Afinal, quais critérios definem que um livro pode se tornar um filme? Nesta 19a edição, o Vamos Ler! conversou com Erika Savernini, coordenadora do curso de Rádio, TV e Internet e do grupo de pesquisa “Estética e pensamento cinematográfico” da UFJF campus sede, para compreender melhor sobre essa questão. Savernini também nos alerta sobre expectativas e comparações em relação às adaptações de grandes obras. Confira o nosso bate-papo:
VL: No artigo “Apontamentos sobre a transposição do romance para o filme Drácula de Bram Stoker”, que publicou em 2015, você apresenta dados importantes sobre o quanto o Cinema recorre à Literatura. Um exemplo é que a maioria dos muitos filmes premiados pelo Oscar, na categoria melhor filme, são adaptações. Além disso, desde 1929, o Oscar, que ainda é considerado a maior premiação do Cinema, tem uma premiação específica para a área – Oscar de melhor roteiro adaptado. É possível identificar os principais critérios da indústria cinematográfica ao escolher uma obra literária para adaptação?
Savernini: Os critérios da indústria estão diretamente relacionados a um desenho narrativo clássico, que grosso modo, apresenta uma estrutura narrativa linear, com um protagonista que precisa superar obstáculos para alcançar um objetivo ou resolver um problema, que se resolve ao final da história (para o bem ou para o mal) em um tempo médio de 2 horas. Dessa forma, uma diretriz importante para as adaptações que se voltam para um perfil mais de produto comercial é que atenda a essa expectativa do público. As adaptações, portanto, devem levar em consideração o contexto de produção e o contexto de recepção do filme ou outra peça audiovisual (minisséries, séries etc.). O contexto de produção refere-se justamente ao modo de produção: se é um produto de um grande estúdio, será moldado dentro desse padrão que a maioria do público busca nos filmes; se é uma produção independente ou alternativa, a liberdade de propor estruturas narrativas mais complexas ou experimentais é maior. O contexto de recepção, que se relaciona ao contexto de produção, o que tem a ver com a definição, desde o início do projeto, de para qual perfil de público a peça audiovisual destina-se (como foco principal, claro, pois pode atingir outros perfis). Um mesmo filme pode ter uma recepção ruim quando lançado, mas encontrar um contexto de recepção melhor em outro momento (filmes que são considerados à frente do seu tempo e só encontram um público que os aceita anos mais tarde).
VL: É comum, após o lançamento de filmes baseados em obras literárias, os leitores fazerem críticas sobre a adaptação. Em sua pesquisa você fala sobre a mudança da denominação “adaptação” para “transposição” ou “tradução intersemiótica”, que pode afetar a ideia de fidelidade à obra. Como acha que essa questão pode ser melhor apresentada ao público, evitando o número recorrente de críticas?
Savernini: De forma geral, há a necessidade de uma educação audiovisual na formação escolar, desde o ensino fundamental. A concepção de fidelidade está muito relacionada a uma expectativa equivocada do público de que terá a mesma experiência ao assistir ao filme que teve ao ler o texto-fonte (o texto literário, teatral etc. a partir do qual o filme foi concebido), principalmente em relação a obras literárias muito reverenciadas. Uma compreensão básica das linguagens garantiria que o público entendesse o filme como uma nova obra, com as características da nova linguagem (audiovisual) e das formas de recepção distintas. Mesmo que haja uma intenção de fidelidade por parte de quem faz a adaptação, isso não é possível. As adaptações, portanto, partem dessa intraduzibilidade estrita de uma linguagem para outra como algo dado. As adaptações que são consideradas mais fiéis são as que reproduzem o enredo da história – sendo também, mesmo que inconscientemente, esse o parâmetro do público leigo. Mas, mesmo com a intenção de fidelidade, a narrativa audiovisual demanda, usualmente, mais síntese, uma forma específica de estruturar a história, de apresentação personagens, que levam, muitas vezes, à redução de personagens, cortes de cenas, falas e outras mudanças que o grande público entende como “infidelidade” à obra. Um grande roteirista do cinema, Jean Claude-Carriére, autor de várias adaptações no cinema e colaborador da fase final do grande diretor Luis Buñuel, defendia que para ser fiel ao texto-fonte, o filme deve promover profunda mudança estrutural, conservando o que o roteirista teria que definir como a essência do texto-fonte; ou seja, o filme é uma nova obra e a sua linguagem deve ser respeitada, buscando a melhor forma audiovisual de dizer ou contar o que o texto-fonte faz com palavras.
