A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) recebe inscrições, até 28 de fevereiro, para o Edital 179/2019, destinado ao provimento de 17 vagas de professor da carreira do magistério superior para os campi Juiz de Fora e Governador Valadares.
Do total de oportunidades, seis vagas são reservadas para candidatos cotistas, sendo três para pessoas com deficiência (PCDs) e três para pretos e pardos.
A reserva de vagas é uma ação afirmativa prevista em lei e tem por objetivo corrigir desigualdades presentes na sociedade brasileira. Segundo o coordenador de Alocação e Movimentação de Pessoas da UFJF, Rafael Lucas da Silva Santos, a instituição tem buscado alternativas que garantam o cumprimento das legislações e o acesso a direitos por grupos historicamente excluídos.
Um dos exemplos mencionados pelo coordenador é a realização em conjunto de concursos de diferentes departamentos e unidades acadêmicas. A referida estratégia – adotada a partir de 2018 para PCDs e de 2019 para negros (pretos e pardos) – garante a aplicação dos percentuais reservados para ambos os grupos nas seguintes legislações brasileiras: Constituição Federal; Lei 8.112/90; Lei 12.990/2014; e Decreto 9.508/2018.
Por outro lado, afirma Santos, a efetividade da legislação depende da inscrição e, em seguida, da aprovação de doutoras e doutores PCDs e negros nos certames. “Às vezes, acaba se verificando um ‘gap’ [disparidade] no número de candidatos que se apresentam para essas vagas. Nós publicamos os editais com a previsão da reserva, mas, em alguns casos, não têm candidatos inscritos, talvez por ter pouca ou a até mesmo não ter pessoas [com deficiência e negras] com titulação [de doutorado] para concorrer.”
Na avaliação do Diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, há um desafio a ser enfrentado pelas Instituições Federais de Ensino Superior, para mudar este cenário: a criação de uma política de ações afirmativas para os cursos de mestrado e doutorado. “Isso vai além da garantia do ingresso de estudantes negros e com deficiência na pós-graduação. É preciso pensar na permanência por meio do estabelecimento de uma competente política de assistência. O sistema de cotas para negros é uma ação que visa superar o racismo institucional, esse mecanismo de produção e reprodução das desigualdades.”
Santos e Oliveira concederam entrevista ao Portal da UFJF sobre o assunto. Confira o conteúdo na íntegra:
Portal da UFJF – A Lei 12.990/2014 reserva aos negros (pretos e pardos) 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Como vem sendo o cumprimento desta legislação pela UFJF?
Rafael Lucas da Silva Santos – Desde que a Lei 12.990/2014 foi criada, lei que trata da reserva de vagas para pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, que fazemos uma sistemática de reserva de vagas para esse grupo. Num primeiro momento, no caso do magistério superior, não apenas na UFJF mas para várias universidades, era um certo desafio. Isso porque, em que pese serem vagas para o mesmo cargo, são áreas muito distintas. Você tem a área de Medicina, Artes, Ciências Sociais, enfim, uma pluralidade de situações. Sendo que cada uma com a sua perspectiva de provas, com o seu conjunto de disciplinas. Umas têm provas práticas, outras não. Desse modo, quando a lei foi criada, em 2014, se compreendia cada concurso como sendo um único concurso, sendo assim, se o edital tivesse dez concursos de professor efetivo, não se fazia uma reserva sobre o total de vagas, mas sim sobre cada concurso. Desse modo, em muitos casos não havia a previsão da reserva de vaga em edital, porque cada concurso saía com uma única vaga.
Portal da UFJF – Qual foi a solução encontrada para evitar tal situação?
