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A Arte da Subversão Lúdica: Como Quebrar as Regras é uma Estratégia para Vencer

Autor: Emerson Berg Jorge Pereira (ebergp@gmail.com)
Revisores: Rock Fagundes, João Lucas Silva

Em qualquer jogo, as regras são a realidade incontestável. Elas definem o que é possível, o que é proibido e, em última análise, o caminho para a vitória. Jogar dentro desses limites é a base da competição. No entanto, os jogadores mais astutos e bem-sucedidos da história perceberam uma verdade fundamental: a vitória muitas vezes não está em jogar melhor dentro das regras, mas em encontrar maneiras de transcendê-las. Explorar e “quebrar” os princípios fundamentais de um jogo não é trapaça; é a expressão máxima da maestria estratégica, criando uma nova camada de jogo onde as chances de vitória se multiplicam.

Esta estratégia pode ser observada de forma mais pura e poderosa no universo dos jogos de cartas colecionáveis, como Magic: The Gathering.

Como Nove Cartas Revolucionaram um Jogo (E Porque Você Nunca Poderá Jogar com Elas)

Magic: The Gathering é construído sobre pilares básicos que todos os jogadores devem seguir. As partidas são uma sequência de turnos alternados, onde os jogadores têm a oportunidade de realizar algumas ações, tais como:

Comprar uma carta do baralho no início do turno;

Baixar um terreno (land), usualmente utilizado para gerar mana;

Conjurar magias, utilizando mana disponível;

Declarar um ataque.

Para melhor entendimento, a mana é utilizada para “pagar” pelas suas magias. No primeiro turno, o jogador costuma baixar apenas um terreno, sua fonte inicial de mana, o que o permite conjurar uma magia de custo um. No segundo turno, já com dois terrenos, é possível lançar uma magia de custo dois ou duas magias de custo um, e assim por diante.

Power Nine' de Magic: The Gatheting

Power Nine’ de Magic: The Gatheting

Mas e se fosse possível simplesmente ignorar essas regras? É exatamente isso que as lendárias ‘Power Nine’ – as nove cartas mais poderosas e famosas de Magic – permitem que se faça. Elas são tão revolucionárias porque quebram as regras de forma dramática e decisiva, das seguintes formas:

Quebrando a Regra dos Terrenos: Cartas como Black Lotus e os Moxes (Ruby, Sapphire, etc.) geram mana instantaneamente e sem custo; como não são terrenos, podem ser baixados sem restrição de quantidade. Elas permitem que um jogador faça, no primeiro turno, o que as regras padrão permitiriam apenas no quarto ou quinto turno. Isso quebra a curva de poder estabelecida, concedendo uma aceleração avassaladora.

Quebrando a Regra de Compra de Cartas: Ancestral Recall permite comprar três cartas e pode ser utilizada já no primeiro turno. Em um jogo onde card advantage (vantagem em número de cartas) é crucial, quebrar a regra básica de compra aumenta as opções de magias que podem ser feitas.

Quebrando a Regra dos Turnos: Time Walk concede um turno extra ao jogador. É a quebra mais literal possível da regra fundamental de alternância de turnos. Um turno extra é um terreno extra em jogo, uma carta extra na mão, uma nova oportunidade de fazer magias e atacar um oponente.

A vantagem que essas cartas proporcionam é tão brutal, que gerou todo um novo conjunto de regras. Não havia restrições na construção de baralho no lançamento do jogo, em 1993. A regra que limita o número de cópias de cada carta a quatro, à exceção de terrenos básicos, foi introduzida em 1994, para conter baralhos que utilizavam um número irrestrito de Moxes e Black Lotus para fornecer mana para combinações de cartas como Channel e Fireball, que finalizavam a partida no primeiro turno. Hoje as ‘Power Nine’ não são mais impressas, e são restritas a uma ou nenhuma cópia no baralho, dependendo das regras de construção adotadas.  A Black Lotus é provavelmente a mais valiosa carta de Magic: The Gathering, cotada em R$200.000,00.

Jogar com essas cartas não é simplesmente “jogar bem”, é operar em um meta-nível de regras, onde os limites que constrangem outros jogadores simplesmente não se aplicam a você. A vitória deixa de ser uma probabilidade e se torna uma quase certeza.

