por Raul Mourão
“A mídia fica aterrorizando o pessoal, falando da presença de produto tóxico no rio. Mineração de ferro não tem produto tóxico não.” Essa fala poderia ter sido registrada há três anos, em Mariana, quando a tragédia, na proporção ocorrida, era ainda inédita na história recente do país. Mas foi dita há apenas três dias por um prestador de serviços para a Vale, em Juatuba, a 43,7 quilômetros de Brumadinho.
Assustado com a presença da equipe de expedição da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que percorreu áreas afetadas pelo novo rompimento de barragem, o funcionário, que disse ter trabalhado diretamente para a empresa por 30 anos, pedia autorização a um superior para liberar a entrada dos pesquisadores em área particular – um restaurante à beira do rio Paraopeba, que não pertence à mineradora. “É muito importante as pessoas saberem a verdade. A gente tem compromisso com a seriedade. O pior já aconteceu, infelizmente”, disse o profissional com o carro ainda tomando conta da entrada.
Autorizada a ingressar no local, a equipe acompanhou a coleta de água do rio por um funcionário e conversou com as donas do bar, que se mostraram conformadas com a situação. “Em um fim de semana normal, vendemos 12 engradados de cerveja. No último, foram dois. Uma porta se fecha, mas outra se abre”, afirma a sócia Perli Neves de Oliveira. No entender dos pesquisadores, esse discurso pode ter sido influenciado pela presença, por 24 horas diárias, da mineradora no território.
A postura defensiva do funcionário e a ausência de orientações a moradores visitados pela equipe são dois dos pontos críticos analisados pelos pesquisadores. “Como o funcionário pode afirmar com essa certeza de que não há rejeitos tóxicos? Não seria melhor lamentar, ter a dúvida?”, comenta o professor do Instituto Federal do Norte de Minas Alfredo Costa, integrante da expedição liderada pela UFJF.
‘Ninguém merecia’
Depois de mais de mil quilômetros de estrada percorridos ao longo do rio Paraopeba – o maior curso d’água atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração -, chegaram ao fim os trabalhos em campo. Nos três dias de atuação, iniciados na última segunda, 4, a equipe de professores e estudantes coletou mais de 40 amostras de água, sedimentos e rejeitos de mineração.
Presenciou também a dor, o desamparo e a ansiedade de moradores de comunidades rurais e urbanas que já sofrem os danos da lama, seja ela visível a uma distância de poucos metros de casa ou temida a 200 quilômetros de distância. É a situação da dona de casa Lídia Lourenço Nunes, moradora da comunidade Parque Cachoeira, atingida pelo rompimento. “Quando vejo um ônibus da Vale, fico procurando nos assentos um dos motoristas mortos na tragédia. Ele levava meu filho para a Estação do Conhecimento. E, nesses dias, meu menino, ao ouvir barulho de chuva, me pergunta se outra barragem vai se romper”, conta, emocionada.
“Perdi minha melhor amiga na tragédia e um vizinho. Eu não queria me mudar daqui. Mas vejo que o futuro é esse. Vivo aqui há três anos. Mas já morei do outro lado da lama”, acrescenta Lídia, que atribui a dor no estômago à ansiedade dos últimos dias.
Para o aluno de pós-doutorado em Geografia da UFJF Ricardo Fernandes, a declaração de Lídia mostra também o efeito do rompimento na relação das pessoas com o espaço onde vivem. “Havia um pertencimento ao local. Hoje a lama é estranha à paisagem e já muda a referência de localização, ressignificada”, afirma.
Não é difícil encontrar outras pessoas impactadas mais diretamente pela tragédia em Brumadinho. Um dos responsáveis pelo abastecimento de lubrificantes para máquinas na mina atingida, José Henrique Neto escapou da onda de lama por apenas oito minutos. “Saí para almoçar no refeitório da Mina da Jangada, onde costumo almoçar mesmo. Foi a alma da minha mãe que me salvou.” Quando ouviu os pedidos de socorro pelo rádio de comunicação interna, começou a ligar para os companheiros de trabalho. “Só dava caixa postal. Entrei em desespero. O Evandro não merecia morrer daquele jeito. Ninguém merecia”, lamenta Neto, que perdeu também o ex-cunhado. Até esta sexta-feira, 8, Evandro Luiz dos Santos, citado por Neto, continuava na lista de desaparecidos.
Os sinais da perda estão visíveis na lama: o armário de cozinha retorcido ainda guarda saco de arroz e pratos. Indicam vidas ou rotina interrompidas brutalmente. Paredes de concreto se amontoam sobre uma geladeira, dando noção da força da onda de rejeitos. E uma mesa de totó, escorando destroços, na varanda de uma casa, já não diverte mais ninguém. Um dos poucos contentamentos é encontrar corpos ou segmentos para as famílias terem o direito a sepultar seus entes. “Ficamos contentes quando encontramos, porque sabemos que poderão fazer o enterro”, relata um bombeiro civil e socorrista Carlos Nataniel de Barros, de Santa Catarina.