“A Universidade passou a adotar uma sistemática de reserva sobre o total de vagas previstas em edital e não sobre cada concurso, independente da área” – Rafael Santos
Rafael Lucas da Silva Santos – A partir do ano passado e motivada, não só pela reserva de vagas para pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, mas também pela questão da reserva de vagas das pessoas com deficiência, a Universidade passou a adotar uma sistemática de reserva sobre o total de vagas previstas em edital e não sobre cada concurso, independente da área. Exatamente para que em todos os editais, caso tenhamos um número de vagas que enseja a reserva, possamos prevê-la. Lembrando que o que as normas exigem é que a instituição faça a reserva. Não há a imprescindibilidade do provimento e, inclusive nos autoriza fazer o provimento, convocando demais candidatos aprovados, quando não há candidatos autodeclarados pretos ou pardos ou deficientes aprovados para as vagas reservadas.
Portal da UFJF – Poderia nos dar algum exemplo, por favor?
Rafael Lucas da Silva Santos – Se o edital tivesse dez vagas, por exemplo, no concurso, a reserva para pretos e pardos é de 20%. Então, teríamos duas vagas imediatas. No caso de pessoas com deficiência, essa reserva existe desde a Constituição Federal e também da Lei 8.112/1990. Só que não há um percentual fixo. Temos um Decreto que estipulou um percentual mínimo e a lei que fixa um percentual máximo. O mínimo seria de 5% e o máximo de 20%. Então, é esse percentual que a Administração Pública pode trabalhar. Em regra, antes praticávamos 5% ou 10% nos editais da UFJF. Agora conseguimos avançar nessa pauta e já estamos no patamar de 15%, chegando próximo ao máximo que são os 20%, também sobre o total de vagas. A grande questão nessa sistemática é em qual concurso vai ser feita essa reserva.
Portal da UFJF – Como é feita essa definição?
Rafael Lucas da Silva Santos – Como mencionei, cada concurso tem a sua particularidade, cada concurso tem a sua característica, e não são concursos que se assemelham. Temos concursos na área de Exatas, na área de Saúde, na área de Humanas. Há concursos com provas práticas, há concursos sem provas práticas. A equipe pensou e também se debruçou muito sobre esse tema, e definimos a sistemática do sorteio, por meio da qual as vagas serão reservadas inicialmente tanto para pessoas com deficiência, quanto para autodeclaradas pretas ou pardas. Como qualquer método, esse tem as suas virtudes e também os suas críticas.
Portal da UFJF – Quais seriam as vantagens e desvantagens?
“É claro que todo mundo que participa das reservas tem que ser aprovado no certame. Então, tem que fazer as médias mínimas, tem que fazer o processo de heteroidentificação, no caso de pretos ou pardos” – Rafael Santos
Rafael Lucas da Silva Santos – Quando se faz um sorteio você corre o risco de a vaga sorteada não ter pessoas que se autodeclararam ou deficientes ou pretas e pardas aprovadas. Ao passo que você pode ter esses candidatos em outros concursos não sorteados. Por outro lado, essa sistemática traz a publicidade e a previsibilidade aos candidatos de que eles vão se inscrever naquele concurso já sabendo se há a reserva imediata ou não. Sendo assim, tem-se transparência e segurança tanto para o candidato destinatário da reserva, quanto para o candidato que é da ampla concorrência também. Eles já sabem, previamente, que, se aquele concurso sorteado tem uma única vaga e, digamos que ela seja para pessoa com deficiência, tendo uma pessoa com deficiência aprovada, quem vai prover aquela vaga é a pessoa com deficiência, independentemente do fato de um candidato da ampla concorrência possa ter obtido uma nota maior. Mas é claro que todo mundo que participa das reservas tem que ser aprovado no certame. Então, tem que fazer as médias mínimas, tem que fazer o processo de heteroidentificação, no caso de pretos ou pardos, conforme a Portaria Normativa 4/2018 do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que regulamentou o procedimento, complementar ao processo de autodeclaração. No caso das pessoas com deficiência, tem também uma análise multiprofissional que é feita para avaliar, dentre outros aspectos, se há compatibilidade das atribuições cargo com a deficiência.
Portal da UFJF – A questão do sorteio das vagas reservadas é a principal mudança recente nos concursos para o magistério superior na Universidade?
