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Pesquisadores se reúnem para debater os quadrinhos na academia e para além do entretenimento

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Por Monique Campos

 

O tema da pesquisa acadêmica em histórias em quadrinhos foi o que conduziu o debate realizado na noite da quarta-feira, 27 de maio, na programação do HQWeek. O evento contou com a participação do designer, professor e pesquisador Bruno Porto, do professor do Instituto de Artes e Design da UFJF e pesquisador, Felipe Muanis, e a da mestranda pelo PPGCOM/UFJF, Laura Sanábio. O organizador do evento, pesquisador e membro do Laboratório de Mídia Digital da Faculdade de Comunicação da UFJF, Stanley Teixeira, iniciou as discussões com uma questão-chave da pesquisa nos tempos atuais: o interesse da academia pelas histórias em quadrinhos e também de estabelecer um olhar sobre as HQs para além do mundo do entretenimento.

 

Muanis considera que há uma mudança em curso na forma como a sociedade percebe o quadrinho, antes visto com muito preconceito. Hoje há um crescimento de autores e publicações interessantes, além do aumento do consumo de HQs. Porém, ainda há um problema na academia que é o de desconsiderar o entretenimento como um campo teórico. Para o professor, o quadrinho “vai ser sempre entretenimento e não há nada de mau nisso” e quando está associado ao jornalismo ou à história não deixa de ser entretenimento. “Devemos rever o pensamento de como se o entretenimento fosse uma coisa que derrubasse a possibilidade do quadrinho ser pedagógico, ser informativo”, explica. 

 

Porto sugere pensar no termo entretenimento como algo bem feito, que é prazeroso de se ler. Ele lembrou dos manuais de instrução para o exército feitos por Will Eisner, em que o autor utilizava o “multimodal” dos quadrinhos (verbal e visual) para uma função que não era especificamente de entretenimento, mas facilitava a assimilação. Exemplificou ainda como uma aula de história sobre o holocausto pode ser possível com a leitura da obra Maus. Porto, que é doutorando na Tillburg University e atualmente reside na Holanda, conta que no “velho mundo” o quadrinho ainda é visto como “banda desenhada” (remetendo à origem das publicações em tirinhas em jornais), diferente da conceituação que se deu nos Estados Unidos, em que quadrinho é comics e mudanças no estilo fizeram surgir a graphic novel (na tradução, novela gráfica). O próprio vínculo dos quadrinhos com as histórias de super-heróis popularizou o formato da revista em quadrinhos. Ele conta que vive uma experiência diferente realizando pesquisa em uma universidade européia, inclusive seus orientadores são das áreas de neurolinguística e de etnografia digital e não estão em departamentos de comunicação.

 

A partir das pesquisas na área do jornalismo em quadrinhos é possível perceber que o entretenimento está evidente nas produções, segundo comenta Laura Sanábio. Para ela, o jornalismo traz uma cultura de se distanciar do entretenimento, mas o crescimento das produções em quadrinhos dentro desse campo consegue demonstrar o estabelecimento de um novo gênero. “Cabe sim aspectos do jornalismo, com linguagem própria, que se apropria de outros meios para montar o material que é único: não é só jornalismo e não é só quadrinhos”, enfatiza. A pesquisadora menciona que há, na academia, uma dificuldade de se perceber que uma área do conhecimento absorve muito de outras (como acontece com jornalismo e artes). Dessa forma, o gênero que estuda permite demonstrar que muito da credibilidade do jornalismo é levada para os quadrinhos e a possibilidade do entretenimento é levada para o jornalismo.

 

A correlação entre áreas é bem clara, conforme a perspectiva apresentada por Muanis. Quadrinho, design, cinema e televisão estão muito próximos. “Pra mim interessa discutir imagem narrativa independente do espaço midiático onde isso ocorre”, defende. Ele conta que sempre foi leitor de quadrinhos e sempre foi um pesquisador de quadrinhos por natureza, assim como acontece na área do cinema. Exemplifica ainda que começou a escrever sobre quadrinhos quando iniciou o doutorado, momento em que pesquisava televisão; esses e outros diálogos entre campos de estudo, percursos e teorias são contínuos e muito reveladores, na sua avaliação. Retomando o tema posto em debate do entretenimento, Muanis aponta para uma origem dos quadrinhos nos jornais do século XIX e chama a atenção para a relação das HQs com as ilustrações do século XVIII voltadas à crítica social. “Isso é entretenimento e informação”, ressalta.

 

HQtrônica

Num segundo momento das discussões, sobretudo a partir das provocações apresentadas por Teixeira sobre os estudos relacionados ao suporte e mudanças de linguagens, Bruno Porto lembrou do neologismo criado pelo professor e pesquisador Edgar Franco: HQtrônica. O termo faz referência à assimilação de características de outras linguagens, uma forma híbrida de histórias em quadrinhos. Porto comenta sobre o crescimento da produção de quadrinhos em suporte digital, cenário marcante da geração que trabalha com animação e que, inclusive, aprendeu a criar com as ferramentas digitais. Laura menciona algumas HQs publicadas primeiramente na web e que depois foram transformadas em livros ou revistas, um “movimento contrário” também existente no cenário contemporâneo.

