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49º Informativo – Peixe e DNA

1 – Cientistas revertem evolução e devolvem barbatanas a peixe

2 – “DNA” artificial dá pistas sobre surgimento da vida

 

1 – Cientistas revertem evolução e devolvem barbatanas a peixe

 

Experimento, inédito, foi feito por grupo da Universidade Stanford, EUA, que estuda a genética da espécie há 11 anos. Animais de água doce, que perderam os apêndices há mais de 10 mil anos, tiveram restaurada característica de seu ancestral marinho

Claudio Angelo escreve para a “Folha de SP”:
Os criacionistas costumam dizer que Darwin está errado porque nunca viram uma espécie se transformar em outra. Pois cientistas americanos acabam de fazer quase isso: transformaram um peixe de água doce no seu ancestral marinho, revertendo a evolução.
A pesquisa, inédita, foi apresentada no último dia 27 nos EUA a uma plateia de cientistas pelo biólogo David Kingsley, da Universidade Stanford. Foi um dos pontos altos do 74º Simpósio de Cold Spring Harbor sobre Biologia Quantitativa.
O resultado culmina um esforço de 11 anos de Kingsley e seus colegas para decifrar o mais novo animal modelo da biologia, o peixinho esgana-gata (Gasterosteus aculeatus).
O que os pesquisadores fizeram foi devolver a esgana-gatas de água doce, que habitam lagos nos EUA, um par de barbatanas pélvicas em forma de espinho. Essas estruturas estão nas populações marinhas do bicho, mas foram perdidas em algumas populações de lagos nos últimos 10 mil anos.
O grupo também devolveu aos peixes lacustres as placas ósseas externas que caracterizam os esgana-gatas marinhos, mas que igualmente se perderam na água doce.
Reversão
“Nós revertemos dois grandes traços morfológicos”, disse Kingsley à Folha. “Ganho ou perda de um membro é um grande traço. É o tipo de coisa com base na qual os zoólogos classificam organismos em diferentes categorias.”
Ambas estruturas são usadas para defesa dos esgana-gatas, que são refeição de diversos predadores no mar. Os espinhos, na pelve e no dorso, ferem predadores de boca mole, como trutas. Em alguns dos lagos em que os peixinhos ficaram presos no fim da Era Glacial, porém, maiores inimigos dos esgana-gatas são insetos. Eles agarram suas vítimas justamente pelos espinhos da pelve.
Onde há pressão de insetos e pouco cálcio na água, a evolução acabou por eliminar os espinhos. Quanto à armadura óssea, ela se perdeu em todos os esgana-gatas de água doce. “Isso dá mais flexibilidade e velocidade de nado”, afirmou Kingsley. Restava descobrir de que forma isso aconteceu – o mecanismo molecular da perda – e, por fim, tentar emular a ação da seleção natural.
Modelo à espera
Kingsley decidiu estudar o esgana-gata em 1998. “Havia milhares de trabalhos sobre ele, mas ninguém havia feito sua genética molecular. Era um animal modelo esperando para acontecer”, recorda-se.
Os cientistas começaram coletando animais de várias populações de mar e de lago, com características diferentes (presença ou não de espinhos pélvicos ou armadura), e cruzando-os. Observando os traços em milhares de filhotes e analisando o seu DNA, mapearam os genes que respondiam por eles.
O gene que controla quase toda a formação dos espinhos pélvicos, por exemplo, foi identificado: era o Pitx1. Mas Kingsley e colegas ainda precisavam saber o que acontecia no gene para fazer a diferença entre a presença da pelve no animal marinho e sua ausência no esgana-gatas de água doce.
Para isso, eles sequenciaram o Pitx1 dos dois peixes. Aí veio a surpresa: “Não havia diferença alguma na parte codificante do gene”, conta Kingsley. “Isso faz sentido, porque o Pitx1 está envolvido na formação da glândula ptuitária e da mandíbula. Não dá para zoar com todas as funções de um gene desses.”
O segredo estava nas sequências de DNA que não trazem a receita para a fabricação de nenhuma proteína (e que até algum tempo atrás eram consideradas mero “lixo” genético), mas que controlam a intensidade com que o gene se liga em certos tecidos e em certas fases do desenvolvimento.
Para descobrir que sequências eram essas, o grupo quebrou o DNA em pedacinhos e injetou cada pedacinho em um embrião de peixe para ver no que dava. A busca levou anos.
Finalmente, o time chegou à “região mágica” de controle. Os peixes de lago tiveram em sua evolução um trecho de DNA apagado que estava intacto nos ancestrais marinhos. O tamanho do bloco deletado variava entre as populações, mas a região era sempre a mesma.
A prova final foi feita por um aluno de Kingsley, Frank Chan: pegar o trecho de DNA do peixe marinho e injetá-lo no lacustre. “Ficamos maravilhados em ver que isso funciona”, disse o biólogo. “A região de controle do Pitx1 do peixe marinho gera um peixe que tem uma estrutura pélvica de novo.” O mesmo foi feito para a sequência reguladora do gene Ectodysplasin, que controla a armadura.
Abaixo as mariposas
“Esse é o mais belo exemplo demonstrando um mecanismo molecular de evolução que eu já vi”, diz o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, que assistiu à palestra de Kingsley.
“A seleção natural que atuou sobre esses peixes pode agora ser explicada quimicamente, não apenas como uma abstração. Nossa geração foi apresentada à evolução usando como exemplo mariposas na Inglaterra. Nossos filhos provavelmente aprenderão com o trabalho de David Kingsley.”
A pesquisa traz uma implicação intrigante: grandes transições evolutivas, como a perda ou o ganho de membros, podem ocorrer sem alterações na sequência de um gene e em um só passo – como aconteceu com os esgana-gatas -, e não por pequenas mutações, como prevê o darwinismo padrão.
“O quanto isso pode ser generalizado não dá para saber”, diz Nóbrega. “Mas só o fato de Kingsley mostrar que grandes transições podem ocorrer já é interessante o suficiente.”
(Folha de SP, 14/6)

