras na Alemanha foi um período definitivo para a história mundial. As imposições severas do Tratado de Versalhes, que responsabilizou o país por todos os danos da Primeira Guerra, fomentaram uma sensação de humilhação e de ressentimento que assolava a população. De um lado, os ideais nazistas fervilhavam sob a fachada do nacionalismo exagerado e, em poucos anos, dariam início a um novo conflito de proporções ainda maiores. Do outro, elites intelectuais nasciam e se tornavam referência em diversas áreas de conhecimento, como a Escola de Frankfurt e o Instituto de Psicanálise de Berlim.

É neste cenário que, em abril de 1919, surge a primeira etapa da Bauhaus, na República de Weimar. Sob a direção do pintor suíço Johannes Itten, a escola inova ao usar um sistema de ensino conhecido como Vorkurs, que pretendia aproximar a arte da técnica. O curso era preliminar e obrigatório para os alunos e desafiava a combinação de diferentes elementos no processo de criação. A professora Maria Lúcia Bueno comenta a importância que o método assumiu na história da arte:

Com raízes na contracultura, os ideais desta primeira etapa da escola questionavam radicalmente diferentes aspectos da vida moderna e da cultura já estabelecida. Para isso, os integrantes da Bauhaus lançavam luz sobre o passado e resgatavam hábitos esquecidos. Era comum que optassem por vestimentas pouco usuais – o próprio Johannes Itten tinha o costume de se vestir como um monge – e até mesmo por formas de alimentação alternativas, como a dieta macrobiótica, vinculada à filosofias orientais.

O estilo de vida alternativo incomodou a população de Weimar, o que obrigou a escola a mudar de cidade. A filosofia de Itten também criou discórdias internas, já que seu tom metafísico e espiritual contrariava o ideal bauhausiano de valorizar a praticidade e o design em detrimento da subjetivação. Em 1925, a escola se muda para a cidade de Dessau, sob a direção de Walter Gropius.

O auge e a extinção

Em 1996, a sede em Dessau foi tombada patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Foto: Unesco / Christoph Petras)

Em Dessau, a Bauhaus instala-se em um prédio próprio, projetado pelo próprio diretor Walter Gropious. A obra é um marco para a arquitetura modernista, sendo o maior projeto arquitetônico realizado pela escola enquanto ainda estava ativa. “A construção da nova sede é emblemática dos ideais de desenvolver uma comunidade democrática e inclusiva.A escola é nesse sentido um núcleo gerador e a sua arquitetura deve refletir isso”, explica Renata Proença, pesquisadora e professora associada ao Núcleo de Sociologia da Cultura (NUSC) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A pesquisadora chama atenção para dois aspectos do pensamento urbanístico da Bauhaus: o primeiro, considerar a inserção dos prédios no tecido urbano. A escola acreditava que, ao pensar na arquitetura sempre inserida na dinâmica do território, ela teria o poder de otimizar o funcionamento e a organização das cidades. “O segundo aspecto, é referente ao papel social do arquiteto de desenvolver uma proposta de habitação popular de qualidade, que fosse eficiente e de baixo custo, e sobretudo que pudesse ser integrada e beneficiada com o desenvolvimento urbano.”

A Bauhaus se colocava como uma forte oposição ao Art Nouveau, o estilo artístico vigente na época. Em suma, a maioria das ideias propostas pela escola não eram inéditas. Como mostra Ronaldo Brito em seu livro “Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro”, elas já haviam surgido pontualmente em diferentes movimentos europeus. O grande diferencial da escola foi, justamente, a união de todos esses valores sob um mesmo teto.

Art nouveau x Bauhaus

Segundo Maria Lúcia Bueno, sob a direção de Gropius, a metodologia bauhausiana assume um tom mais objetivo. Professores, como o pintor Paul Klee e o artista plástico Wassily Kandinsky, implementam exercícios coletivos relacionados a cores e formas, posteriormente sendo aplicados no design de produtos. O objetivo principal era sempre o mesmo: a produção em massa das peças. No entanto, a pesquisadores Renata Proença complementa que a indústria não era o objetivo final das propostas pedagógicas dos professores e artistas. “Elas iam além de uma articulação com a indústria alemã, mas de formação de uma nova geração de profissionais para a complexidade e os desafios de um mundo em transformação.”

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As mesas empilháveis de Marcel Breuer, feitas em 1925-1926, demonstram a praticidade e harmonia da mobília da Bauhaus. (Foto: Firma Thonet, 1929)

O que era para ser barato, acessível e supostamente democrático, acabou se tornando artigo de luxo. Com a ascensão dos ideais nazistas dentro do governo alemão, a Bauhaus, que, até então, era uma instituição estatal e pública, passou a ser perseguida politicamente. Com cortes orçamentários, a escola não teve dinheiro para criar uma linha de produção. “Os móveis originais da Bauhaus são muito mais caros do que os objetos da Art Noveau, porque eles usam a indústria e as máquinas industriais para fazer uma peça única”, explica Maria Lúcia Bueno.

