Bruna Rocha: “Cada dia é uma luta diferente para a ocupação do lugar público, que em teoria deveria ser de todos e todas” (Foto: Twin Alvarenga)

Em 29 de janeiro é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data marca a luta de transgêneros e travestis – pessoas que se identificam com o gênero oposto ao designado ao nascimento – por igualdade de direitos. Somente em meados de 2018 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transsexualidade do capítulo referente aos transtornos mentais e comportamentais da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). A transexualidade passou a integrar a categoria de condições relacionadas à saúde sexual.

Apesar de alguns avanços, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aponta – com base em levantamento realizado pela organização “Transgender Europe  – o Brasil como o país que mais mata a população trans no mundo, sendo o número de assassinatos três vezes maior do que o do segundo colocado, o México. Para conhecer e reafirmar o compromisso da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com os estudantes trans, ouvimos histórias de resistência, existência e reação por meio da educação.

Educação como ação transformadora

A aluna do curso de especialização em Relações de Gênero e Sexualidades: perspectivas interdisciplinares, da Faculdade de Educação (Faced), Bruna Rocha,  comenta que ser mulher, trans, negra e periférica a coloca em uma situação de vulnerabilidade. A juiz-forana destaca que gênero, classe, raça, dentre outros, são marcadores que constituem socialmente as hierarquias entre as pessoas. “Cada dia é uma luta diferente para a ocupação do lugar público, que em teoria deveria ser de todos e todas.”

Segundo  Bruna, o Dia da Visibilidade Trans é fundamental para representar as lutas que envolvem toda essa comunidade. “Nesta data, recordo-me das bravas mulheres trans que entraram na Câmara dos Deputados, em Brasília, para clamar as pautas do nosso grupo e, desde então, passamos a ter voz. Agora, na atual conjuntura política, não posso acreditar em perda dos direitos já adquiridos e ainda sigo confiante da aprovação, no Supremo Tribunal Federal (STF), da equiparação da lei que iguala a LGBTfobia (aversão e/ou ódio a lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) ao racismo.”

Na avaliação de Bruna, “a educação é um fator transformador na vida da população trans e as ações nesta área devem ser vistas não como iniciativas separadas, mas como um trabalho de políticas públicas, redução de danos, promoção da saúde e da inclusão social”. A estudante destaca que “abrir as portas da Universidade para a população trans é de suma importância para a formação de profissionais capazes de fomentar discussões que perpassam os temas gênero e sexualidade. É entender que um aluno fora da sala de aula é um multiplicador de conhecimento. Não  basta uma tese bem escrita, pois ela só circula no meio acadêmico, ao passo que um multiplicador alcançará muito mais resultados que uma leitura feita para a satisfação do ego e da vaidade do docente”.

Respeito e acolhimento

Desde 2015, a UFJF tem adotado medidas para promover o acesso e garantir a permanência dos alunos transgêneros na instituição. Naquele ano, o Conselho Superior (Consu) aprovou a resolução que dispõe sobre o uso do nome social no âmbito da Universidade.  Em 2017, a regra foi expandida, garantindo o direito à utilização do nome social em históricos, diplomas e certificados, expedidos pela UFJF.

“Quando eu entrei na Universidade ainda não havia utilização do nome social; fui a primeira pessoa que pediu. Hoje posso ter bolsas universitárias, diplomas e ser reconhecido pelo meu nome. A Universidade me reconhece como Eduardo”, conta o estudante do Instituto de Artes e Design (IAD), Eduardo Dias, natural de Cataguases (MG).

O discente reforça que a população trans é invisível e marginalizada. “Quando a gente fala que é trans, a sociedade nos vê apenas como travestis, principalmente as que estão na prostituição. Nosso papel, na universidade e na sociedade como um todo, é reafirmar nossa existência e mostrar que temos uma vida normal, igual a de todas as outras pessoas.”