 

2 – “DNA” artificial dá pistas sobre surgimento da vida

Molécula replicadora feita com aminoácidos se monta sem auxílio de enzimas. Estudo, publicado no periódico “Science”, tem como coautor Leslie Orgel, pai da hipótese do mundo de RNA, morto em 2007

Ricardo Mioto escreve para a “Folha de SP”:
Pesquisadores nos EUA criaram uma molécula artificial que pode explicar como ocorreu a transição entre o mundo sem vida e o aparecimento do RNA (e depois do DNA), um dos maiores enigmas da ciência. O achado ajuda a criar hipóteses sobre como a vida emergiu na sopa química dos oceanos primordiais da Terra, há mais de 3 bilhões de anos.
Nos organismos existentes hoje, o código genético está escrito em DNA (ácido desoxirribonucleico), que carrega a receita para fazer proteínas (as moléculas que fazem tudo na célula). O DNA, no entanto, é complexo demais para ter sido o primeiro transmissor de informação genética.
Uma parte da fita do DNA, onde ficam as bases nitrogenadas, é responsável pelo pareamento (A-T e C-G) que permite a transmissão da informação. O resto do DNA é estrutura auxiliar: um esqueleto feito de fosfatos e açúcares onde as bases nitrogenadas se ligam.
A montagem da fita, entretanto, só pode ser feita com a ajuda de proteínas especiais que aceleram reações químicas, as enzimas.
Ao criar o tPNA (o ácido nucleico peptídico de tioéster), uma molécula que consegue agregar bases nitrogenadas sem precisar de enzimas, os cientistas mostraram que é possível que existissem moléculas mais simples do que o DNA transmitindo informação. O tPNA é mais simples até do que o RNA (ácido ribonucleico), que a maioria dos cientistas acha hoje que precedeu o DNA no papel de replicador.
Esqueleto novo
Os cientistas do Instituto de Pesquisas Scripps e do Instituto Salk, ambos na Califórnia, criaram um novo tipo de esqueleto, feito de aminoácidos, os “tijolos” que formam as proteínas. Os aminoácidos seguram as bases nitrogenadas com muito menos vigor do que os fosfatos e açúcares do DNA. Isso faz com que as bases possam se agregar ao tPNA mesmo sem a presença de enzimas.
Sabe-se que os oceanos da Terra primitiva eram repletos de aminoácidos. Com a prova agora de que bases nitrogenadas podem se fixar em uma estrutura de aminoácidos, existe uma pista sobre como as informações se transmitiam antes do surgimento do RNA.
O estudo foi publicado na última edição da revista “Science”. Um de seus autores foi o químico britânico Leslie Orgel, morto em 2007. Orgel foi o pai da teoria do “mundo de RNA”, que estabelecia o RNA como predecessor do DNA.
O RNA hoje auxilia o DNA no organismo humano, além de carregar o genoma de certos vírus. Orgel propôs que ele tenha reinado como único replicador antes do surgimento do DNA.
“Apesar de a hipótese consensual para a molécula que originou a vida ser o RNA, este é considerado por alguns muito complexo para ter sido a primeira molécula capaz de se autorreplicar. Logo, especula-se que polímeros mais simples teriam antecedido o RNA e depois sido substituídos por ele”, diz o biólogo goiano Paulo Amaral, da Universidade de Queensland, na Austrália.
“Por outro lado, também é consenso que esses sistemas ainda são muito artificiais. Não temos ideia do que realmente estava lá há cerca de 4 bilhões de anos”, afirma.
Falta agora mostrar se o tPNA pode se replicar indefinidamente. “Eles não mostraram isso”, diz Amaral. “Nem que o sistema evolui (no sentido de evolução darwinista). Mas o primeiro passo foi dado.”
(Folha de SP, 16/6)