Você já refletiu sobre a origem de palavras da língua portuguesa como: “alfaiate”, “abadá”, “Maracanã” e “teatro”? Todas são originadas a partir da fusão entre o português e outros idiomas. Na ordem: do árabe, iorubá, tupi e grego/latim. Essa profusão de influências está presente em nosso cotidiano como falantes do português brasileiro, considerando o contexto de um país extenso, com suas regionalidades e heranças culturais trazidas por diferentes povos.
Como forma de celebrar o multilinguismo e a diversidade cultural, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) proclamou o dia 5 de maio como Dia Mundial da língua portuguesa. A data já havia sido estabelecida anteriormente pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Segundo o Instituto Camões, o português é o quarto idioma mais usado no mundo, falado por mais de 260 milhões de pessoas em locais tão diferentes entre si como Brasil, Portugal e a região autônoma chinesa de Macau. Como escreveu Fernando Pessoa em verso – dando inspiração a Caetano Veloso, décadas depois –, “Minha pátria é a língua portuguesa”. Uma pátria diversa, formada por várias cores, sons e histórias – inclusive contra a opressão.
As influências na língua e a constituição ‘forçada’ do idioma
Segundo a professora do Departamento de Letras da UFJF, Denise Weiss, a língua portuguesa se origina, em maior parte, do latim. Mas desde os princípios, o português recebeu contribuições de outras línguas faladas por povos que habitaram a Península Ibérica, no sudoeste da Europa, onde ficam Portugal e Espanha. “Temos influências de vocabulário, de uma série de povos que hoje têm o nome trágico de ‘bárbaros’, como também dos árabes que ocuparam a região.”
Entre o conjunto de línguas neolatinas, do qual o Português faz parte, também estão idiomas como o espanhol, francês, catalão e italiano. No mundo antigo, o latim vulgar (falado por pessoas não necessariamente escolarizadas) era de uso corrente em regiões como o Mediterrâneo, Europa Ocidental, Europa Oriental e Norte da África.
“Esse latim falado evolui para outras línguas à medida que esses povos vão tendo menos contato entre si e desenvolvem formas específicas de falar a língua ao longo do tempo. O latim literário continuou a ser usado como a língua de cultura, da universidade, diplomacia, filosofia e da ciência muitos séculos depois do advento das línguas neolatinas”, afirma o professor do Departamento de Letras e especialista em grego e latim, Fábio Fortes.
De acordo com o professor, o português recebe a contribuição indireta do grego, por meio do latim. Elementos da cultura helênica foram absorvidos pelos romanos e passaram a fazer parte da cultura latina – como o teatro, a retórica, a gramática e a ciência – o que se estendeu ao vocabulário. “Sobretudo o chamado vocabulário técnico. A palavra ‘teatro’, por exemplo, é uma palavra de origem grega (‘théatron’), que chega ao latim como ‘theatrum’. É um empréstimo do grego em latim e que chega ao português. ‘Entusiasmo’ é outra palavra de origem grega: significa ter Deus dentro de si”, conta.
A gramática da língua portuguesa também reflete, em grande medida, o sistema de funcionamento linguístico do latim, o que facilita até o aprendizado de quem hoje se propõe estudar a “língua-mãe”.
A conceituação de uma língua está diretamente relacionada a questões sociais, políticas e econômicas que favorecem a distinção de um conjunto de termos como um idioma. Com o Português não foi diferente: a diferenciação da língua portuguesa de outras do seu entorno está diretamente relacionada à concepção de Portugal como um Estado autônomo.
“A língua portuguesa começa a ser reconhecida como uma língua diferente das línguas de entorno, por volta do ano 1.100, quando a gente tem o início da formação do Estado Português, com o Condado Portucalense. A língua é reconhecida como tal, a partir de uma circunstância política – que é como todas elas começam”, explica Denise Weiss.
O Brasil também não escapou a essa regra. Segundo a doutoranda em Letras: Estudos Literários, Aliria Wiuira Benicios de Carvalho, o idioma tupinambá (tupi antigo) dominava a costa brasileira – do Pará até o Sul do país durante o início da colonização portuguesa, permanecendo como língua geral até 1759. Neste ano, a utilização do tupi foi proibida por meio de uma Provisão Real e o português se tornou a língua oficial do país.