Dias reconhece que o acolhimento da UFJF é um fator decisivo durante a entrada e a permanência dos estudantes. “Ter uma universidade que respeita o nome social é o principal. Se nós temos nosso nome respeitado, quer dizer que temos incentivo para permanecer. Eu admiro o fato de a UFJF fazer seu melhor para abraçar as diversidades, independente de raça, cor, gênero ou orientação afetivo-sexual. Eu espero que a nossa Universidade continue progressista e abraçando a todos nós.”

Júlia Jorge de Oliveira(à direita):  “Fiz o vestibular (de Música), em 2010, e concluí meu curso em 2016. Hoje sou efetiva, concursada no Conservatório, ou seja, tudo graças à Universidade, que me permitiu ter a titulação necessária para ser aprovada no concurso” (Foto: Luiz Carlos)

Militância

Natural de Juiz de Fora, Júlia Jorge de Oliveira é bacharela em Música pela UFJF, na modalidade Canto Lírico. Além disso, fez pós-graduação em Educação Musical e Educação Infantil pela Faculdade Mozarteum, em São Paulo, e é uma das fundadoras do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE).

“Considero muito importante uma data para se comemorar a visibilidade trans, pois é através deste recurso que as pessoas começam a conhecer a realidade da vida de uma pessoa trans, suas questões pessoais e sociais, suas demandas, necessidades, conquistas e todas as questões que permeiam o mundo transgênero”, diz Júlia.

Ela conta que a primeira graduação foi voltada para a área de Zootecnia, mas, por trabalhar paralelamente no Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano, houve a necessidade de aprimorar seus conhecimentos na área musical. “Assim que abriu o curso de Música da UFJF fiz o vestibular, em 2010, e concluí meu curso em 2016. Hoje sou efetiva, concursada no Conservatório, ou seja, tudo graças à Universidade, que me permitiu ter a titulação necessária para ser aprovada no concurso.”

Júlia ressalta que, em 15 de outubro de 2017, juntamente com amigas professoras trans, fundaram o IBTE. A prioridade do instituto é mostrar a outras pessoas trans que o estudo promove o empoderamento como um caminho para alcançar as conquistas e lembrar que a luta é diária. “O IBTE conta com professores graduandos, graduados, mestrandos, mestres, doutorandos e até doutores e pesquisadores de alto nível. O fato de sermos pessoas trans não nos impede de estudarmos, pesquisarmos e nos empoderarmos. É assim que lutamos e militamos para um mundo que nos respeite como seres humanos que somos.”

Universalização do ensino superior

“No país que mais mata travestis e transexuais no mundo, o Dia Nacional da Visibilidade Trans adquire fundamental importância, uma vez que marca a luta dessa parcela da população pelos direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal, à igualdade, à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, dentre outros”, destaca o aluno do curso de  especialização Relações de Gênero e Sexualidades: perspectivas interdisciplinares, Julio Mota.

O estudante diz que a data traz à tona debates ainda atuais, como o direito à utilização do nome social nos serviços públicos e privados e ao uso do banheiro correspondente à identidade de gênero autopercebida. De acordo com Mota, o acesso das pessoas trans ao ensino superior contribui para a diminuição das desigualdades históricas, causadas pela marginalização e estigmatização do grupo, propiciando uma maior inclusão no mercado de trabalho formal, o que ajuda a reduzir as desigualdades sociais. “Neste sentido, tornam-se necessárias, não só a implementação de ações afirmativas – como a política de cotas para ingresso de transexuais e travestis em universidades públicas – mas, também, mecanismos que combatam as discriminações e a violência sofrida no ambiente acadêmico, evitando a evasão educacional e viabilizando a permanência desses e dessas estudantes na universidade.”

Mota destaca a importância de fazer parte de uma instituição que possibilita o exercício de direitos básicos, como o uso do nome social. No entanto, segundo ele, ainda há a necessidade de promoção de ações afirmativas que combatam a transfobia. “É necessário que seja difundida a noção de que a universidade pública é um espaço ao qual as travestis e os/as transexuais pertencem, até mesmo para que adquiram essa compreensão e passem a ocupar em maior número o ambiente acadêmico.”