 

Os convidados comentaram sobre o trabalho de quadrinistas que publicam no Instagram, trazendo uma configuração completamente diferente do que estava estabelecido no universo dos quadrinhos impressos. O Instagram trouxe possibilidades para o formato, para a experiência de leitura e visualização (o gestual, de passar páginas), conforme destaca Porto. Ele compara as mudanças atuais ao que aconteceu quando a tirinha saiu do jornal impresso e foi para as revistas em quadrinhos, ganhando layouts inteiros de página. Essa “saída” do jornal também propiciou mudanças nas temáticas das HQs. Já Muanis ressalta que os quadrinhos para celular trazem outra configuração, outro sentido de leitura e entendimento do que é a história. A linguagem se modifica em função do suporte, assim como permite novas formas de consumo e distribuição do trabalho artístico.

 

“Não é como você adaptar uma pagina impressa”, complementa Porto. “Se observarmos a página e a leitura, temos que pensar o quadro totalmente diferente. O jeito que o olho percorre o quadro ou página não é o mesmo”. O designer e pesquisador diz que no continente asiático há uma indústria de quadrinhos para celular, diferente do que temos no Brasil e mesmo do que há no mercado europeu. A forma de distribuição dessas HQs digitais também é uma outra realidade, já que são disponibilizadas em plataformas e por meio de modelos de assinaturas.

 

Teixeira e Sanábio comentaram sobre a conjuntura da pandemia que levou à interrupção da distribuição de edições impressas de HQs e as relações que estão sendo estabelecidas com os usuários tecnológicos. Enquanto Porto destaca que mais pessoas têm experimentado a leitura nos suportes digitais, Muanis ressalta o contato mais frequente com os quadrinhos, porque o acesso às produções aumenta a partir das redes. Para ele, proporciona um mercado que funciona. Laura exemplifica com situações atuais em que quadrinistas buscam financiamento coletivo e também interatividade com o público, oferecendo possibilidades de escolha de personagens que gostariam de ver nos quadrinhos que serão publicados nos dias posteriores, nas redes.

 

Para Bruno Porto, o público está experimentando e autores independentes buscando caminhos na cultura do digital. No entanto, ainda há toda uma problemática que gira em torno da “desmaterialização” do quadrinho, se analisado o ambiente digital. O grande desafio, na sua opinião, é considerar o comprador e o colecionador nesse cenário, já que o público compraria e colecionaria HQs digitais, que não estão no suporte físico. Mas o quadrinho digital pode ser analisado sob o viés das trajetórias de duas outras indústrias, que encontraram seu lugar nessa “desmaterialização”. “Quando o quadrinho conseguir oferecer uma vantagem como a indústria da música e a do cinema ofereceram pela comodidade digital, aí ele engrena. Eu acho”, vislumbra o designer e pesquisador.  

 

Sobre os convidados:

Bruno Porto é designer, professor e atualmente pesquisa aspectos da comunicação visual nos quadrinhos em seu doutorado na Tillburg University, na Holanda. Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Gestão Empresarial pela Universidade Cândido Mendes e bacharel em Desenho Industrial pela Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro. Foi coordenador do curso de design gráfico do centro universitário IESB, tendo lecionado também no Raffles Design Institute, em Xangai, e no Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro. É autor de livros e textos sobre design gráfico e comunicação. É membro do conselho editorial da Serifa Fina Editora, pesquisador do GIBI – Grupo de Pesquisa em História em Quadrinho do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB, coordenador do canal Eurocomics e também escreve para o site Raio Laser.

 

Felipe Muanis é professor associado no Instituto de Artes e Design no Curso de Cinema e Audiovisual e da Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordena o ENTELAS – grupo de pesquisa em conteúdos transmídia, convergência de culturas e telas. Também é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre e graduado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pós-doutorado na Ruhr-Universität Bochum, Alemanha, com pesquisa em quadrinhos documentais. Foi professor visitante na Universität Paderborn (2010) e no Institut für Medienwissenschaft da Ruhr Universität Bochum (2015-16), ambas na Alemanha. É autor dos livros Convergências Audiovisuais: linguagens e dispositivos (2020), A Imagem Televisiva: autorreferência, temporalidade e imersão (2018) e Audiovisual e Mundialização: televisão e cinema (2014).

 

Laura Sanábio é mestranda em comunicação pelo PPGCOM/UFJF, na linha de pesquisa Competência Midiática, Estética e Temporalidade. É bolsista da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UFJF, graduada em Jornalismo pela UFJF e atua em diferentes áreas da comunicação, com ênfase em produção científica. Foi bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) da FACOM/UFJF entre 2015 e 2017. Atualmente pesquisa jornalismo em quadrinhos. É integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Midiáticas e Dialogias, na linha “Narrativas em mutação e suas interfaces”.