“Fiquem vivas. Se unam. Eles são covardes. Espero que a gente se fortaleça juntas.” Foi dessa forma que Anielle Franco encerrou sua participação no evento de enfrentamento às violências contra a mulher na universidade, realizado pelo Coletivo Marielle Franco, nesta quinta-feira, 8. Reforçando o conceito de “Sororidade e Resistência”, que deu nome ao seminário, Anielle participou da mesa de encerramento, destacando a importância do trabalho conjunto no combate às violências contra a mulher.
Irmã da ex-vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, ela agradeceu a homenagem do coletivo de mulheres da UFJF à memória da irmã. “Não há outra forma de seguirmos se não for juntas.”
Anielle, que antes atendia pelo sobrenome Silva, passou a adotar o Franco (uma contração de seu sobrenome Francisco) após a morte da irmã. “Acho que até hoje não vivi meu luto. Mas eu assumi esse legado e o local de fala que era da Marielle. Hoje me sinto preparada para falar dela e pedir justiça”, diz a professora e mestre em Letras e Jornalismo pela North Carolina State University (Universidade da Carolina do Norte).
Dados da UFJF
O evento contou ainda com a presença da diretora do Centro de Pesquisas Sociais (CPS) da UFJF, Célia Arribas, que apresentou os dados preliminares da pesquisa “Entre salas, corredores e laboratórios: percepções das/dos estudantes sobre violência contra as mulheres no ambiente universitário”. Segundo o levantamento, realizado com 633 estudantes em maio deste ano, 23% das estudantes já relataram ter sofrido algum tipo de violência na UFJF; 77,7% das alunas já sentiram medo de sofrer violência no ambiente universitário; e 78,3% já deixaram de circular ou permanecer na instituição por medo de violência.
A percepção é bem distinta daquela relatada pelos alunos do sexo masculino. De modo geral, 17,9% dos alunos se sentem inseguros ou muito inseguros na UFJF em comparação a 45,1% das alunas. Segundo Célia, praticamente a metade (47,2%) dos e das estudantes da instituição já denunciou ou conhece alguém que tenha denunciado uma situação de violência contra a mulher na UFJF.
“Sabemos que por diversos motivos muitas mulheres não formalizam denúncias pelo medo de represálias e do comprometimento não só de suas carreiras e vidas acadêmicas, como também de seus empregos. Ocorre que a ausência da formalização da denúncia e, consequentemente, da apuração dos fatos, acaba gerando um ciclo de impunidade que se perpetua fazendo novas vítimas.” A pesquisadora aponta ainda outro medo por parte das vítimas: serem duplamente violentadas. “A primeira violência vem do assédio a que foram submetidas e a segunda pela descrença e desconfiança em relação ao conteúdo de suas denúncias – procedimento, infelizmente, recorrente nessas situações, que acaba por intimidar as vítimas e fazer com que um possível processo de apuração das denúncias não tenha continuidade.”
Ainda conforme o levantamento, dentre as pessoas que fizeram a denúncia, 11,7% procuraram o DCE, os centros e diretórios acadêmicos (CAs e DAs) ou os coletivos. As coordenações de curso vêm em segundo lugar (11,2%). Ou seja, procura-se em primeiro lugar colegas ou a instância mais próxima dos/das aluno(a)s – no caso, as coordenações. As demais instâncias da UFJF também são acionadas, mas em menor escala: Ouvidoria Geral (8,7%), Ouvidoria Especializada (3,2%) e a direção da unidade (2,5%). As polícias Civil e Militar também receberam as denúncias (7,8%).
Uma das estratégias da pesquisa, conforme a diretora do CPS, foi perguntar por atos, pois muitas vezes o uso da palavra violência era relacionado apenas à criminalidade nas ruas, delinquência, tráfico, terrorismo. “É aquela história de um beijo não dói, uma cantada não dói, uma mão na perna não dói, uma música ou brincadeiras nas festas acadêmicas e nos trotes não doem, uma foto íntima repassada sem autorização não dói. É importante saber como e com qual frequência a violência se dá. E elas têm nomes, e é preciso que se diga, que falemos sobre elas. São ofensas, humilhação, assédio sexual, piadas, rankings, desqualificação, estupro, fotos na internet, difamação, cantada ofensiva, agressão física, empurrar, bater, passar a mão, ser obrigada a beber, ser drogada sem saber. São várias violências, algumas mais recorrentes, como o assédio e a intimidação da mulher, a violência psicológica”, ressalta a pesquisadora.
Rede Não Cala – USP
O seminário também recebeu a pesquisadora e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Ana Flávia d’Oliveira, para falar sobre a experiência do grupo de professoras que integram a Rede Não Cala, de Professoras e Pesquisadoras pelo Fim da Violência Sexual e de Gênero na USP.
Segundo Ana Flávia, o grupo surgiu em 2015, com o objetivo de reunir professoras fora do meio institucional. Após o primeiro convite, 90 pesquisadoras se reuniram na rede de forma voluntária. “Toda mulher sabe que existe assédio moral, sexual, institucional. Já foi alvo de piadas ou convites inadequados. Aí começamos a lembrar do passado e ver como a gente passava o pano.”
Ainda segundo a pesquisadora, é preciso fazer com que as universidades no país assumam suas responsabilidades e atuem na prevenção. A criação de cursos obrigatórios de gênero e direitos humanos é uma das propostas apresentadas por ela. “É preciso que as pessoas com mais poder assumam uma atitude firme (contra o assédio)”.
Problema mundial
Segundo a professora e articuladora do Coletivo Marielle Franco, Carolina Bezerra, o seminário foi uma forma de apresentar formalmente o coletivo à sociedade, bem como as discussões relativas à violência contra a mulher, sobretudo no atual contexto político. “Não é um problema particular das universidades brasileiras, vemos que é um problema mundial. E precisamos nos fortalecer, quebrar hierarquias e fortalecer os acolhimentos.”
A ouvidora especializada em Ações Afirmativas da UFJF, Cristina Bezerra, presente na abertura do evento, falou da importância de construir uma “resistência madura, unificada, e de buscar convergências” nesse momento. Também destacou a inadequação de, em pleno século XXI, ser preciso reunir mulheres para criar um evento e discutir ações de combate à violência contra a mulher. “Podíamos estar pensando em pautas mais produtivas, mas precisamos realizar um forte movimento de encarar esse processo de silenciamento e invisibilidade.”
O evento contou ainda com a exibição do documentário “Precisamos falar do assédio (2016)”, dirigido por Paula Sacchetta, a poesia de Duda Masiero e Laura Conceição, e performances das artistas Priscilla de Paula, Fernanda Vivacqua e Anelise Freitas. Houve ainda apresentações musicais com o grupo Batuquedelas, artes cênicas com o grupo As Ruths, e o encerramento com Joana Machado, que chamou os mais de 300 participantes para que cantassem a música “Triste, louca ou má”, de Francisco El Hombre, de mãos dadas, para fechar o evento.
A íntegra com as palestras de encerramento por ser conferida aqui.