O diretor de Ações Afirmativas, Julvan Moreira de Oliveira, ressalta que as universidades devem ser firmes na apuração dos casos de transfobia. (Foto: Alexandre Dornelas)

Impacto social

A universidade tem, entre as suas funções, a tarefa de contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática, com a inclusão de grupos historicamente excluídos. De acordo com o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, o ingresso de pessoas trans na Universidade é uma conquista dos movimentos sociais.

“É muito difícil estar em uma universidade e, para a população trans, essa dificuldade é imensa. Ao entrar, o grupo apresenta neste espaço as suas pautas, fazendo com que a Instituição formule políticas públicas que promovam a sua inclusão no cotidiano escolar, superando o incômodo de educadores e educadoras, como de gestores e gestoras que anteriormente os marginalizavam e os invisibilizavam no ambiente universitário.”

Moreira afirma, ainda, que há a necessidade de a universidade ser mais proativa na identificação e, em seguida, na resposta às demandas e anseios da população trans. “Mas isso requer que as universidades estejam particularmente atentas às subjetividades e direitos do  grupo, o que só virá com a pressão desses grupos para que possamos investir mais tempo, esforço e recursos na formação e sensibilização não só dos estudantes, mas também dos professores e dos técnico-administrativos em educação (TAEs) em relação às sensibilidades transgêneras.”

O diretor de Ações Afirmativas ressalta que as universidades devem ser firmes em responsabilizar não apenas as pessoas que discriminam e abusam de estudantes trans, assim como professores e TAEs. “A UFJF, neste ponto específico, tem a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas como o canal para que a pessoa trans possa apresentar demandas não atendidas em algum espaço da Universidade.”

Cristina Simões Bezerra: ““A Universidade é um espaço educativo, formativo e pedagógico. É um lugar de dar visibilidade mas, além disso, de garantir todos os direitos, todo respeito e todo apoio institucional para que os alunos e alunas trans vivam a Universidade como  todos os outros estudantes” (Foto: Alexandre Dornelas)

Garantia de permanência

O aluno ou aluna trans da UFJF vítima de qualquer tipo de violência, preconceito, discriminação ou negação de direitos deve recorrer à Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas, para que possa ser acolhido e ter o acompanhamento necessário ao longo do processo. “Nós vamos escutá-los e descobrir se há alguma necessidade imediata. Se houver, nós vamos encaminhá-los para as redes internas ou externas da Universidade”, destaca a ouvidora especializada em Ações Afirmativas, Cristina Simões Bezerra.

Cristina aponta a necessidade de se formalizar a denúncia dentro da Universidade para que sejam tomadas as medidas administrativas necessárias e o caso seja solucionado. “Durante o processo, este aluno ou aluna vai sendo acompanhado pela Ouvidoria. Não apenas nesta situação, mas também em relação ao processo e sendo informado de todos os passos que tem dado. É importante que a Instituição seja informada, para que se torne responsável por esta ocorrência. Se não somos notificados, a situação cai em esquecimento ou silenciamento e pode gerar novas vítimas.”

A ouvidora acredita que em um cenário de tantos retrocessos e negações de direitos no Brasil e no mundo, é preciso reafirmar que a UFJF é pautada por uma política de respeito às diversidades. “A Universidade é um espaço educativo, formativo e pedagógico. É um lugar de dar visibilidade mas, além disso, de garantir todos os direitos, todo respeito e todo apoio institucional para que os alunos e alunas trans vivam a Universidade como  todos os outros estudantes. É fundamental que tenham seu acesso, sua permanência e o seu desligamento acompanhado pelas políticas públicas das ações afirmativas, garantindo assim seu direito à educação, que é o mais importante neste caso.”

Outras informações: (32) 2102-6919 (Diretoria de Ações Afirmativas-UFJF)