Desde o dia 1º de janeiro, obras de Monteiro Lobato tornaram-se de domínio público e reacenderam debates sobre o autor (Foto: Alice Côelho/UFJF)

Uma boneca de pano falante e irreverente, um sabugo de milho extremamente sábio, uma menina de nariz arrebitado e defensora dos animais. O fantástico mundo de Monteiro Lobato teve uma população de milhões de pessoas, perpassando gerações como se o tempo fosse apenas um detalhe.

Agora, há um novo estímulo para viajar pela criatividade do célebre escritor brasileiro: no dia 1º de janeiro de 2019, suas obras tornaram-se de domínio público, possibilitando novas publicações sem que sejam necessários pagamentos de direitos autorais à sua família. Partindo desse fato, pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) se debruçaram sobre a vida, obras e polêmicas de Lobato para imaginar as próximas páginas da história do autor, as quais seguem oferecendo novos capítulos, mesmo 70 anos após a sua morte, ocorrida em 1948.

Lobato contemporâneo (ou não)
O retorno do autor paulista, novamente se tornando assunto e se convertendo em manchetes jornalísticas, retoma discussões sobre polêmicas antigas que rondam suas obras, como as acusações de racismo sofridas pelo escritor muitos anos após o seu falecimento.

Em 2010, o livro “Caçadas de Pedrinho”, publicado originalmente em 1933, teve sua veiculação ameaçada em escolas, devido à tentativa de proibição por parte de um educador, que alegava a existência de termos preconceituosos em trechos descritivos da Tia Nastácia, a única negra entre os personagens primários da série lobatiana mais reproduzida e adaptada nos anos 2000, “Sítio do Picapau Amarelo”.

O doutor em Literatura Comparada e também professor da Faculdade de Letras, Gilvan Ribeiro, não concorda com as acusações atribuídas a Lobato. Para o pesquisador, elas são frutos de julgamentos com base em conceitos de uma época diferente à do escritor e produtor brasileiro. “Em alguns momentos, Monteiro Lobato expressa uma opinião comum na época. No caso da Tia Nastácia, por exemplo, ela era um senso comum, oposta à sabedoria livresca de Dona Benta. Fazendo uma comparação, é como se Dona Benta fosse Dom Quixote e a Tia Nastácia fosse o Sancho Pança. Então, longe de a Tia Nastácia ser uma figura que expressa algum tipo de preconceito racial, é uma figura que merece destaque na literatura brasileira como uma de suas grandes personagens na história”, afirma.

Ribeiro complementa com uma visão positiva acerca do domínio público das obras de Lobato, o qual considera um dos autores mais importantes da literatura brasileira e merecedor de uma releitura crítica sobre o seu trabalho. “Eu acho que Lobato merece uma revisão crítica, inclusive o situando entre os escritores mais importantes do século XX no Brasil. Você tem uma lista dos cem melhores contos brasileiros do século passado, em que o Monteiro é incluído, por um conto que chama ‘Negrinha’, e é um conto exemplar pela maneira que Lobato observava os ex-escravos e o tratamento que eles recebiam naquela época. Depois, esqueceu-se desse conto, como acontece, em geral, com Lobato; centrando apenas no Sítio do Picapau Amarelo”, ressalta o professor.

Doutor em Literatura Comparada, professor Gilvan Ribeiro é um dos pesquisadores da UFJF que se debruçaram sobre as polêmicas em torno do autor (Foto: Alice Côelho/UFJF)

Por outro lado, o escritor e também professor da Faculdade de Letras, Alexandre Faria, não poupa Lobato de críticas, mesmo destacando que o autor é um retrato da sociedade na qual viveu, em que se lidava com as decorrências da abolição da escravatura, ocorrida oficialmente em 1888. Segundo o pesquisador, o regime de trabalho da época ainda era muito próximo do escravo, principalmente com relação aos empregados domésticos e rurais.

“O Brasil é um país racista, e a obra do Monteiro Lobato expressa vários traços desse racismo. Cada tempo pede os autores e tem as questões que lhe são pertinentes. Nós, hoje, temos autores tratando das questões étnico-raciais, por exemplo, que são muito mais produtivos, originais e interessantes do que o Lobato para as crianças”, conclui Faria.

Apesar de opiniões divergentes, os pesquisadores literários concordam que não deve haver adaptações nas obras infantis de Lobato para se adequar ao período atual. Ribeiro julga necessária a leitura na linguagem da época, compreendendo o contexto no qual as histórias foram escritas, mas destaca que geralmente os ajustes são feitos de acordo com critérios mercadológicos, para facilitar a leitura de novas gerações.

