Ainda era madrugada quando os primeiros ataques russos dominaram o céu das cidades ucranianas de Kiev e Kharkiv, no dia 24 de fevereiro de 2022. Desde então, o conflito já gerou mais de 3,4 milhões de refugiados, de acordo com dados divulgados nesta segunda, 21, pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), sendo a maioria mulheres, crianças e idosos. No domingo, 20, esta agência da ONU acrescentava ter ainda registro de mais de 6,6 milhões de deslocados internos, além de milhares de civis e militares mortos nas ofensivas armadas. De maneira a entender o contexto político e histórico envolvendo a atual guerra, o pesquisador da UFJF Francisco Teixeira concedeu uma entrevista sobre o tema para mais um episódio do podcast Encontros A3.
Teixeira, que é ligado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade, destaca a importância de se observar alguns dos aspectos anteriores ao conflito que provocaram tensões em ambas as partes. Ainda no final de dezembro de 2021, o presidente russo, Vladimir Putin, enviou um documento para todas as chancelarias dos países europeus, assim como os Estados Unidos e o Canadá – países que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
“No documento, Putin deixava muito claro que queria algumas explicações e alguns compromissos por escrito, já que os acordos anteriores tinham sido verbais e não haviam sido cumpridos. Nele, três itens principais estavam presentes: o compromisso de que a Ucrânia fosse impedida de aderir à Otan; a garantia da ausência de bases militares dos EUA ou Reino Unido na Ucrânia, e, por fim, um pedido de explicação e das medidas a serem tomadas pelo estado ucraniano em relação às mobilizações nazistas no interior do país”, ressalta.
Ações preventivas versus ações preemptivas
Para o docente, que também leciona na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, é importante enaltecer um aspecto muito importante da doutrina militar clássica. “Nela, costuma-se distinguir situações preventivas de situações preemptivas. Na primeira, se consideram as ameaças como possíveis conflitos que vão se desenvolver ao longo do tempo. Já na segunda, é possível considerar as ameaças imediatas como ataques que podem se desencadear a qualquer momento”, relata.
O ponto de preocupação central da Rússia, portanto, circulava entre a adesão da Ucrânia à Otan e à União Europeia. Desde a dissolução da União Soviética, em 1991, diversos estados nacionais realizaram o processo de adesão à Aliança – inclusive países como Letônia, Estônia e Lituânia, que anteriormente figuravam como repúblicas socialistas soviéticas. “No momento, estes mesmos países possuem bases e instalações militares do Reino Unido, Espanha, dos Estados Unidos e da Holanda – algo que torna o tempo de ataque aéreo com aviões em direção, por exemplo, a São Petersburgo, de menos de sete minutos. Ou seja, é quase que impossível organizar uma defesa consistente a uma eventual situação de guerra”, explica o pesquisador.
“Sendo assim, depois de 2014, quando a Otan descumpre o acordo verbal entre Rússia e os Estados Unidos sobre a entrada de países a leste da Alemanha na Aliança e sobre a disposição de armas na fronteira imediata da Rússia, surge claramente a evolução de uma situação que os russos consideram de preventiva para preemptiva. Desta forma, a possibilidade da Ucrânia servir de base e até mesmo participar de um ataque contra a Rússia no futuro não se tornava mais um caso preventivo. Como Zelensky visava a entrada imediata do país na Otan, ficou claro para o entendimento militar russo de essa seria uma ameaça preemptiva e, que depois que a Ucrânia viesse realmente aderir à Aliança, por exemplo, um ataque russo no território da Ucrânia já seria então um ataque à Otan – e aí sim, teríamos uma guerra de proporções mundiais”, pondera.
“Um terrível erro de cálculo”
Até alguns dias anteriores ao ataque, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky afirmava para sua população que uma guerra não iria acontecer naquele momento. Para o professor, o governo da Ucrânia não imaginou que mesmo contando com apoio dos Estados Unidos e da Otan (ainda que o país não fosse membro da Aliança Atlântica), a Rússia fosse realmente chegar às vias de fato de invadir seu território. “Neste caso em específico, aconteceu o que geralmente acontece na história: um erro de cálculo. Um terrível erro de cálculo; baseando-se numa força e disposição inexistente dos Estados Unidos ou da Europa em lutar contra os russos para garantir a autonomia e independência da Ucrânia”, sustenta.
Da mesma maneira, Teixeira aponta que dois fatos muito importantes provavelmente convenceram Putin de que uma ação militar na Ucrânia era indispensável. “O primeiro ponto foi a tentativa de golpe de estado no Cazaquistão, no começo de janeiro deste ano. O país, que é um dos aliados da Rússia e uma das antigas repúblicas soviéticas, faz um imenso corredor ligando exatamente a Ucrânia à Rússia e à China. Neste sentido, o golpe de estado que tenta derrubar o presidente do Cazaquistão e estabelecer um governo pró-ocidental no país tornou claro para o presidente Putin que não só o processo se tornava cada vez mais ameaçador, mas também se tornava cada vez mais imediato no cerco da Velha Rússia. Ao ampliar esse possível cerco, a Rússia ficaria então excluída de um acesso a um mar de águas quentes, como o Mar Negro, por exemplo. Ela teria assim uma imensa dificuldade para colocar a sua frota e mesmo o seu comércio funcionando numa área que não congelasse durante grande parte do ano, como o oceano Ártico, no norte da Rússia”, esclarece.