Rafael Lucas da Silva Santos – Sim, a sistemática que teve a mudança basicamente foi essa, onde conseguimos de fato agora nos concursos de docentes prever, pelo menos no edital, a reserva. Isso não significa que estejamos garantindo os provimentos, mesmo porque, por conta dessa sistemática de sorteio que eu expliquei, às vezes o concurso sorteado não tem aprovados. Aí não conseguimos garantir a vaga.
Portal da UFJF – Quando foi promovida a referida sistemática?
Rafael Lucas da Silva Santos – Então, todos os concursos de 2019 já seguiram a nova regra. Lembrando que, num primeiro momento, final do ano de 2018, nós fizemos essa adaptação para pessoas com deficiência e, depois, fizemos essa adaptação do total de vagas para pessoas autodeclaradas pretas ou pardas.
Portal da UFJF – No Edital 179/2019, que recebe inscrições até 28 de fevereiro, quais vagas serão reservadas?
No Edital 179/2019, que oferta 17 vagas no total, há reserva de vagas para pessoas com deficiência nos concursos 37, 38 e 40, respectivamente nos departamentos de Clínica Odontológica, da Faculdade de Odontologia; de Biologia, do Instituto de Ciências Biológicas; e de Estatística, do Instituto de Ciências Exatas. Quando aplicamos o percentual de 15% para pessoas com deficiência, tem-se 2,55 vagas. Pelo Decreto 9.508/2018, qualquer número fracionado no caso de PCDs aumenta para o próximo número inteiro. Então, aumentamos para três vagas.
Portal da UFJF – E quanto às vagas para autodeclarados pretos e pardos?
Rafael Lucas da Silva Santos – No caso para pessoas autodeclaradas pretas e pardas, há reserva de vagas nos departamentos de Clínica Médica, da Faculdade de Medicina; de Parasitologia, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Ciências Biológicas, ambos no campus sede; e no Departamento de Educação Física, do Instituto de Ciências da Vida, do campus avançado de Governador Valadares. Em que pese o percentual ser 20%, quando a aplicamos sobre o total dá 3,4 vagas. A Lei 12.990/2014 nos diz que, quando a parte fracionária for inferior a 0,5, arredondamos para baixo. Quando superior, arredondamos para cima. Como foi 20% vezes 17 deu 3,4. Então, a lei estabelece que devemos diminuir para o número inteiro imediatamente inferior. Por isso, ficaram três vagas para PCDs e três vagas para autodeclarados pretos e pardos, em que pese os percentuais diferentes.
Portal da UFJF – Como é realizado o sorteio das vagas?
“É um sorteio público. As pessoas podem participar desse processo, seja para fiscalizar ou acompanhar” – Rafael Santos
Rafael Lucas da Silva Santos – A Pró-reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe) sempre convida os chefes dos departamentos que estão fazendo o concurso e a Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf), como um órgão técnico que tem conhecimento maior dessa política. É um sorteio público. As pessoas podem participar desse processo, seja para fiscalizar ou acompanhar. Os diretores de unidades também são convidados, bem como a equipe da Progepe. É uma reunião ampliada. No início da reunião, fazemos uma breve apresentação, explicando tudo isso, a questão da lei, as alterações recentes. Levamos alguns dados básicos e, quando há algumas dúvidas pontuais, a Diaaf nos auxilia em termos de política. Ao final, nós passamos as decisões que devem ser tomadas. A primeira é a definição, dentro daqueles 5% a 20% que a lei estabeleceu discricionariedade, de qual percentual será feita a reserva naquele edital. Uma vez definido isso, passamos aos sorteios.
Portal da UFJF – Você mencionou a relevância da criação de uma política de ações afirmativas para a pós-graduação e o papel das cotas enquanto sistemática para combate ao racismo institucional. Fale-nos, por favor, um pouco mais sobre essas questões…
Julvan Moreira de Oliveira – São inúmeros os relatos que conhecemos de pesquisadores negros que prestaram concursos em diversas universidades por este país, indo muito bem nas primeiras fases, nas provas escrita e didática, mas que na terceira fase, a da entrevista, são superados, por candidatos com notas menores nas provas escrita e didática.
