Em sua 20a edição, o Vamos Ler! convida a todos a refletirem sobre a importância de ferramentas que tornem a leitura e a literatura acessíveis a toda população. Este mês, conversamos com o jornalista e escritor Marcos Lima, responsável pelo canal de Youtube “Histórias de Cego”. O amor à leitura e à escrita, que surgiu ainda na infância, fez com que Marcos desse vida a um blog e depois ao canal. Em 2020, ele lançou um livro com suas melhores crônicas. Confira nossa entrevista:
VL: Marcos, sabemos que a primeira infância, que é normalmente o período da alfabetização, é crucial para estimular o interesse das crianças pela leitura. E foi nesta fase que você perdeu a visão. Como foi seu processo de alfabetização e quais ferramentas o ajudaram a ingressar no universo da leitura?
ML: A leitura sempre fez parte da minha vida, meus pais, principalmente meu pai sempre leu muito pra mim. Eu perdi realmente a visão com 6 anos, eu enxergava pouco e fui perdendo. Foi no meu último ano do jardim de infância, então não prejudicou a minha alfabetização, já fui alfabetizado no sistema braille, em uma escola especial para cegos chamada, Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. E eu já fui alfabetizado em braille. Então minhas leituras, minhas primeiras leituras foram em braille, mas logo eu fui descobrindo outras formas de ter contato com a literatura, né? Primeiro através de fitas cassetes. Desde quase antes da minha alfabetização, já pegava em bibliotecas especializadas fitas cassetes com histórias gravadas, as pessoas, voluntários liam histórias infantis, gravavam em áudio e eu levava pra casa e escutava e isso me fez viajar muito pelo mundo dos livros
VL: Dono de um canal com mais de 300 mil seguidores, ao lançar o livro “Histórias de Cego”, você deu uma entrevista dizendo que a “escrita era seu mundo, por formação, por convicção e por missão”. Quais foram os principais desafios que você venceu para fazer com que a leitura e a escrita se tornassem meios de diálogo com o mundo?
ML: Eu passei a minha infância inteira lendo. Sempre gostei muito de ler. Seja livros em braille, seja livros em áudio. Felizmente, com a tecnologia, chegaram outras formas como audiolivro e principalmente os livros em formato eletrônico, que são os que eu leio tanto no computador como pelo celular, pela voz do celular mesmo, não é pela voz humana. Mas já estou tão acostumado a ouvir esta voz o dia inteiro, que para minha leitura ela não faz a menor diferença no sentido negativo. Pelo contrário, ela abre muitos caminhos. Então a leitura sempre fez parte da minha vida. Acho que a melhor maneira de você incentivar uma criança a ler é ler para esta criança e fazer ela gostar daquilo que você tá lendo.
VL: De acordo com o IBGE, em 2019, cerca de 25% da população brasileira tinha algum tipo de deficiência. No entanto, proporcionalmente, o número de escritores com alguma deficiência parece muito menor. O que falta para que a produção literária seja mais democrática e acessível em nosso país?
ML: Quanto a representatividade de escritores com deficiência, dentro de uma população com deficiência no Brasil, eu acho que a representatividade da pessoa com deficiência é mais baixa em todos os aspectos que você pensar, que sejam aspectos positivos, né? Em empregabilidade, as últimas estatísticas, antes da pandemia, era que 1%, apenas 1% das pessoas com deficiência no Brasil possuem emprego formal. Enfim, a renda é muito menor e todos os índices de escolaridade são menores. Então, eu acho que o fato de terem menos escritores com deficiência, do que o percentual de pessoas com deficiência na população, sugere, é justamente o reflexo disso dessa desigualdade, dessa falta de acesso das pessoas com deficiência, que ainda não tem estrutura pra estudar, estrutura econômica, estrutura física, estrutura social. A deficiência ainda é muito associada à pobreza, principalmente a deficiência visual, que é muito oriunda de aspectos de falta de acompanhamento pré-natal, dificuldades de tratamento de doenças, prevenção, falta de condições de higiene satisfatórias, que ainda estão mais ligadas a população mais pobre. Então acaba se tornando um ciclo vicioso, que as pessoas cegas acabam se originando, em sua maior parte, nas famílias mais pobres. O IBGE divulgou, há alguns anos atrás, que 80% das pessoas com deficiência pertencem a pelo menos a classe D, na distribuição de renda. Então é muita gente para suprir. Se você pegar as pessoas nas mesmas condições sociais, sem deficiência, elas, em geral, já não conseguem alcançar por conta da estrutura do país, né? Das desigualdades. Não conseguem alcançar os níveis superiores. Não conseguem alcançar um nível pleno de emprego. Imagina as pessoas com deficiência? Então, realmente é bem complexo.
VL: Agora, Marcos, uma pergunta enviada pelo projeto Incluir, que é parceiro do Vamos Ler! nesta edição: sabemos que você cursou jornalismo em uma das maiores universidades federais do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como foi esse período: a universidade conseguiu lhe dar suporte para que você realizasse todas as atividades acadêmicas? Teve algo que o surpreendeu positivamente nesta época?
ML: Eu estudei na UFRJ, realmente uma das melhores universidades do Brasil. Eu me orgulho muito. Mas eu não tive apoio nenhum da universidade. Assim, isso não é uma crítica. Não é que a universidade fez alguma coisa contra mim. Não! A universidade simplesmente não me ajudou. Nunca tive um material adaptado. Contava com a boa vontade de professores, escaneava livros, pedia aos meus amigos ajuda para ler os livros. E o que você perguntou da surpresa positiva, foram as pessoas. A colaboração. A ajuda dos amigos, das pessoas da faculdade, dos alunos, né? E claro, de alguns professores. Mas nunca houve, na faculdade, uma estrutura para me auxiliar em nenhum momento.
VL: Marcos, muito obrigada pela sua disponibilidade. Por fim, gostaríamos de saber se você gostaria de acrescentar algo?
ML: Eu convido a todo mundo a conhecer “Histórias de cego”, tanto no youtube quanto no instagram. Conhecer não por mim, né? Mas pra entender um pouco mais do mundo das pessoas com deficiência e entender que nós todos somos muito mais parecidos, em nossas diferenças do que a gente pensa.
Conheça o entrevistado: Marcos Lima é jornalista, palestrante e youtuber. Criou o canal Histórias de cego, que tem hoje mais de 300 mil inscritos. Em seus vídeos, ele conta de forma leve e divertida o cotidiano de uma pessoa cega. Marcos se formou em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e é um dos fundadores da Urece Esporte e Cultura. É amante de esportes, sendo o primeiro cego brasileiro a esquiar na neve. Atuou na Copa do Mundo de 2014 e nos jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio, em 2016. Acompanhe o trabalho do escritor pelo canal do Youtube ou pelo instagram @historiasdecego.
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