A Sorte que Virou Regra: Dados Duplos no Monopoly

Outros jogos embutem mecanismos de “quebra de regra” em sua própria estrutura, como no Monopoly.

A regra padrão é mover-se pelo tabuleiro baseado na soma de dois dados de seis faces. Rolar dados duplos, no entanto, concede ao jogador um turno extra, permitindo que ele se mova novamente e possa comprar mais propriedades. Em um jogo sobre controle espacial e economia, quebrar a regra de “um movimento por turno” é uma vantagem monumental.

Curiosamente, o jogo também impõe uma contrarregra para equilibrar esse poder: três dados duplos consecutivos mandam o jogador para a prisão. Este é um princípio vital do design de jogos: quebras de regras poderosas devem ter riscos ou limites correspondentes para manter a integridade competitiva. A quebra deixa de ser uma falha e se torna um recurso estratégico de alto risco e alta recompensa.

A Evolução das Regras: O Roque no Xadrez

Às vezes, a quebra de regra é tão bem-sucedida que se torna a própria regra, como o roque no Xadrez.

Em suas origens, o Xadrez era um jogo muito mais lento. Para torná-lo mais dinâmico, novas regras foram surgindo ao longo dos séculos. O roque – a jogada que move o rei duas casas em direção à torre, que então “pula” e fica ao seu lado – foi uma dessas inovações revolucionárias. Ele quebra dois princípios básicos de uma vez: o de que apenas uma peça se move por jogada e o de que o rei só pode mover uma casa.

O roque foi, em sua essência, uma “quebra de regra” tão genial e balanceada que foi formalizada e integrada ao cânone das regras. Ele subverte princípios de movimento para criar uma exceção estratégica que eleva a profundidade do jogo. É uma lição de que quebrar regras, quando feito para melhorar a experiência, pode ser a força motriz da inovação em qualquer jogo.

E no Videogame? Os Speedrunners!

O fenômeno dos speedrunners – jogadores que tentam finalizar um jogo no menor tempo possível – é a maior prova moderna dessa tese. Além de memorizar caminhos e mapas do jogo, alguns speedrunners estão interessados não só em vencer dentro das regras, mas em explorar falhas de programação (glitches) para atravessar paredes, pular fases inteiras ou duplicar itens. Sua vitória é medida pela capacidade de quebrar a realidade do jogo de forma mais criativa e eficiente que todos os outros.

Conclusão: A Maior Regra é Não Há Regras (Imanentes)

Desde as ‘Power Nine’ de Magic, que distorcem a realidade do jogo a seu favor, até os dados duplos do Monopoly e a manobra evolutiva do roque no xadrez, fica claro que a busca pela vitória raramente é linear. A verdadeira maestria reside na capacidade de compreender as regras tão profundamente que se pode identificar suas fraquezas, exceções e pontos de ruptura.

Quebrar as regras definidas de um jogo não é um desrespeito ao espírito da competição, é a sua celebração mais pura. É a prova de que a inteligência, a criatividade e a audácia do jogador são os únicos limites reais em qualquer jogo. Da próxima vez que você se sentar à mesa para jogar, não pergunte apenas “O que as regras me permitem fazer?”. Pergunte: “O que as regras não me impedem de fazer?”. A resposta pode ser o seu caminho para a vitória.

Referências

Zimmerman, E., & Salen, K. (2003). Rules of play: Game design fundamentals. Boston, MA: MIT Press.

Castling. Disponível em: <https://www.chess.com/terms/castling-chess>. Acesso em: 6 out. 2025.

Power Nine. Disponível em: <https://mtg.fandom.com/wiki/Power_Nine>. Acesso em: 6 out. 2025.

The original Magic rulebook. Disponível em: <https://magic.wizards.com/en/news/feature/original-magic-rulebook-2004-12-25>. Acesso em: 6 out. 2025.

WIKIPEDIA CONTRIBUTORS. Courier chess. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=Courier_chess&oldid=1288712934>.

Disponível em: <https://www.hasbro.com/common/instruct/monins.pdf>. Acesso em: 6 out. 2025a.

Disponível em: <https://www.ligamagic.com.br/?view=cards/card&show=1&card=Black%20Lotus>. Acesso em: 6 out. 2025b.