“Mas a influência das línguas indígenas já era grande demais para ser apagada. Muitas palavras já faziam parte do vocabulário brasileiro e permanecem até hoje. O português tornou-se uma língua de grandes encontros e influências dos povos originários, contribuindo para fazer do português uma língua viva e plural”, reflete a pesquisadora, que é indígena da etnia Guajajara.
De acordo com a professora Denise Weiss, o português é “forçado”, já que o governo imperial tinha o interesse de criar uma unidade nacional. “Nós falávamos uma língua geral, que era fundamentalmente o tupi, acrescido de outras influências. Em determinado momento, o governo queria criar uma unidade para o país, o que viria, em parte, por conta da língua. Então o português é forçado e todas as possibilidades de se aprender outras línguas dentro do país são desencorajadas”.
Mesmo assim, segundo Denise, ainda se fazem presentes no cotidiano, da mesma forma que os idiomas trazidos da África pelas pessoas escravizadas. “Cada comunidade forma o seu conjunto de vocabulário, de expressões próprias, com base nesse conjunto de influências. Quem vive ali, há quanto tempo e o grau de importância social de cada grupo são fatores que formam um conjunto muito complexo, ao qual vamos chamar de língua portuguesa prática”, exemplifica a professora.
Da África, os provérbios e a musicalidade da fala
Como aponta o professor do Departamento de Letras da UFJF, Edimilson de Almeida Pereira, as interferências linguísticas entre a língua portuguesa e diferentes famílias linguísticas africanas se estabeleceram de forma mais intensa no século 15.
Os portugueses ocuparam faixas importantes do território do continente africano, que hoje correspondem a países como Angola e Moçambique. Nessas regiões se constituiu um contato contínuo durante o período do tráfico de escravizados, que durou três séculos e meio. Segundo o professor, nos longos períodos de translado compulsório de populações africanas para o Brasil, as pessoas acabavam tendo contato linguístico com diferentes estruturas, o que acontecia em condições precárias e de extrema violência.
“Essas interferências linguísticas aconteceram mais marcadamente no português do Brasil por conta do grande contingente de pessoas negras africanas que entraram no país e aqui se estabeleceram. E que apesar da violência da escravidão, constituíram núcleos familiares, de sociabilidade, mantiveram suas práticas culturais, interagiram com valores europeus e de outras populações, gerando uma lógica linguística extremamente dinâmica”, afirma Almeida Pereira.
Segundo o pesquisador, dentro dessa lógica, é possível destacar dois importantes troncos linguísticos – o iorubá e o banto, do qual alguns idiomas são mais conhecidos atualmente, como o quimbundo e o quicongo. É o que aponta o livro “A Influência Africana no Português do Brasil” (1933), escrito pelo embaixador e folclorista Renato Mendonça.
“Ele ressalta, por exemplo, a grande presença de termos nasais oriundos dessas línguas do tronco banto e que de certo modo, entraram na formação do português que se fala hoje no Brasil, realçando essa fluência e essa musicalidade que, tantas vezes, é destacada por ouvintes de outros idiomas”, destaca.
Os idiomas bantos formam o português brasileiro, também, de forma filosófica: por meio de provérbios. De acordo com Pereira, o uso desses pensamentos não é uma prática sociocultural exclusivamente africana, mas muito comum entre populações de afrodescendentes no Brasil, principalmente em áreas rurais, como forma de estabelecer diálogo ou ampliar o campo da argumentação. “Esse uso do provérbio, tão caro entre as populações bantos, é mais que uma estrutura linguística ou uma frase. É a expressão de certos valores sociais, experiências de vida e percepções do mundo”, conta.
O ponto de vista da doutoranda Aliria Wiura é semelhante ao do professor sob a perspectiva multicultural do país. “Estamos em constante contato com diversos povos e outras culturas, mas as raízes ancestrais não morrem. Mesmo que estejamos em constante evolução, as raízes ancestrais não serão arrancadas, estarão vivas, entrelaçadas com o português”, finaliza.
Dica de leitura: “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português”, do professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Caetano W. Galindo (Companhia das Letras, 2022).
A obra oferece uma visão sobre vários aspectos da língua portuguesa no território brasileiro, passando pelas contribuições da cultura europeia, indígena e africana. De acordo com o professor Edmilson de Almeida Pereira, a obra demonstra a existência de uma estabilidade no sistema linguístico e de uma transformação gerada por elementos da contemporaneidade.
“De alguma maneira, essa força de manutenção e coesão e essa outra força de dispersão e mudança, acabam por ser o retrato de uma ordem social dinâmica, como é a brasileira.”