“Ao cabo de 15 dias, chegaram até nós outros quatro gigantes. Vinham sem armas, mas sabemos, em seguida, que as haviam deixado escondidas entre as moitas (…). Parece que sua religião se limita à adoração do diabo. Julgam que, quando um deles está morrendo, aparecem dez ou doze demônios cantando e dançando ao seu redor. O demônio que provoca maior alvoroço e que é o chefe maior dos diabos é Setebos. Nosso gigante afirmava ter visto uma vez um demônio com chifres e pelos tão longos que lhe cobriam os pés e que expelia chamas pela boca e por trás.”
Esse é o relato do viajante italiano Antonio Pigafetta, durante expedição ao Brasil a bordo do navio Fernão de Magalhães, no século XVI. O diário de bordo desse viajante e de seus contemporâneos objetivam relatar à sua pátria os fenômenos e paisagens naturais das terras conquistadas – em descrição permeada por figuras monstruosas, perigos fantasiosos e descrições de lugares paradisíacos. Guiados pela fé, experiências pessoais e racionalidade, os relatos dos viajantes desse período foram analisados na pesquisa do mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Guilherme Schneider.
Intitulada “Guardiões do Éden: narrativas de encontros com criaturas maravilhosas na América Portuguesa – século XVI”, a dissertação elaborou um quadro geral da representação europeia do “maravilhoso” e do desconhecido no Novo Mundo. Schneider analisou relatos dos navegantes e expedicionários Américo Vespúcio, André Thevet, Jean de Léry, Hans Staden e Anthony Knivet.
Período de grandes navegações e conquistas do continente americano, o século XVI via também o cristianismo expandido na Europa, o que contribuiu para a interpretação da realidade. Em terras novas, os expedicionários traziam na bagagem o imaginário europeu, influenciado por crenças, mitos e narrativas cultivadas na Idade Média e na Atinguidade. “Eles entendiam os monstros como criaturas divinas que iriam ensinar algo aos homens”, explica.
Acreditava-se que quanto maior fossem os obstáculos enfrentados, maior seria a recompensa. A população tinha contato com os relatos pois as cartas dos viajantes eram lidas em público. Também eram enviados produtos para incentivar outros navegadores em busca de riquezas. “Afinal, que glória haveria numa aventura sem riscos e infortúnios? Que espécie de santo ou herói seria o viajante se não enfrentasse nenhum monstro?”, questiona.
Uma dessas criaturas novas que causou espanto é o bicho-preguiça, descrito pelo frade franciscano francês André Thevet: “Quem nunca o viu, certamente achará essa descrição inacreditável (…). É do tamanho de um mono africano adulto, apresentando uma barriga tão grande que chega quase a se arrastar no chão. A cabeça lembra a de uma criança, assim como também a cara (…). Quando preso, fica suspirando como uma criança que sente dores. Sua pele é cinza e felpuda como a de um ursinho. Tem patas compridas, cada uma com quatro dedos, três dos quais com unhas parecendo grandes espinhas de carpa, com as quais trepa nas árvores onde fica mais tempo que em terra. Quase não tem pelos na cauda, que mede três dedos de comprimento. Outra coisa realmente notável é que pessoa alguma jamais viu esse bicho se alimentando, nem mesmo os selvagens (…). Vigiando-o pelo espaço de 26 dias, pude constatar que ele não quis comer nem beber”.
Terra prometida
No século XVI, há percepções sobre o Brasil que o assemelha a um Éden ou a terra prometida. A origem desse conceito se dá por meio do entendimento do paraíso como lugar distante e desconhecido. A orientadora da dissertação, professora do Programa de Pós-graduação em História da UFJF, Denise Menezes do Nascimento, complementa: “o homem europeu transferiu para os indígenas o conceito de Adão e Eva; para eles, o Brasil era o paraíso perdido, e poder adentrá-lo, ter contato com o inocente, era lidar com o maravilhoso”.
A pesquisa aponta como o conceito do maravilhoso é residual na sociedade, percebido atualmente, em outras formas, como por exemplo, na crença folclórica. Entretanto, o autor ressalta que “a ciência não explica tudo; o ser humano gosta de acreditar no maravilhoso”.
Outras informações: (32) 2102-3129 (Programa de Pós-graduação em História da UFJF)