A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) terá, a partir de março de 2020, a primeira aluna travesti preta na pós-graduação stricto sensu de sua história. A técnica em saúde Dandara Felícia Silva Oliveira, 38 anos, foi aprovada no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.
“Estar aprovada no mestrado significa que, a partir deste momento, novas epistemologias vão ser construídas dentro deste lugar. Novas epistemologias pretas e novas epistemologias trans. Nós somos sujeitos subjetivos diferentes. A nossa criação é diferente. O jeito como a nossa família se encontra e se reúne, eu estou falando das pessoas pretas, é diferente. O modo como nós fazíamos isso em África já era diferente e isso não saiu da gente”, ressalta Dandara.
No curso de mestrado em Serviço Social, Dandara pesquisará a trajetória de pessoas transgêneros, travestis e transexuais no mercado de trabalho em Juiz de Fora. “Faremos uma análise qualitativa de como o mercado de trabalho recepciona essas pessoas e como essa inserção se dá. Se é precarizada, se é uma inserção igual em todos os níveis, etc.”
“Estar aprovada no mestrado significa que, a partir deste momento, novas epistemologias vão ser construídas dentro deste lugar. Novas epistemologias pretas e novas epistemologias trans” (Dandara Felícia Silva Oliveira)
A futura mestranda enfatiza a urgência e a necessidade do acolhimento das diversidades. “A academia é extremamente branca, cisgênero e heterossexual, principalmente masculina. Um lugar que prioritariamente começou com as mulheres e, em algum momento como tudo que acontece na sociedade, teve essa invasão masculina branca que traz consigo todo um quesito de tentativa de superioridade, inclusive no entendimento. Estar aqui, neste espaço, tem primeiro a importância de dizer: ‘sim, travestis pretas, outras travestis pretas, podem aqui’. E, para além disso, construir novas epistemologias, a fim de que seja mais aberto no futuro para receber outras pessoas, as que vierem depois de nós”.
Serviço Social: pioneirismo na política de cotas
Na UFJF, o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) é pioneiro na implantação de uma política de cotas para estudantes travestis, transexuais e transgêneros no mestrado e no doutorado. A decisão do Colegiado do curso, que também contempla pessoas com deficiência (PCDs), negros (pretos e pardos) e indígenas, foi formalizada em junho deste ano. Em seguida, a mesma medida foi adotada pelo Programa de Pós-Graduação em História.
“Embora nenhuma de nós, alunas pretas, e eu também, que sou preta e trans, não tenhamos sido aprovadas por cotas – fomos aprovadas na ampla concorrência pelo merecimento das notas que tiramos nas provas, nos projetos e nas entrevistas – o fato de ter a cota diz principalmente que este lugar, especificamente, é um lugar que vai ser um pouco menos racista e um pouco menos transfóbico, pelo menos no processo de seleção. Eu acho que essa é a importância do processo”, afirma Dandara.
“A política de cotas é de extrema importância, para aumentar a representatividade desse públicos. Espero que outros programas sigam o exemplo” (Bruna Rocha)
A avaliação é compartilhada por Bruna Rocha, a primeira aluna travesti preta da UFJF na pós lato sensu. Em 2018, ela ingressou no curso de ‘Especialização em Relações de Gênero e Sexualidades: perspectivas interdisciplinares’, ofertado pela Faculdade de Educação. “Parabéns à Dandara. Muito importante a aprovação dela. Já está mais do que na hora das pessoas que integram as minorias sociais – não apenas relacionadas ao gênero, mas à raça, à classe também – terem acesso ao ensino de pós-graduação. A política de cotas é de extrema importância, para aumentar a representatividade desse públicos. Espero que outros programas sigam o exemplo”, destaca Bruna.
0,1% de alunos de universidades federais
A coordenadora do PPGSS, Maria Lúcia Duriguetto, também ressalta a importância do ingresso de estudantes negros e trans no programa. “A população trans tem seus direitos fundamentais negados por não corresponder à normatização de gênero. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Brasil é o país com o mais alto índice de morte de população trans no mundo. Estudo da Ordem dos Advogados do Brasil revela que 82% da população trans sofre com a evasão escolar pela falta de condições de permanência no ensino básico e médio devido à discriminação e ao ódio. Pesquisa da Andifes revela que somente 0,1% do estudantes de universidades federais é de pessoas trans. Qualquer debate sobre o acesso à Educação dessa população – e sobretudo o seu impedimento e negação deste direito básico – não pode ser desvinculado desses dados”.