Em 1931, o Partido Nazista fecha a sede da Bauhaus em Dessau. A instituição não era bem vista pelos nazistas devido às suas ideias modernistas e sua proximidade com artistas comunistas. O então diretor, o arquiteto Ludwig Mies van der Rohe, transfere a escola para Berlim, em uma última tentativa de salvar a Bauhaus. Lá, ela funciona por apenas alguns meses antes de ser fechada novamente, em 1933.

Principais referências do movimento

Como pensar o mundo moderno?

Fugindo da guerra e da perseguição na Europa, o modernismo encontra abrigo em solos estadunidenses. Vários nomes da Bauhaus foram escolhidos para encabeçar institutos norte-americanos e para realizar grandes obras. Os artistas agora se encontravam em um cenário favorável social e economicamente, impedindo que seus trabalhos caíssem em completo esquecimento.

Expoentes da escola, como o fundador Walter Gropius e o ex-diretor Ludwig Mies van der Rohe, fixam residência no país e passam a atuar como arquitetos e professores. Segundo a pesquisadora Renata Proença, o impacto é total para o desenvolvimento da “nova arquitetura”, ou “arquitetura moderna”, que surgia nos Estados Unidos – culminando no que é conhecido como “estilo internacional”. No Brasil e em outros países americanos, a atuação da Bauhaus vai estimular o diálogo e as pesquisas de arquitetos com as tendências da arquitetura moderna.

Localizado em Nova York, o Edifício Seagram é uma das principais obras de Mies van der Rohe. (Foto: ArtStack)

Apesar disso, a mudança de território significou o abandono de aspectos subversivos e essenciais para a escola. Como explica Renata Proença, os participantes da Bauhaus tinham uma visão otimista sobre o mundo moderno, acreditando que os avanços tecnológicos não  deveriam ser usados somente para aumentar os lucros dentro do sistema capitalista dominado por uma classe privilegiada. Entretanto, em solos americanos, o modernismo passa por uma fase de aprofundamento do capitalismo, que vai impor uma nova estética no horizonte urbano. “Desconfigurada e descaracterizada, a cidade perde a sua personalidade em detrimento de uma ‘funcionalidade’ que padroniza o ambiente urbano”, ela explica.

Um dos grandes críticos dessa mudança no modernismo foi o ator e cineasta francês, Jacques Tati. Com grande enfoque nos cenários, as comédias de Tati vão satirizar a uniformização opressora imposta na diversidade da paisagem urbana pelo estilo moderno. Em “PlayTime” (1967), uma de suas obras mais aclamadas, o cineasta acompanha um homem de meia-idade e um grupo de turistas norte-americanos que visitam Paris. “Nada mais conflitante do que impor esses padrões dos edifícios modernos e funcionais numa cidade como Paris. O filme mostra o ser humano desajustado diante da frieza e suposta eficiência destes espaços frios e funcionais”, comenta Renata.

https://youtu.be/mUTY0QrKJSQ?t=249

Antes mesmo da fuga para os Estados Unidos, a Bauhaus não escapava de contradições. A hierarquia entre artistas, vistos como intelectuais, e artesãos, focados no trabalho manual, ainda pulsava nas veias da escola. O ingresso das mulheres era permitido, algo incomum para a época, mas a participação delas ficou restrita à produção têxtil. Contrariando as convenções machistas desta restrição, o núcleo têxtil era o que mais gerava lucros para a escola. Entre os clientes das mulheres bauhausianas estavam grandes nomes do mundo da moda, como a empresa francesa Chanel.

“Ali todo mundo pensava e produzia junto. Era uma imersão, as pessoas moravam ali. Eles estavam pensando em uma nova maneira de ser no mundo moderno. Mudar todo o espaço: o espaço da cidade, os prédios, os móveis”, explica a professora Maria Lúcia Bueno. A pesquisadora Renata Proença destaca a importância de pensar a escola como um espaço físico e também mental. “Acho importante pensar a Bauhaus como um ‘laboratório’ da experiência e sensibilidade moderna. Enfatizar tanto a materialidade e funcionalidade dos seus produtos, projetos e construções quanto a força do seu pensamento e germinação de ideias.”

Para além da arquitetura, do design e da indústria, a escola mudou a forma como a sociedade, os artistas e os artesãos se relacionam com a arte. “Você não fica tentando olhar o pôr-do-sol para criar uma cadeira. A cadeira você vai pensar a partir de formas geométricas e das teorias de cor”, explica Maria Lúcia. Ao trabalhar com objetos do cotidiano, a Bauhaus pensou a obra de arte não como uma abstração da natureza, mas como alguma coisa que tem vida em si.

Segundo Renata, desde o início, a escola remete a uma dimensão social do trabalho colaborativo, sem hierarquias entre os diversos profissionais. Em meio a um período conturbado e cheio de incertezas, a Bauhaus acreditava na democratização dos avanços tecnológicos e nas infinitas possibilidades da vida moderna. Bem sucedida ou não, a sua influência na sociedade contemporânea é inegável. A história centenária da escola é um legado para a resistência da arte como edificante para um bem-estar social geral.