O Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sediou na manhã desta quinta-feira, 28, a mesa “Pós-Abolição e Cultura Negra em Minas Gerais”. A atividade, proposta pelo Grupo de Pesquisa Afrikas e pelo Laboratório de História Oral (Labhoi), foi conduzida pela psicóloga da Câmara Municipal de Juiz de Fora, Gilmara Mariosa; pela professora de História da Rede Municipal, Patricia Lage; e pelas professoras da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), Sílvia Brugger; e da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Lívia Monteiro. A mediação foi feita pela pós-doutoranda Maria Luiza Evaristo.
“Importante destacar inúmeros marcos sobre a população negra em Juiz de Fora que são invisibilizados, esquecidos, como o fato de o primeiro padre ter sido um homem negro, como a existência de um quilombo no bairro Dom Bosco, como a presença de uma Irmandade do Rosário na cidade. As pessoas não sabem dessas informações. Quando se fala da história de Juiz de Fora, não se fala disso”, adverte a psicóloga e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Gilmara Mariosa.
A doutoranda salienta que, para a compreensão da cultura negra, é fundamental a valorização das narrativas dos criadores dessa memória e dessa história, indo além dos registros formais. “O quilombo não é reconhecido por não ter registro escrito. É importante ouvir o povo negro, compreender como enxergam as suas tradições e, sobretudo, como o racismo e a intolerância religiosa contribuem para que a população negra não se identifique com as suas tradições e memórias. Não é dada visibilidade, por exemplo, às mulheres negras de Juiz de Fora que perpetuam as tradições religiosas de matriz africana e não são estudadas pela academia.”
A avaliação é compartilhada pela também professora da PJF e doutora em História pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Patrícia Lage. “É necessário conferir visibilidade ao grupo de pretas e pretos de Juiz de Fora que são tão importantes para a construção da cidade quanto os grupos de imigrantes, por exemplo.”
Patrícia, que se dedicou no mestrado em História Social, realizado na UFJF, à pesquisa de festas, identidades, memória coletiva e sociabilidades, enfatiza a ausência de representação da população negra em eventos festivos de Juiz de Fora. “Nas primeiras festas das etnias, você passava e não tinha uma barraca, representando os negros. É importante que se tente ter, o poder público mesmo, porque é preciso vontade política para isso. Falamos nas mesas: em todo novembro somos lembrados e convidados a falar do caminho dos ex-escravizados, do caminho dos libertos, como construíram essas redes, mas, passa novembro, a gente esquece. Os negros construíram a cidade tanto quanto os outros e têm uma parcela muito importante na formação da nossa identidade”, alerta.
“Essas histórias ainda estão para ser contadas”
A professora da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Lívia Monteiro, acrescenta que, no século XIX, Minas Gerais era a província com maior quantitativo de escravizados. “Este evento aponta o quanto o ‘pós-abolição em Minas’, enquanto campo de pesquisa e de atuação também política, tem começado a se organizar. Esta mesa é uma junção desses trabalhos, dessa produção acadêmica que dialoga com os movimentos sociais negros. Não só em Juiz de Fora, mas no Campo das Vertentes e em todo o estado de Minas Gerais. Essas histórias ainda estão para ser contadas, especialmente com a pesquisa com as fontes orais disponíveis.”
A professora da Universidade de São João del Rei, Sílvia Brugger, também aposta na história oral como forma de investigação do período pós-abolição no Estado. Atualmente, a pesquisadora analisa as memórias familiares de congadeiros da região das Vertentes, especialmente nas cidades de São João del Rei, Tiradentes e Barroso.
“O foco central da apresentação foi a permanência e a reelaboração de uma cosmovisão nas narrativas de memórias familiares. No meu caso, do capitão de congado, capitão Prego, Claudinei Matias do Nascimento, do termo de congado de Nossa Senhora do Rosário, escrava Anastácia, de Tiradentes. Então, eu pesquiso como, na narrativa da trajetória familiar dele, os elementos explicativos ligados a esse complexo se apresentam”, explica.
A história e a memória do Movimento Negro
Para a coordenadora do Laboratório de História Oral da UFJF e uma das organizadoras da atividade, Hebe Mattos, a mesa “Pós-Abolição e Cultura Negra em Minas Gerais” fomentou, especialmente, a dimensão do diálogo acerca da história e da memória do Movimento Negro em Juiz de Fora.
“O Afrikas, sob coordenação da professora Fernanda Thomaz, é um grupo de pesquisa que tem uma forte ligação com a história da luta antirracista na cidade e com a reflexão na área de história sobre pós-abolição, história pública e políticas de reparação no Brasil. Para mim especialmente, é uma ideia de tornar mais pública para os próprios estudantes de história, porque têm vários estudantes que querem estudar a história da população de origem africana na cidade de Juiz de Fora, e têm a impressão de que não existe esse conhecimento. E já tem muita coisa produzida.”