A professora acrescenta que a política de cotas pretende contribuir para a reparação de públicos discriminados historicamente. “É a possibilidade de inserção e de reconhecimento da pessoa trans como uma pessoa de direito e que pode e deve estar na universidade. E, especialmente para a população trans preta, este direito ainda é mais urgente e necessário, pela intensificação da violência transfóbica e racial que sofrem. No atual cenário político nacional, o sistema de cotas para a população trans contribuirá pedagógica e politicamente para o exercício contínuo de formação e educação sobre os direitos e o respeito às diversidades.”
“O Brasil é o país com o mais alto índice de morte de população trans no mundo” (Maria Lúcia Duriguetto)
Pesquisadores das relações de gênero e sexualidades na UFJF, Marco José Duarte e Juliana Perucchi, também destacam o processo histórico de exclusão de negros e trans no universo acadêmico. “A pós-graduação é um espaço de excelência no âmbito de qualquer universidade. No entanto, devido ao preconceito histórico da nossa sociedade para com as pessoas travestis e transexuais, não vimos, até hoje, muitas dessas pessoas por aqui, nem mesmo em nossos quadros discentes de graduação. Dandara é uma vencedora, mas sobretudo, uma guerreira! Espero que outras travestis da nossa região se inspirem nela e possam vir a construir conosco uma Universidade mais plural, uma ciência mais diversa, para um país mais justo e democrático”, afirma Juliana, que é professora do Departamento de Psicologia.
“Espero que outras travestis da nossa região se inspirem nela (Dandara) e possam vir a construir conosco uma Universidade mais plural, uma ciência mais diversa, para um país mais justo e democrático” (Juliana Perucchi)
Duarte salienta que a política de cotas tem por finalidade reparar os processos de exclusão promovidos pelo próprio Estado. “Garantir as cotas tanto para a população negra quanto para a população trans, além de ser uma reparação, dado o processo de exclusão que o Estado promove através das instituições, é também uma forma de garantir cidadania e direito. Isso é uma discussão histórica, tanto dos movimentos sociais antirracistas quanto antitransfóbicos. A política de ações afirmativas é uma forma de afirmar a cidadania dessas pessoas, e deve ser estendida a todas as universidades, instituições públicas. Não só no campo da educação, mas, também, no campo da saúde. É uma felicidade ver uma pessoa travesti negra entrar na universidade”, aponta o professor da Faculdade de Serviço Social.
“Num primeiro momento é fundamental essa presença mas, para além dela, é estratégico garantir a permanência das pessoas trans nesses espaços de educação superior” (Jaqueline Gomes de Jesus)
Garantir a permanência
A professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Jaqueline Gomes de Jesus, uma das primeiras mulheres trans negras do país a compor o quadro efetivo de uma instituição federal de ensino, alerta sobre a necessidade de as universidades também planejarem estratégias que garantam a permanência de travestis, transexuais e transgêneros em seus cursos.
“Num primeiro momento é fundamental essa presença mas, para além dela, é estratégico garantir a permanência das pessoas trans nesses espaços de educação superior, para que não seja apenas uma questão numérica mas de garantia da formação e da ocupação de espaços profissionais, acadêmicos, de produção do conhecimento”, salienta. A pesquisadora recorda que, “apesar de o acesso à educação ser garantido pela Constituição de 1988, historicamente as travestis foram excluídas das escolas, expulsas, impedidas de serem quem elas eram. Por isso, ao longo da história criaram uma cultura própria, linguagens próprias, uma educação para além da educação formal”.
Jaqueline destaca que a presença de pessoas trans nas universidades, para além de estratégica, é oportunidade de as instituições reverem inúmeros processos de exclusão. “É estratégico não só para as pessoas trans, mas para toda a sociedade, para que possa rever sua lógica de segregação de gênero, a forma excludente como pensa o gênero, como pensa os lugares de homens e mulheres, para repensar a violência naturalizada contra as pessoas trans. É uma transformação da própria Universidade, em busca de uma construção de uma instituição efetivamente democrática e que realmente produza conhecimento, a partir das várias perspectivas e não unicamente da perspectiva do olhar hegemônico dominante. “
Outras informações: (32) 2102-3569 (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social)