“Já o segundo ponto se dá na questão da situação da população russo-falante no território da Ucrânia – a qual não tinha mais nenhuma linha de diálogo possível com o governo de Zelensky. O mesmo recusava a possibilidade de ter escolas e universidades que pudessem utilizar o idioma russo em regiões onde a população era dominantemente russa. Não somente nas províncias de Lugansk e Donetsk, mas também em outros pontos. Essa população não consegue se dirigir a um funcionário público em russo, é uma exigência que se faça tudo isso em ucraniano. Desta forma, esses dois fatores tornaram claro para Putin de que com o apoio ocidental, a Ucrânia avançaria no isolamento da Rússia e num processo de ‘ucranização‘ das populações russas dentro do país.”
Sanções econômicas e políticas na Rússia
Diversos países europeus, assim como os Estados Unidos, já iniciaram uma série de sanções econômicas e políticas sobre a Rússia, de maneira a desacreditar o atual conflito armado. Entretanto, para Teixeira, essa é uma questão muito complexa. “É muito difícil de se avaliar a situação das sanções como uma forma de enfrentar a situação atual. Por exemplo, Cuba está sob sanções há mais de sessenta anos e isso não alterou em nada as características do regime cubano, embora isso danifique estruturas administrativas e prejudique a população. Mesmo as sanções lançadas contra a Rússia em 2014, em função da questão com a Criméia, não resultaram em um efeito prático razoável. Principalmente porque foram sanções na área econômica e de importações do país. Naquele momento, a Rússia importava uma grande quantidade de alimentos da Alemanha e da Itália, e as sanções acabaram produzindo cerca de 400.000 desempregados na Alemanha, por exemplo. Então, na verdade, as sanções trazem problemas para toda a economia, tendo em vista que ela é um sistema totalmente interligado mundialmente”, recorda o pesquisador.
Baixa probabilidade de um conflito nuclear
Como a Rússia é um dos poucos países detentores de armas nucleares, existe um receio geral de uma escalada do conflito com o uso desses equipamentos. Entretanto, Teixeira avalia essa possibilidade muito pouco provável diante do atual contexto. “Ao contrário dos Estados Unidos, que tem uma doutrina militar na qual se dá ao direito de ser o primeiro a usar armas nucleares, seja contra o inimigo nuclearmente armado ou não (lembremos o caso do Japão), a Rússia tem outra doutrina. Ela estabelece que não será a primeira a usar uma arma nuclear e que desta forma não iniciaria uma guerra nesses moldes. Mas havendo uso, mesmo que pontual de uma arma nuclear, essa ofensiva será respondida pelos russos com um ataque maciço em direção aos inimigos diretos da Federação Russa”, constata.
De acordo com o professor, a Rússia criou a doutrina da resposta massiva para dissuadir a política nuclear americana. “Essa política da Rússia estabelece uma certa paralisia no uso das armas nucleares, já que ao contrário dos americanos, os russos não estariam disponíveis a um pingue-pongue nuclear de alguma duração.”
Movimento nazista na Ucrânia
Para o professor, a questão da desnazificação e da presença de organizações nazistas no interior da Ucrânia é complexa. Ele aponta que até mesmo o próprio governo ucraniano nega a existência desses movimentos no país – que, ao contrário do Brasil, não tipifica a ação como criminosa. “Na verdade, a Ucrânia é atualmente responsável pela maior concentração de organizações neofascistas e neonazistas – principalmente em torno do considerado herói nacional, Stepan Bandera, que foi um guerrilheiro e combatente durante a segunda guerra mundial, que se aliou aos nazistas e que é colocado na situação de herói pela historiografia e pelos livros didáticos da Ucrânia.”
Ainda que existam movimentos neonazistas em diversos países, conforme relembra Teixeira, o principal dilema na Ucrânia se deve ao livre fluxo dessas pessoas na vida pública e política do país, sem que exista uma condenação explícita a esses grupos. “No Brasil, por exemplo, ostentar a bandeira com a suástica ou organizar desfiles com formações nazistas são proibidos e punidos. O que ocorre na Ucrânia é o contrário: não é proibido e é possível, tendo incentivo do Estado e das forças armadas, participando ativamente da vida pública. É esse o sentido de desnazificação que foi colocado no documento enviado por Putin no final de dezembro”. Confira a íntegra da entrevista no podcast Encontros A3.
O episódio está disponível no Spotify, no Castbox e em mais aplicativos agregadores – como o Google Podcasts e Apple Podcasts. Ouça aqui.
*Entrevista concedida no dia 08 de março