Aqui está com certeza um dos grandes problemas para o negro que consegue concluir um doutorado e concorre num concurso para professor numa universidade federal. As relações de ‘apadrinhamento’, nas quais membros da banca favorecem candidatos conhecidos, seja por relações de amizade ou parentesco. Isso é bastante forte. E é bastante difícil um pesquisador negro romper com essa relação no Brasil. Primeiro pelo racismo institucional e segundo por essa relação de apadrinhamento.
Portal da UFJF – Há na UFJF debate acerca da criação de ações afirmativas na pós-graduação?
“É importante lembrar que a meta 14 do Plano Nacional de Educação estabelece o aumento gradual do número de matrículas na pós-graduação” – Julvan Oliveira
Julvan Moreira de Oliveira – É importante lembrar que a meta 14 do Plano Nacional de Educação estabelece o aumento gradual do número de matrículas na pós-graduação, de modo a atingir a titulação anual de 60 mil mestres e 25 mil doutores. Dentre as estratégias está a implementação de ações para reduzir as desigualdades étnico-raciais e regionais e para favorecer o acesso das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas a programas de mestrado e doutorado. Especificamente na UFJF, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa instituiu, em 2017, um grupo de trabalho para tratar das cotas na pós-graduação. Este Grupo dedicou-se a estudar algumas resoluções de cotas na pós-graduação de diversos programas de pós-graduação de universidades públicas no Brasil. Foram estudados diversos editais de seleção de variados programas de pós-graduação da UFJF, procurando elaborar uma proposta que pudesse atender a diversidade apresentada na nossa Universidade.
Portal da UFJF – Quanto à sistemática dos concursos para magistério superior, o sorteio das vagas favorece o processo de democratização?
“Além de ampliar o número de negros nos programas de pós-graduação, é necessário corrigir o sistema de ingresso, nos concursos públicos, para que seja o mais objetivo possível” – Julvan Moreira
Julvan Moreira de Oliveira – Então, além de ampliar o número de negros nos programas de pós-graduação, é necessário corrigir o sistema de ingresso, nos concursos públicos, para que seja o mais objetivo possível, como também garanta o cumprimento das cotas, ou seja, dessa política de inclusão a qual tanto almejamos para a construção de uma sociedade realmente democrática, que respeite as diferenças e as diversidades.
Não é um trabalho simples, mas eu gostaria de lembrar que o texto da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41 do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2017, que tinha como objeto a lei nº 12.990/2014, já apontava a necessidade de aglutinar, sempre que possível, as vagas em concursos com baixo número de vagas, garantindo, assim, que em todos os concursos pudessem ser reservadas o percentual de 20% para negros. É uma decisão que está neste documento do STF, e que vejo como uma decisão política de inclusão.
Portal da UFJF – Há alguma questão que você queira acrescentar?
“Para que possamos cada vez mais garantir a entrada de negros como docentes nas universidades, é preciso enfrentar esse desafio de ampliar o número de negros nos programas de pós-graduação” – Julvan Moreira
Julvan Moreira de Oliveira – Para que possamos cada vez mais garantir a entrada de negros como docentes nas universidades, é preciso enfrentar esse desafio de ampliar o número de negros nos programas de pós-graduação. Há estudos que nos mostram que em 2019 apenas cerca de 30% dos programas de pós-graduação no Brasil tinham alguma forma de ações afirmativas, desde a primeira experiência na pós-graduação, realizada na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) em 2002, com entrada para negros e indígenas. Eu reconheço que estamos num momento de ataques às pouquíssimas conquistas que os grupos minoritários tiveram nos últimos anos e, sem dúvida, essa das cotas é uma delas. Seria importantíssimo que a CAPES, responsável pelos critérios de avaliação quadrienal dos programas de pós-graduação, recomendasse a verificação da existência de políticas afirmativas no ingresso de candidatos aos programas, servindo de incentivo para que cada vez mais os programas de pós-graduação criassem ações afirmativas.