Após quase 33 anos de sua promulgação, a Constituição Federal de outubro de 1988 (CF/88) ainda convive com contradições e paradoxos. Apesar de ter alavancado a expansão de direitos civis, com a inclusão de grupos e indivíduos até então excluídos da participação social plena, a Carta Magna hoje é também alvo de ressentimentos e críticas motivadas pela não aplicação, em todo esse tempo, de todos os seus preceitos fundamentais. O tema conduziu a discussão do Painel “Liberdade e Direitos Humanos”, transmitido na manhã desta segunda-feira, 19, no primeiro dia de atividades da 73ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A edição, sediada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), acontece totalmente on-line.
Conforme o professor e diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oscar Vilhena, a Constituinte reagiu a um passado de arbítrio e violência do Estado brasileiro durante a Ditadura Militar, por meio do reconhecimento de direitos fundamentais. “A Constituição expandiu os direitos civis, consolidou processos eleitorais que permitiram a alternância no poder, abriu espaço para um pacto intergeracional e para a construção de novos sujeitos que, até então, tinham seus direitos suprimidos”, salienta. Contudo, o “avanço incompleto” em diferentes áreas resultou em reatividade e grande resistência por setores da sociedade que não se viram beneficiados, na prática, pelo novo marco regulatório. “Embora tenhamos avançado, há legados estruturais da desigualdade, com direitos usufruídos de maneira desigual.”
A advogada e ex-subprocuradora Geral da República, Deborah Duprat, destaca que a CF/88 surgiu em um Brasil permeado por uma visão colonial, que colocava à margem indivíduos considerados desviantes ou “inferiores”, como indígenas, negros, mulheres ou a população LGBTQIA+. Por isso, o texto projeta uma sociedade igualitária e constrói a noção de um Estado nacional homogêneo. Ela ressalta, porém, tratar-se de uma “construção” a ser edificada ao longo do tempo. “A Constituição prevê ‘chaves’ para isso, como a garantia das liberdades de expressão, em seu artigo quinto, e a previsão de políticas públicas. A liberdade de você dizer quem é, sem medo de ser punido, encarcerado ou patologizado, permite a continuidade das lutas iniciadas antes mesmo da Constituinte”, defende.
Situação atual
O tema atravessa a atual situação do país, de acordo com professor da Universidade de Brasília (UnB) Luis Felipe Miguel. Segundo ele, a extrema-direita é responsável por uma retórica que contrapõe “liberdade” e “direito”. Exemplo disso seria a falsa oposição de direitos humanos e a política de segurança pública ou, ainda, a liberdade de expressão sendo defendida como justificativa para discursos preconceituosos. “Desde o golpe de 2016, percebemos o aumento da vigilância e da repressão. Não há ainda uma proibição na manifestação, mas há uma ‘pressa social’ para calar as vozes contrárias, inclusive com a participação de setores do Estado: polícia, Ministério Público, Judiciário, autoridades do Executivo”, explicita. Por isso, na visão de Luís Felipe Miguel, hoje é possível identificar uma “captura” do valor da liberdade pelo discurso extremista.
O advogado e representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Everaldo Patriota, ao corroborar as opiniões, lembra que Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos, defendia a Liberdade ao mesmo tempo em que liderava um país notoriamente segregado e desigual, em mais uma demonstração das contradições inerentes à temática. “Ainda não vencemos essa batalha. Até hoje, as chagas do liberalismo e do colonialismo ainda estão presentes na sociedade – e existiram mesmo durante governos populares no Brasil. Não há direitos humanos sem liberdade, e não há liberdade sem direitos humanos”, conclui.