Para Faria, apesar da liberação dos direitos autorais, ainda há compromissos que os adaptadores devem assumir na realização de novos trabalhos. “Com o domínio público, ninguém mais tem que pagar ao autor ou aos herdeiros do autor pelo uso da obra. Agora, os direitos morais devem ser garantidos ao autor. E esses direitos morais dizem respeito à integridade da obra e à sua coerência em uma adaptação próxima ou não-próxima”, assegura.

Um olhar sobre a educação
De que modo a inserção de Monteiro Lobato em domínio público vai incidir na formação de educadores? A pós-doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação (Faced) da UFJF, Hilda Micarello, acredita em um efeito positivo da realização de debates críticos acerca do autor, sem deixar de enquadrá-lo no período histórico no qual produziu suas obras.

“Penso que os profissionais que formam professores devam trazer para suas aulas o debate sobre essas obras, o contexto em que foram produzidas, o papel que tiveram de, a despeito das críticas que contemporaneamente possam se fazer a elas, inaugurar um modo de fazer literatura infantil que dialoga com o universo da crianças em seus próprios termos, para além de uma perspectiva exclusivamente didática e pragmática. As obras de Lobato são uma fonte importante para o debate sobre a formação do leitor, sobre o modo como a literatura expressa valores de uma época e sobre como essas obras podem ser lidas à luz de um contexto contemporâneo”, completa a docente especialista em alfabetização e linguagem.

Hilda também julga importante para a educação básica a maior disponibilidade de obras clássicas a partir de domínio público, salientando a necessidade de uma ampla divulgação nas instâncias interessadas, como em escolas e bibliotecas públicas, inserindo os trabalhos no cotidiano de funcionamento para incentivar o consumo dos leitores.

Ao contrário do que se possa imaginar, a professora acredita que o Brasil avançou no estímulo pela cultura literária nacional a partir de ações contundentes de incentivo à leitura. “Percebo que o Brasil tem avançado muito, tanto no debate em torno do valor da cultura literária quanto em políticas públicas de acesso ao livro. Um exemplo disso é o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) e o Pnaic (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), que ao longo dos anos têm feito chegar às escolas obras literárias de qualidade. Os professores, as crianças e jovens têm tido, a partir dessas políticas, a possibilidade de acesso a obras de qualidade, o que representa um estímulo significativo à formação de leitores de literatura”, afirma.

Algumas dessas obras brasileiras livres de direitos autorais constam no portal do Governo Federal dedicado ao domínio público, no qual se encontram disponíveis para download gratuitamente, organizadas por tipos de mídia (imagem, som, texto ou vídeo).

Fator novo na crise das livrarias?

Liberação do direito autoral sobre as obras pode incentivar o relançamento dos livros de Lobato e despertar o interesse de novas gerações (Foto: Alice Côelho/UFJF)

Motivo de preocupação para os aficionados em literatura no Brasil, a crise das livrarias que eclodiu no segundo semestre de 2018 ameaça o sistema brasileiro de vendas de livros. O movimento recente se junta à alarmante queda no número total de livrarias e papelarias em território nacional, que, segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), teve perda de mais de 21 mil estabelecimentos entre 2007 e 2017.

A entrada de um escritor renomado como Monteiro Lobato promete agitar o mercado literário ao longo do ano. No entanto, segundo o diretor da Editora UFJF, Jorge Felz, a liberação das obras de Lobato não representa uma sobrevida para as grandes livrarias em recuperação judicial. “Temos que considerar que muito disso se deve às próprias redes de livrarias que durante anos praticaram uma predação  do mercado, esmagando as pequenas livrarias e buscando o monopólio livreiro. Então o domínio público de Lobato não muda muito. Talvez, de modo geral, essa situação só se altere se tivermos o retorno das livrarias de bairro, menores e mais atentas a determinados grupos e espaços”, salienta.

De qualquer modo, Felz destaca que as editoras devem aproveitar-se bastante das obras livres de direitos. “A produção de Lobato é grande, só de livros infanto-juvenis já são cerca de 39 livros que agora poderão ser reproduzidos sem o pagamento de direitos autorais. Várias editoras devem lançar livros este ano, sendo que algumas já estão com seus projetos prontos há anos, aguardando apenas o fim do prazo dos 70 anos”, projeta o professor da Faculdade de Comunicação (Facom).

Independente da relevância do acontecimento para se solucionar a crise das livrarias, o diretor da editora universitária tem certeza de algo: Monteiro Lobato vai cair ainda mais em gosto público. “Acredito que teremos livros em edições mais populares, mais acessíveis ao público leitor médio. É acesso ao leitor. Acho que vai se ler bem mais Lobato agora”.