O debate da qualidade está presente nos estudos televisivos desde os anos 1980 e foi incorporado na legislação da mídia de diversos países. Apesar de controverso e muitas vezes desacreditado pelo seu possível caráter de subjetividade, a discussão e a proposição de indicadores como os vistos nos trabalhos de Mulgan (1990), Machado (2000), Cardwell (2007), Pujadas (2013) e Borges (2014) contribuem para a elaboração de critérios objetivos a partir dos quais se pode discutir a qualidade nos produtos ficcionais e também contribuir na criação de um repertório fundamental de programas de qualidade.
No mundo acadêmico anglo-saxão, muitos autores têm trabalhado com o conceito de qualidade na televisão. O debate no Reino Unido começou na década de 1980 e envolveu muitos atores com o objetivo de definir estratégias para regular o mercado e preservar a responsabilidade social da televisão. A BBC tem sido reconhecida como referência na produção de programas de qualidade desde a sua criação, como argumentaram Brandt (1981; 1993), Caughie (2000), Jacobs (2000), Cooke (2003) e Borges (2009). Mais recentemente, devido à proliferação das séries de televisão produzidas pelos Estados Unidos e a concorrência com as séries britânicas nos mercados nacionais e internacionais, o debate se acirrou e autores como Jancovich e Lyon (2003), Creeber (2004a, 2004b), Hammond e Mazdon (2005), Nelson (2007), McCabe e Akass (2007), Mittell (2013) entre outros, têm contribuído para este debate.
Nos estudos ibero-americanos, a discussão sobre a qualidade na televisão foi iniciada por Machado (2000) em um artigo seminal intitulado Televisão: uma questão de repertório, em que o autor reenquadra a questão da qualidade na televisão e chama a atenção para a importância da televisão como um meio estético como muitos outros, tais como o cinema, a literatura e o teatro, propondo um repertório de obras criativas produzidas para a pequena tela. Com o objetivo de responder a esta chamada, La Ferla (2008) propõe um repertório de programas argentinos que exploram o potencial criativo do meio, estendendo esta discussão ao âmbito latino-americano.
Na academia portuguesa, o livro Discursos e práticas de qualidade na TV (BORGES; REIA-BAPTISTA, 2008) se dedica a analisar tanto os diversos discursos existentes sobre o conceito quanto as práticas de qualidade na ficção, no jornalismo e nos programas infantis. O livro Qualidade na TV pública portuguesa (BORGES; 2014) também a discussão da qualidade sob a perspectiva do serviço público a partir de uma análise dos programas da RTP2.
Na academia brasileira, Fechine e Figueroa (2008) realizaram um trabalho notável sobre os produtos audiovisuais desenvolvidos pelo Núcleo Guel Arraes na Rede Globo. Desde seus primeiros anos, a Rede Globo apropriou-se do discurso de qualidade no panorama da radiodifusão brasileira a fim de diferenciar-se de outros canais de televisão, criando e disseminando o que é conhecido como “Padrão Globo de qualidade”. A autora destaca que, naquele momento, o conceito de qualidade estava focado em programas intrinsecamente relacionados à identidade nacional, à responsabilidade social, ao compromisso com a democracia e o pluralismo cultural, bem como à renovação dos formatos televisuais. Em 2011 o Obitel (Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva) desenvolve o estudo Qualidade na ficção televisiva e participação transmidiática das audiências (LOPES; OROZCO, 2011) em que mapeia as produções do ano 2010 dos canais privados e públicos dos onze países da rede, discutindo tanto a qualidade das produções quanto as diferentes formas de interpelação das audiências a partir das estratégias de transmidiação propostas pelas emissoras.
A partir destes estudos, propusemos expandir o escopo da análise audiovisual da ficção seriada para o contexto ibero-americano, contemplando num primeiro momento Portugal e a seguir Espanha. Nosso intuito é analisar as séries iberoamericanas produzidas entre 2010 e 2020 a fim de promover a discussão sobre a interrelação entre os processos e as características intrínsecas à produção, as formas de interação propostas e os modos de engajamento dos consumidores-fãs a partir do estudo dos conceitos de qualidade no audiovisual e literacia midiática.
O desenvolvimento das duas etapas realizadas podem ser vistas nos desdobramentos dos projetos sobre a produção seriada de ficção brasileira e portuguesa.
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