No mês no qual as atenções se voltam para a importância da preservação da sociobiodiversidade devido à celebração do Dia Mundial do Meio Ambiente, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) reafirma o seu compromisso cotidiano com essa pauta. Por meio da manutenção do Jardim Botânico, um grande fragmento florestal de Mata Atlântica aberto à visitação pública, a UFJF desenvolve ações de extensão, ensino e pesquisa que abordam desde a valorização dos conhecimentos de povos e comunidades tradicionais até a educação ambiental e o desenvolvimento sustentável.
O professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e diretor do Jardim Botânico, Gustavo Soldati, conversou com o portal da UFJF sobre o assunto. Na entrevista, o docente destacou que 2022 é um ano decisivo para a pauta ambiental em nível mundial. No segundo semestre, será realizada, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a 15ª Convenção da Diversidade Biológica (CDB), na qual lideranças de quase duas centenas de países irão definir os rumos da biodiversidade e da conservação da natureza no planeta nas próximas décadas.
Soldati salienta que o cumprimento, pelos países signatários, das metas definidas nos encontros bienais da CDB é determinante para o meio ambiente. As normativas também devem ser seguidas por instituições, assim como faz a UFJF, e empresas comprometidas com essa temática.
Confira a entrevista na íntegra:
Portal da UFJF – Este ano a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) completa 30 anos…
Gustavo Soldati – Sim, em 1992, na ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, diversos países do mundo se uniram para assinar um grande acordo mundial sobre a pauta ambiental. Esse grande acordo é conhecido como a Convenção da Diversidade Biológica e tem três grandes objetivos: a conservação da biodiversidade, o desenvolvimento sustentável e a repartição de benefícios. Inúmeros países enviaram representantes ao Brasil, discutiram e assinaram a CDB. Cada país que assina um acordo, no âmbito da ONU, é conhecido como “parte”. A CDB inclui 196 países signatários. Este ano teremos mais um encontro da Convenção da Diversidade Biológica em agosto, na China.
Quais são as principais pautas e discussões que vão acontecer na CDB este ano?
Desde a Eco 92, os países signatários sempre se encontram, em algum lugar do mundo, de dois em dois anos. No Egito, em 2018, foi realizado o 14° encontro das partes da Convenção da Diversidade Biológica. Na ocasião, foi criado um grupo de especialistas e representantes de governos, para discutir quais seriam as metas para conservação mundial para o período de 2020 e 2030, e ainda com algumas intenções para 2050. Essa decisão, no Egito, busca atualizar as “Metas de Aichi”, aprovadas anteriormente, em 2010, na cidade de Nagoya, no Japão. Neste ano, teremos o 15° encontro, que vai acontecer na China. Temos uma minuta do novo “Marco Global pós-2022”, que está sendo discutida e possivelmente será aprovada. Outros assuntos serão debatidos, como as novas tecnologias de modificação genética, as “digital sequence informations” (DSI), além da primeira participação do Brasil como parte do Protocolo de Nagoya.
“Qual é a lógica de mudar a relação entre sociedades e naturezas? Esse debate parte da compreensão de que são requeridas medidas urgentes de políticas para transformar os modelos econômico, social e financeiro, de maneira que as tendências que levaram à perda da diversidade biológica se estabilizem até os próximos dez anos”
Conte-nos sobre o novo Marco Global para a Biodiversidade…
O novo Marco parte de uma “teoria da mudança”. Qual é a lógica de mudar a relação entre sociedades e naturezas? Esse debate parte da compreensão de que são requeridas medidas urgentes de políticas em níveis mundial, nacional e regional para transformar os modelos econômico, social e financeiro, de maneira que as tendências que levaram à perda da diversidade biológica se estabilizem até os próximos dez anos, ou seja, em 2030. A minuta também coloca uma meta para 2050: a recuperação dos ecossistemas naturais a fim de atingir um nível no qual seja possível viver em harmonia com a natureza.
Quais são os grandes objetivos desse novo Marco Global?
O primeiro deles é melhorar a integridade dos ecossistemas, preservando e restaurando os ambientes naturais, por exemplo: recuperar 20% dos ecossistemas degradados do mundo. Além disso, conservar, manter íntegros, 30% dos ecossistemas mundiais. O segundo é o desenvolvimento sustentável, ou seja, toda a produtividade mundial deve estar associada a gestões e manejos sustentáveis. Além disso, deve-se aumentar os serviços ambientais da natureza e o volume de espaços verdes em zonas urbanas. Outro grande objetivo é ampliar a capacidade de repartir os benefícios do uso econômico da biodiversidade, objetivo esse muito relacionado ao Jardim Botânico, que busca aumentar não apenas os “benefícios”, mas fortalecer o protagonismo e os direitos dos povos e comunidades tradicionais no manejo, uso, melhoramento e conservação da sociobiodiversidade.
Como o Jardim Botânico se vincula a esse debate internacional?
“O Jardim Botânico também tem um roteiro de educação ambiental específico para a questão da pauta socioambiental, no qual apresentamos uma crítica à relação da sociedade capitalista com a natureza, apresentando possíveis outras estratégias de se relacionar”
O Jardim Botânico se vincula devido à conservação de áreas “naturais”, sendo um grande fragmento de Mata Atlântica quando temos a intenção de manter todos os ecossistemas do mundo. Contribuímos fortemente com serviços ambientais, cuidando de uma floresta que ajuda na regulação do clima, regulação hídrica, ciclagem de nutrientes (contínua transferência de substâncias entre o solo e as plantas, e vice-versa) numa zona urbana. O Jardim Botânico também tem um roteiro de educação ambiental específico para a questão da pauta socioambiental, no qual apresentamos uma crítica à relação da sociedade capitalista com a natureza, apresentando possíveis outras estratégias de se relacionar. Também temos um roteiro específico sobre a valorização dos conhecimentos tradicionais, que é o roteiro sobre etnobotânica e plantas, no qual defendemos a importância dos conhecimentos tradicionais para diversos motivos, sobretudo para a conservação da sociobiodiversidade. Temos ainda um projeto sobre agrobiodiversidade, no qual apresentamos a importância dos povos tradicionais camponeses para a proteção e conservação da agrobiodiversidade. Por fim, temos um projeto muito bonito que é uma aproximação com as casas de matriz africana, candomblé ou umbanda, da região de Juiz de Fora, no qual estamos construindo a possibilidade de utilizarem o Jardim Botânico para fazerem as suas manifestações religiosas, suas oferendas, o exercício e direito da fé, sem sofrer nenhum processo de racismo religioso. Isso representa “construir sujeitos de direitos, reconhecer que esses povos tradicionais são fundamentais para a biodiversidade e, mais do que isso, construir pontes entre a academia e as comunidades tradicionais para tentar sair dessa crise que estamos vivendo.
Há críticas ao novo Marco Global?
Sim. Os movimentos sociais que debatem a biodiversidade entendem que a CDB foi um grande processo de financeirização da biodiversidade, ou seja, um mecanismo capaz de ampliar a conversão da biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados em mercadoria, materializado pelo seu terceiro objetivo. O Novo Marco Global, portanto, avança nessa lógica apenas, deixando de lado a necessidade de fortalecer o Artigo 8j e 10c da Convenção da Diversidade Biológica. Assim, o marco esquece de criar metas e objetivos capazes de efetivamente reconhecer a importância social, política e histórica dos povos e comunidades tradicionais, construir “sujeitos políticos” e estratégias consentudinárias de conservação popular da sociobiodiversidade.
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