A pesquisadora alerta sobre a necessidade de conferir maior visibilidade às pesquisas sobre a temática. “A Funalfa tem um trabalho fantástico, mas que é pouco divulgado até mesmo dentro da própria Universidade. A mesa teve essa importância de colocar para conversar sobre abolição, pós-abolição, racismo no Brasil, de uma dimensão muito específica, das nossas vivências específicas e da história da cidade onde a Universidade está inserida. Eu gostei muito do resultado. O evento provocou diálogos de epistemes, diálogos dentro e fora da academia e entre várias formas de experimentar e refletir sobre a história do racismo na nossa sociedade.”
“História Pública, Áfricas e Pós-Abolição”
Além a mesa “Pós-Abolição e Cultura Negra em Minas Gerais”, Afrikas e Labhoi promoveram na quarta-feira, dia 27, o debate “História Pública, Áfricas e Pós-Abolição”, conduzido pelas professoras Fernanda Thomaz e Hebe Mattos, da UFJF; Martha Abreu, da Universidade Federal Fluminense (UFF); e Mônica Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“A mesa foi muito boa em todos os sentidos. É uma discussão necessária que precisamos fazer. Pela primeira vez, se discutiu, especificamente, história pública na Universidade. História pública, Áfricas e pós-abolição é uma conexão perfeita. Marta Abreu abriu a mesa, falando sobre o campo do pós-abolição e entrecruzando com história pública, mas pensando a partir do campo do pós-abolição. Mônica Lima falou um pouco sobre o Cais do Valongo [antigo cais localizado na zona portuária do Rio de Janeiro], esse lugar de memória, de experiência de opressão de certa forma, mas que perpassa uma história pública. Hebe trouxe os trabalhos com os quilombos, com a produção audiovisual, falou também do Valongo. Passou por várias questões, para também tocar na porta da história pública. Eu fechei, pensando nos campos da história pública e da história da África”, conta a professora de HIstória da África da UFJF, Fernanda Thomaz.
“Para quem estamos falando?”
A pesquisadora aponta que, por longo período, a História dialoga com grupos restritos, em especial, com o meio acadêmico. “A noção de história pública está ligada à preocupação do historiador com o público. O público é o centro. A História Pública vem chamado à atenção, ao dizer ‘isso aqui é político’, ‘o presente importa’, porque, enquanto historiadores, estamos indo para o passado. A História Pública tem sensibilidade com as inquietações do presente, o que é fundamental para transformar a sociedade. ”
Fernanda Thomaz destaca a necessidade de ampliação dos públicos. “Se o historiador pensa o presente, se o trabalho dele tem um sentido político, ele precisa ampliar esse público. Para quem estamos falando? Isso mexe organicamente com o campo de História da África. Enquanto a história pública vai ao encontro do público, a História da África nasce de um público. E esse público é o movimento negro, por exemplo. O público buscando demandas para o próprio público, através da educação. O campo de História da África foi criado, estou falando academicamente, a reboque dessas demandas desse público. Organicamente a história pública está então vinculada a esse público. Acabamos tendo uma responsabilidade social. Não só por um passado sensível, mas também por essa demanda ter vindo da própria sociedade.”
“Negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação”
A pesquisadora enfatiza a necessidade de aproximação da academia com outros públicos e, sobretudo, o reconhecimento, por parte dos acadêmicos, da relevância de outros saberes. “Num momento como este que estamos vivendo, é importante falarmos de História Pública. No início do ano, quando começaram os ataques à Universidade Pública, foram produzidos vídeos para mostrar a importância dessas instituições, mas nós não comunicamos. Muitas vezes, nos projetos de extensão, por exemplo, as abordagens são arrogantes: ‘nós temos o saber’. A história pública não é exatamente hierarquia de saber. Pode ser ampliar o público que eu vou comunicar, pode ser eu vou produzir esse conhecimento histórico para comunicar com esse público ou esse público produzindo esse conhecimento histórico.”
De acordo com Fernanda Thomaz, o referido ‘movimento’ é urgente e necessário, especialmente em virtude da atual conjuntura do país.. “ Se tivéssemos passado pelos processos de negação, da culpa, da vergonha, do reconhecimento e da reparação, não necessariamente na mesma ordem, teríamos um outro lugar para pensar o racismo na sociedade, teríamos um outro lugar para pensar a escravidão. A população brasileira seria menos desigual. Não teríamos argumentos como o do atual presidente da Fundação Palmares, falando que não há racismo no Brasil, que tem que acabar com o movimento negro. Se passássemos por essas fases, talvez não fizéssemos eco a argumentos como esse. Talvez a ideia de democracia racial não tivesse tido terreno fértil como teve no último século e ninguém também estaria pedindo ditadura militar. A história do Brasil, não só em relação à experiência da escravidão, à questão racial, mas toda história do nosso país não perpassa por isso. As pessoas que sofrem não são reparadas e as pessoas que promovem esse sofrimento não são culpabilizadas, não sentem vergonha. Eu digo isso como uma construção social, não individual, porque muitas pessoas logo se ofendem quando falamos isso.”