Para fechar a série especial sobre os direitos humanos, a professora de Direito Internacional Público e Direitos Humanos da UFJF, Manoela Roland, aborda como a Universidade tem contribuído para avançar na luta pela garantia desses direitos, com destaque para o projeto que busca contornar a falta de reparação justa para as vítimas de dois grandes desastres ambientais da história do país.
Como seria o mundo sem os direitos humanos? Basta olhar o passado para entender porque a escravidão, as guerras civis e mundiais, o holocausto e o uso da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki são tristes exemplos de como até mesmo governos compactuaram com a violência e o desrespeito à vida humana. No Brasil, uma tragédia recente já está quase esquecida, pelo menos para grande parte da população. Mas as pessoas e famílias das vítimas atingidas pelo desastre ambiental de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ainda sofrem com as consequências do rompimento das barragens de lama tóxica.
Em busca de acompanhar uma nova fase no processo de tentativa de reparação do caso, foi criado o Observatório Rio Doce, a partir da constatação das violações continuadas aos direitos das comunidades atingidas em toda a extensão da Bacia do Rio Doce e litoral afetado pela lama. Trata-se de uma articulação coletiva formada por diversas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e grupos acadêmicos com atuação diretamente relacionada ao desastre-crime da Samarco.
“Acreditamos que seria melhor uma união estratégica mais efetiva com organização da sociedade civil de resistência e centros acadêmicos também”, defende a coordenadora do Homa – Centro de Direitos Humanos e Empresas (onde também se concentram as atividades do Observatório), a professora Manoela. Criado em 2012 na faculdade de Direito da UFJF, como centro acadêmico de pesquisa e extensão, o Homa atua em todos os campos de violações, com destaque no território brasileiro. “O intuito é potencializar a produção de conhecimento jurídico e de estratégia política, a partir de parecer crítico sobre as bases normativas relativas à regulamentação das empresas”, informa.
Quanto ao Observatório, espera-se “empoderar mais os atingidos e as atingidas, buscando soluções mais efetivas no processo de tentativa de retratação do que aconteceu frente às estratégias de posicionamento da Fundação Renova”. Na opinião da pesquisadora, há um déficit de participação nesses acordos de reparação, em que se tem um protagonismo maior das empresas.
“Ainda existe uma lacuna muito grande com relação à responsabilidade das empresas, principalmente as transnacionais que passaram a figurar com poder econômico e jurídico muito grande a partir da década de 70. Além disso, a maior parte da legislação não responde à altura dessa capacidade delas incidirem economicamente e politicamente nos territórios, fazendo com que se mantenham em espaço de impunidade muito marcante”, complementa.
“Estamos num sistema que viola os direitos humanos radicalmente e que não passa a ser nem mais excepcional, mas intrínseco à reprodução complexa das relações políticas, sociais, jurídicas e econômicas” (Manoela Roland)
Em função de sua expertise, Manoela acompanhou a aprovação da resolução 26/9 de 2014 do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e atualmente integra o processo de negociação de um tratado internacional sobre empresas e direitos humanos. “Já foram sete sessões. A convite do Equador que preside o processo nas Nações Unidas, em 2020, em reunião à distância, fui expert e produzimos análise, sempre com foco na maior capacidade de incidência por parte da sociedade civil nesses processos.”
Desafios atuais
Para a especialista em Direito Internacional, em todo o mundo existem violações cotidianas, especialmente em sociedades tão desiguais como a nossa, relacionadas a todo tipo de direito, como à saúde, à vida, à educação, à segurança, à privacidade, ao trabalho, ao ambiente sustentável, à liberdade.
“Estamos num sistema que viola os direitos humanos radicalmente e que não passa a ser nem mais excepcional, mas intrínseco à reprodução complexa das relações políticas, sociais, jurídicas e econômicas. Na maioria do planeta, são tanto do âmbito da liberdade – direitos civis e políticos –, quanto também da igualdade – direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”, alerta.
Manoela menciona que o sofrimento causado pelas violações de direitos humanos só pode ser aferido com base no testemunho e na vivência das pessoas ou grupos. “Segundo o princípio da descentralidade do sofrimento da vítima, consagrado pela Suprema Corte americana, não é possível definir somente em tese o que foi a dimensão daquela violação.”
Mais do que reparar injustiças sociais, os direitos humanos deveriam evitá-las. “Não podem ser mitigatórios ou reparatórios, como entende a visão mais liberal de compensação. Se fossem realmente cumpridos e concebidos dentro de uma realidade crítica, proposta por diversos estudiosos e autores, teríamos uma sociedade que não produz essas desigualdades”, reflete a docente.
Afinal, quem é humano?
O primeiro artigo da Declaração assinala: “Todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” Sob a vertente da escola crítica internacional, Manoela considera que atualmente os direitos humanos não são verdadeiramente universais.
“Segundo Joaquín Herrera Flores, eles não são aquele rol de direitos apresentados numa lei ou tratado internacional, colocados ali abstratamente, mas advém do espaço de deliberação jurídica, política e institucional que existe em sociedades verdadeiramente democráticas que possam vir a deixar emergir as lutas e as demandas dos povos”, assinala.
Para justificar, ela cita o caso do Brasil que, embora tenha ratificado a maior parte dos tratados em direitos humanos em sua constituição cidadã e tenha um espectro protetivo legislativo muito avançado, é um país que viola muitos direitos: “Uma frase clássica nesse sentido é ‘direito não gera direito’.”
De acordo com a coordenadora do Homa, o que está em questão é o conceito de humanidade, uma vez que o capitalismo desumaniza muitas pessoas ou determinados grupos, a partir de marcadores como raça, etnia, gênero. “A própria Grécia Antiga, que é considerada o berço da civilização europeia e de valores da democracia, excluíam os estrangeiros e as mulheres. Então isso se repete e vem como herança liberal na consolidação dos direitos humanos”.
Disputas políticas e ideológicas
É por conta dessa questão conceitual de humanidade que surgiram ao longo da história diversos movimentos de desumanização de determinados povos, como negros, pobres, indígenas, migrantes. “Isso sempre esteve presente no fascismo, no pensamento colonial, imperialista, em busca de excluir e criminalizar certos grupos sociais”, opina.
Roland aponta que há um fenômeno de criminalização dos próprios movimentos sociais, tentando retirar deles a legitimidade com relação ao pleito e demandas sociais, fruto do neoconservadorismo político atual. Nessa concepção, “só o cidadão de bem é quem tem direito aos direitos humanos. É o que sempre esteve enraizado nessa nossa sociedade colonial, racista, machista, patriarcal que agora obteve mais espaço, mais voz”, diz, em referência ao livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, de Lilia Schwarcz.
Portanto, em sua visão, sempre houve certa resistência às lutas e reivindicações sociais. “Nem mesmo os direitos humanos foram atribuições voluntárias dos Estados, mas processos emancipatórios que obrigaram de certo modo a contemplar determinadas demandas.”
O caminho para superar essas distorções é perceber “a expressão de proteção da dignidade da pessoa humana, especialmente face a violências arbitrárias, a partir do relativismo, compreendendo que há especificidades que vão se emancipar dentro de uma luta coletiva que se dá como universal. Isso deve ser independente de orientação ideológica ou partidária”.
Assista também o vídeo produzido pela Diretoria de Imagem Institucional:
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