VL: Devido ao crescimento das pautas sociais no mundo todo e, em especial no universo artístico – como a demanda por maior diversidade em frente às câmeras e na produção dos filmes – tem sido comum a adaptação de obras considerando as novas realidades sociais. Existe um limite para as adaptações/alterações, tanto na questão de avaliação técnica quanto conceitual das obras?
Savernini: Não há limite pré-definido. Tudo depende dos conceitos que apresentei antes: contextos de produção e de recepção. Mesmo as temáticas sociais são abordadas de forma distinta, não pela temática em si, mas se são produzidas por um grande estúdio ou produtora e para qual público/mercado. Além disso, depende da aquisição dos direitos autorais da obra original e da proposta de adaptação, adaptação livre ou inspiração – pensando em níveis distintos de manutenção da proximidade com o enredo e elementos do texto-fonte. Dessa forma, veremos filmes com um perfil comercial que abordam questões sociais, mas usualmente criticados por sua superficialidade, uma vez que atendem a demanda de um produto comercial, que agrade a um grande público, mais homogêneo. Ao passo, que podemos ter um filme produzido por grupos minoritários de forma alternativa ou independente que trate de questões que os afetam mais diretamente ou com as quais têm mais proximidade; o que usualmente gera abordagens mais profundas e, eventualmente, uma narrativa e uma linguagem audiovisual menos padronizada.
VL: Quais ensinamentos nós, do universo acadêmico/científico, podemos observar e colocar em prática a partir da positiva experiência do Cinema em ter a Literatura como fonte de inspiração?
Savernini: Os Estudos Intermidiáticos, aos quais pertence os estudos de adaptação entre meios e linguagens distintas, demonstram a relevância de compreensão das linguagens e dos discursos por trás das formas artísticas e como o analfabetismo midiático pode comprometer não apenas a fruição das obras, mas a própria compreensão do mundo (uma vez que nossa experiência de mundo é muito mediada, particularmente, pelos diversos discursos e suportes audiovisuais).
VL: Gostaria de acrescentar algo?
Savernini: Gostaria de ressaltar o papel dos Cineclubes desde o início do cinema nesse papel de educação audiovisual do público, incluindo quanto aos Estudos Intermidiáticos – tanto porque desde o início do cinema a literatura é uma das grandes fontes de criação de filmes quanto porque os Estudos comparados, do campo das Letras, depois ampliados para Estudos intermidiáticos, geraram uma parte significativa de teorias aplicadas ao cinema, particularmente no que se refere à narratologia. As formas de transposição de uma linguagem ou meio para a outra(o) são mais complexas que a princípio parecem nas comparações diretas que o grande público estabelece entre livro e filme.
Conheça a entrevistada:
Erika Savernini é doutora em Artes-Cinema (EBA-UFMG), docente permanente da UFJF, coordenadora do curso de Rádio, TV e Internet, coordenadora do projeto de extensão Cineclube Lumière e cia e líder do grupo de pesquisa “Estética e pensamento cinematográfico” (CNPq), autora do livro “Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski” e co-editora do livro Reflexões sobre a montagem cinematográfica, publicação póstuma de Eduardo Leone (ambos pela Editora UFMG). E-mail: erika.savernini@ufjf.edu.br
Leia também Domínio público.