Três eixos
A escuta dos anseios, medos e dores da população fez parte de uma das três frentes de atuação da expedição. A segunda é a coleta de materiais e a avaliação preliminar de danos ambientais. A terceira, ainda a ser realizada, é a análise laboratorial das amostras na UFJF, com elaboração de laudos.
Ao todo, foram coletadas, em 12 pontos, 24 amostras de água superficial, 4 de poços artesianos e 12 de sedimentos e rejeitos. Nos laboratórios da UFJF, será possível conhecer a composição da água em cada ponto, identificar a concentração de rejeitos e avaliar se há presença de elementos contaminantes ou tóxicos.
Essa verificação independente por laboratórios locais e não apenas o diagnosticado por órgãos ambientais e pela Vale é importante para se ter fontes alternativas e dados comparativos. Com os laudos é possível elaborar recomendações precisas a órgãos ambientais e à população – inclusive diretamente para os moradores ouvidos ao longo do percurso. Professores anotaram o contato de cada um e se prontificaram a informá-los. O trabalho ainda pode se desdobrar em novas pesquisas e projetos de extensão.
Desapontamento
“Saí de Juiz de Fora acreditando que a ação do governo, das empresas e até das universidades tinha sido muito diferente daquilo que presenciamos em Mariana. Pensei que tínhamos aprendido alguma coisa. Mas essa minha ideia foi desmentida.
Aprendemos muito pouco com uma tragédia tão significativa de Mariana”, critica o professor de Geociências da UFJF e coordenador da expedição, Miguel Felippe. “A forma com que estão atuando ainda é muito improvisada, ainda existe muita dúvida sobre o que e como fazer. Não podia ter isso.”
O professor cita como exemplo a falta de atenção dada à população e ao rio Paraopeba logo após a Usina Hidrelétrica Retiro Baixo, localizada entre os municípios de Curvelo e Pompéu. A partir dali, o Paraopeba deságua na represa de Três Marias e no rio São Francisco. Foi difundida a expectativa de que a usina reteria boa parte dos rejeitos físicos. “No entanto, ninguém falou do rejeito químico. A estimativa é que esse passe sim. Claro que ele vai sendo diluído, depurado ao longo do rio, mas é muito provável que passe”, estima o professor. Mas a população visitada pela equipe, na última segunda, 4, não havia sido alertada do risco. “É muito sério assumir como verdade algo que é uma hipótese. Essa população está em vulnerabilidade. É um erro que não poderia estar acontecendo. Em Mariana, o discurso era: ‘o rejeito não vai chegar ao Rio Doce’. Chegou. ‘Não vai chegar ao mar’. Chegou. Então a gente não aprendeu com isso.”
Percurso
A expedição foi uma iniciativa da rede de ensino, pesquisa e extensão desenvolvida na UFJF, na última semana, para entender a tragédia e propor soluções em diversas frentes de atuação. A viagem também contou com apoio do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração.
Em vez de seguir o curso natural do rio Paraopeba, a equipe fez o sentido contrário: foi direto à proximidade da foz, na Usina Hidrelétrica Retiro Baixo, e de lá foi se aproximando das áreas mais atingidas pelo rompimento da barragem. O objetivo era coletar amostras de água e sedimentos em diferentes graus de concentração e em áreas aparentemente não afetadas pelos rejeitos. Os professores também queriam verificar se a expectativa da chegada da lama, nesses pontos mais distantes, já causava danos e se as comunidades visitadas eram orientadas e assistidas pelos poderes públicos e pela Vale.
Ao começar próximo da foz, a equipe foi aos poucos notando a transformação do rio e de seu entorno. À medida que os quilômetros avançavam, as águas claras usadas para banho de cachoeira e pesca em Curvelo, a cerca de 200 quilômetros de Brumadinho, foram ganhando tons mais turvos naturais ou ocasionados pela lama. Em Juatuba, a 43 quilômetros da cidade atingida, a água barrenta foi considerada natural por moradores. Mais adiante, no entanto, em um olhar rápido, o marrom avermelhado de rejeitos de minério que tomou conta da água chega a confundir o rio com uma estrada de terra logo à sua margem, na entrada de Brumadinho. A cada contato eram notados silêncio e pesar na equipe. Sentimento que se aproxima do percebido pela moradora local Lídia Nunes: “Vejo as pessoas nas ruas da cidade como se estivessem chorando por dentro.”
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“Foi uma bola de boliche bem jogada”, resume o comerciante Manoel Braga, em referência à tragédia em Brumadinho. O rio e as cidades no caminho da lama são a pista de arremesso. As pessoas e os animais tratadas como pinos em um strike trágico que levou a vida de ao menos 134 indivíduos. Mais 199 estão desaparecidos, conforme levantamento do Corpo de Bombeiros, divulgado na segunda, 4. E outros milhares foram afetados pelo rompimento.
“A questão não é discutir se vai romper outra barragem no futuro ou não. A questão é quando.” Desde o rompimento da barragem de Fundão, o pesquisador Miguel Fernandes Felippe alega que a comunidade acadêmica já sabia que era uma questão de tempo até acontecer algo parecido em outro local de risco.