O pesquisador da Faculdade de Direito da UFJF, Marcos Feres, encontrou indícios de apropriação de conhecimento tradicional em 11 patentes registradas em países do Hemisfério Norte – como Estados Unidos, Canadá, Japão, França e Rússia –, a partir da utilização de amostras de recursos genéticos que teriam origem na rã Kambôr, típica da Região Amazônica. A secreção desse anfíbio é utilizada por povos indígenas devido às propriedades analgésicas e antibióticas.
Segundo Feres, o interesse científico surgiu a partir de denúncias envolvendo a possível apropriação de produtos naturais de origem amazônica, tanto da flora quanto da fauna. Com isso, houve a necessidade de encontrar evidências empíricas no sistema burocrático de propriedade intelectual que pudessem indicar essa transferência de recursos genéticos naturais e saberes tradicionais do Brasil para países desenvolvidos. Foram cruzados dados acerca dos efeitos do tratamento legal de patentes e da proteção do conhecimento tradicional e uso sustentável da biodiversidade.
Divulgada na Revista Direito GV (da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas), sob o título ‘Biodiversidade, conhecimento tradicional e direito de patente: o estudo de caso da Phyllomedusa bicolor’, a investigação faz parte do grupo de pesquisa Argumentação, Direito e Inovação, vinculado ao Centro de Estudos em Propriedade Intelectual e Relações Humanas.
“Prevalece a lógica de poder entre nações, em que o Norte Global tende a dominar o Sul Global, valendo-se de práticas que têm suas raízes nos violentos processos de colonização aos quais os povos originários foram submetidos”
O estudo de caso discute a relação entre propriedade intelectual e direitos humanos, baseando-se no sistema de Acordo e Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, em inglês), quanto às diferentes práticas de bioprospecção em países do Hemisfério Sul, como Brasil e Índia. Foi constatado que a legislação internacional sobre direito de patentes e biodiversidade contribui para o processo de apropriação do conhecimento tradicional associado à biodiversidade brasileira. O professor assegura que o caso não se trata exclusivamente de um exemplo de biopirataria, mas sim “de algo muito mais sutil e cheio de nuances”, à medida que se tem um desequilíbrio entre o sistema jurídico internacional e a legislação nacional.
As consequências da apropriação indevida de recursos genéticos variam. “Quando se perde o direito de propriedade intelectual para um outro país, perde-se o direito de usar aquele produto patenteado”. Mesmo que ainda seja possível usar a substância in natura, “o que se percebe é uma alteração no estado originário daquele recurso genético natural associado ao conhecimento tradicional, que segue a lógica da livre troca de saberes e das múltiplas trocas entre diversos usuários. O sistema de patentes se opõe radicalmente a isso, pois ele cria um monopólio, uma exclusividade temporária sobre aquele bem”.
A aposta é que essas evidências empíricas sejam utilizadas pelos agentes políticos e diplomáticos de países do Sul Global para instrumentalizar argumentos que possam alterar essas situações de desigualdade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. “Prevalece a lógica de poder entre nações, em que o Norte Global tende a dominar o Sul Global, valendo-se de práticas que têm suas raízes nos violentos processos de colonização aos quais os povos originários foram submetidos”, destaca Feres.
Ao rever o sistema burocrático de patentes e redirecionar ações para proteger o uso sustentável da biodiversidade e o conhecimento dos povos tradicionais, será possível garantir a efetiva participação de indígenas, ribeirinhos, agricultores familiares na construção de marcos regulatórios mais justos e mais equânimes.
Análise minuciosa
A pesquisa vasculhou o banco de patentes da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) para encontrar indícios que pudessem revelar essa transferência de recursos naturais e de conhecimentos tradicionais do Brasil para outros países. No caso específico do uso irregular do veneno da rã Kampô (Phyllomedusa bicolor), foi aplicada uma metodologia de análise documental em que se buscou no patentscope – como é conhecido o banco de dados da Ompi – os possíveis pedidos de patentes já concedidos através de palavras-chave específicas.
Com base em revisão de literatura específica, foram definidos elementos de busca que seriam aplicados para filtrar as invenções relacionadas com usos tradicionais de povos indígenas sobre a substância. “Não utilizamos software específico, pois necessitamos de um olhar muito cuidadoso para verificar essa possível relação”, explica.
Marcos Feres afirma que foi trabalhada a lógica dos excessos e das faltas com relação ao sistema de patentes: “os excessos têm a ver com o modo como o sistema Trips adquiriu centralidade no comércio internacional e, com isso, as grandes sociedades empresariais transnacionais passam a exercer pressão política para que o direito da propriedade intelectual seja salvaguardado, mesmo em condições de necessidade social”.
Já as faltas dizem respeito às negligências de empresas e países frente às demandas dos povos tradicionais e, neste sentido, as legislações que deveriam proteger o uso sustentável da biodiversidade. “Com isso, o conhecimento dos povos tradicionais torna-se periférico e perde sua força normativa no combate à apropriação através do sistema jurídico de patentes”, alerta.
Este é um dos trabalhos pilotos sobre o tema, mas já foram produzidos estudos similares acerca da possível apropriação de conhecimentos tradicionais relativos a espécies de vegetais, como Bauhinia sp. e Carapanaúba. Sua equipe atua também em outra frente referente ao processo de aprovação do Marco Legal da Biodiversidade no Brasil, de modo a verificar se as demandas dos povos tradicionais foram incorporadas ao texto final.
Em relação à pauta indígena em abril no Brasil, o pesquisador reflete sobre as constantes violações de direitos sofridas pela população originária. “Como cientistas, nosso papel é o de trazer luz a essas evidências empíricas que reforçam a violência e a lógica colonial à qual ainda se encontram submetidos nossos povos indígenas. Para mudar essa realidade, precisamos que esse tipo de conhecimento alcance políticos, ativistas e representantes de povos tradicionais para que eles possam se armar desse conhecimento e, assim, por via de luta e de resistência, transformarmos coletivamente essa realidade de dominação colonial e de violência institucional.”
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Pesquisa está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU
A Coordenação de Divulgação Científica da Diretoria de Imagem Institucional, em parceria com a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp), está promovendo uma estratégia de fortalecimento das ações de pesquisa da Universidade, mostrando que estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Os ODS são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade.
A pesquisa citada nesta matéria está alinhada com o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes). Confira a lista completa no site da ONU.