Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) aponta adulteração de substâncias importadas para serem utilizadas na elaboração de medicamentos, prejudicando toda a cadeia produtiva, de vendas e, mais importante, os pacientes. A situação faz um alerta sobre a necessidade imediata de um controle de qualidade nacional relativo à composição de remédios, uma medida ainda inexistente no Brasil.
O estudo aponta que, nos últimos meses em Juiz de Fora, pessoas com problemas de artrose ficaram expostas, sem saber, ao risco de desenvolver sintomas como diarreia, cólica, náuseas e distensão abdominal – o motivo é que o medicamento para combater a artrose, tanto vendido em farmácias tradicionais como nas de manipulação, vinha com um composto que não devia estar na receita: lactose.
Os resultados científicos também contabilizaram que, entre lotes de 16 farmácias da cidade, que se voluntariaram anonimamente para participar da pesquisa, apenas cinco apresentavam o medicamento para artrose com todos seus componentes corretos. Entre os outros 11 lotes de remédios, nove revelaram conter, ao invés do condroitim sulfato (sulfato de condroitina), substâncias como amilose (amido) e, nos dois restantes, lactose.
Com isso, além de estar ingerindo um medicamento ineficaz que deve ser administrado por cerca de três a quatro meses, o paciente que possuir intolerância à lactose, por exemplo, ainda sofreria sintomas colaterais e danosos à sua saúde sem estar ciente do real motivo disto.
Pesquisa em defesa da população
A pesquisa da UFJF nasceu como um TCC de um aluno da Instituição, André Luiz da Cunha, e evoluiu para seu mestrado. Um dos responsáveis por orientar a pesquisa, professor do departamento de Bioquímica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFJF, Jair Aguiar, informa que “não foi analisado o produto finalizado, mas sim a matéria-prima utilizada para a realização do mesmo”.
A pesquisa foi realizada de forma interdisciplinar, em conjunto com o departamento de Química da UFJF e o de Bioquímica da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), e publicada em agosto do ano passado em uma revista internacional, a Carbohydrate Polymers, da editora Elsevier, a maior de literatura médica e científica. “Assim que soubemos os nossos resultados, decidimos que eles não deviam ficar restritos à comunidade acadêmica”, argumenta Jair. “São fatos que precisam chegar ao conhecimento da população.”
Controle nacional
A questão principal levantada pela pesquisa é a necessidade urgente de um controle de qualidade nacional relativo à manipulação de remédios, algo inédito no país. “Nós sugerimos que um critério estrito seja aplicado ao controle desses medicamentos, para que o usuário, os farmacêuticos e comerciantes possam ter uma garantia confiável de que estão trabalhando, de fato, com aquilo que está sendo especificado”, conclui Jair.“Todas farmácias recebem o certificado da distribuidora destes compostos, o que, teoricamente, comprova sua legitimidade”, explica.
Metodologia de análise mais detalhada
Formado em Farmácia pela UFJF e mestre em Farmacologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marcos Alves fez parte da diretoria técnica da Associação Nacional de Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag) e atua na área de farmácia magistral há cerca de 18 anos. O farmacêutico chama atenção para o fato de que o Brasil possui a “legislação mais pesada do mundo” referente à entrada de matéria-prima destinada a medicamentos. “Acontece que, como a metodologia de análise de uma pequena parcela desses compostos não é estritamente definida por lei, esse tipo de falha pode acontecer.”
“O resultado da pesquisa é um forte indício de que se trata do fruto de um estudo inovador e que beneficiaria todos na cadeia de produção e atenderia melhor os pacientes”, pondera. “É preciso redesenhar uma nova metodologia de análise mais minuciosa.”
Alves também observa que a falha na entrada e análise do produto dentro do território brasileiro afeta a indústria farmacêutica como um todo, não somente as farmácias magistrais. “A diferença seria o tamanho do lote e do número de medicamentos afetados”, afirma. “Uma metodologia eficiente supriria essa demanda de todo o setor.”
Risco à saúde pública
O pesquisador também explica que o erro nos compostos do medicamento pode variar de lote para lote e, com isso, o número de farmácias vendendo um remédio para artrose ineficaz pode variar de acordo com a leva que é entregue pelas distribuidoras, estabelecendo uma verdadeira roleta russa de chances para receber, ou não, um produto falsificado.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) trata o problema de medicamentos falsos como global e de risco à saúde pública. Em uma estimativa deste ano da Organização, o número de remédios falsificados pode chegar a representar uma fatia de 15% do mercado; neste caso, a OMS considera medicamentos além dos feitos em farmácias de manipulação, mas também os comercializados em farmácias convencionais.
A Organização Pan-americana de Saúde, que representa regionalmente a OMS, emitiu em documento considerações a respeito de medicamentos falsificados que ecoam o apelo dos pesquisadores. “Deve ser dada ênfase ao (…) estabelecimento de um sistema nacional de medicamento adequado”, alerta. “É responsabilidade do governo garantir que os medicamentos falsificados sejam retirados do mercado e suas fontes descobertas e erradicadas. Isso deve ser parte de seu sistema de controle de qualidade geral.”