Game of Thrones é um fenômeno inegável. Ao longo de oito temporadas, a série se tornou uma das produções mais assistidas dos últimos anos, segundo a Revista Time. A megaprodução, que conta com episódios que já chegaram a custar 10 milhões de dólares, influenciou outras canais a se arriscarem na criação de outros dramas com orçamentos gigantescos, conforme números apresentados em reportagem do The New York Times.
Atualmente, a série reina como a ficção que mais ganhou Emmys, o principal prêmio da televisão norte-americana. Na história da premiação, ela é a segunda produção com maior número de estatuetas, perdendo apenas para o Saturday Night Live, programa humorístico que é exibido desde 1975.
Em 2019, mais precisamente no dia 19 de maio, Game of Thrones chega ao seu fim. Reunimos pesquisadores para avaliar a trajetória estratosférica da série em diferentes âmbitos: desde a revolta recente dos fãs até o legado que a produção vai deixar para a televisão.
A guerra dos tronos
O drama medieval segue a disputa de setes reinos pelo cobiçado Trono de Ferro, autoridade máxima do continente ficcional Westeros. A série é uma adaptação da franquia literária “As Crônicas de Gelo e Fogo”, do escritor estadunidense George R. R. Martin. Os livros são carregados de uma trama política complexa e densa, contada do ponto de vista de diferentes personagens.
Desde sua primeira temporada, Game of Thrones chamou a atenção pela constante quebra de expectativa dos espectadores, principalmente pelas mortes impiedosas de personagens importantes para os conflitos narrativos. A roteirista e professora da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Monica Solon, comenta que tal característica é uma das questões mais marcantes dos livros. “Eu me lembro do choque que senti quando determinados personagens do livro morreram – a série ainda não existia – e de pensar: ‘esse é o autor mais cruel com seus leitores que eu conheço!’”. Segundo ela, os últimos anos marcam um aumento na ousadia das narrativas seriadas, que começaram a trabalhar com reviravoltas mais radicais — como no caso da nona temporada The Walking Dead, que apresenta uma virada brutal e chocante, e The Good Fight, série derivada de The Good Wife, cuja trama prossegue sem a protagonista original. Ela ainda aponta que, com uma história mais concisa e condensada, a série amplia a conexão da audiência com os personagens. Um exemplo disso é o “Casamento Vermelho”, como ficou conhecido um dos momentos mais aclamados da série, que acarretou na morte de diversos personagens e viralizou após sua exibição. O motivo foram os inúmeros vídeos de fãs reagindo, em choque, às cenas violentas. Abaixo, você confere uma compilação exibida ao autor, George Martin, durante entrevista ao humorista Conan O’Brien:
Embora não fosse comum por décadas, matar personagens não é uma novidade no mundo das séries. No entanto, em Game of Thrones, as mortes se dão de uma forma específica e mais impactante. “Os personagens que morrem não são coadjuvantes, com menos importância no desenvolvimento da trama. Morrem personagens enquanto estão na condição de protagonistas, matando também o curso dos acontecimentos e reiniciando boa parte da história”, comenta Christian Pelegrini, professor do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do grupo de pesquisa EnTelas.
O professor explica que Game of Thrones faz parte de um movimento de transformações estéticas na narrativa, que já ocorre há alguns anos. Entre as séries que começaram essa onda, estão outras produções aclamadas da própria HBO, como Oz e The Sopranos. “Game of Thrones não me parece ser responsável, sozinha, por mudanças tão radicais. Ela faz, sim, alguns experimentos em novas estratégias narrativas, mas ela me parece mais uma atualização dos novos modelos de série que já ocorrem há algum tempo”.
“Os produtores optaram por reconstruir essa densidade narrativa com muitos personagens e eventos que os entremeiam, mas o fazem assumindo a forma de série audiovisual longa e respeitando os condicionamentos do meio e do formato.”
Christian afirma que o possível acréscimo de Game of Thrones à estética atual venha do esforço de adaptar uma obra literária extensa. Nos livros, a trama se desenvolve em diferentes núcleos narrativos, contada pelo ponto de vista de personagens distantes que quase nunca interagem. “Os produtores optaram por reconstruir essa densidade narrativa com muitos personagens e eventos que os entremeiam, mas o fazem assumindo a forma de série audiovisual longa e respeitando os condicionamentos do meio e do formato. Reconheço que o fazem atuando nos limites e muitas vezes expandindo-o.”
A roteirista Monica Solon elogia o trabalho de David Benioff e Daniel B. Weiss, os produtores que estão por trás da série. “Costurar bem esse universo – os diferentes locais, as línguas e as culturas – dentro da narrativa da série junto com uma quantidade enorme de personagens importantes e de tramas políticas é muito difícil. Eles conseguiram fazer o público conhecer, transitar por e compreender as ‘regras’ de cada um desses núcleos, alinhavando bem os personagens e a trama política.”
A fúria de rainhas
Alguns desses núcleos narrativos demoraram temporadas para interagirem de maneira direta, mas sempre apresentaram uma interdependência para o desenvolvimento da narrativa. “O encontro de Daenerys com Cersei, por exemplo, só foi ocorrer recentemente, mas essas personagens dialogaram constantemente durante as temporadas sem nem ao menos se falarem”, explica Paloma Destro, mestre em Comunicação e Identidades pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em sua dissertação “Um jogo de rainhas: as mulheres de Game of Thrones”, ela analisa a construção das personagens Cersei Lannister, Catelyn Stark e Daenerys Targaryen durante a primeira temporada da série.
Desde a década de 1970, a representação feminina na televisão sofreu grandes modificações. Os roteiros, que antes representavam as mulheres como donas de casa submissas aos maridos, passam a mostrar personagens livres do matrimônio e entrando no mercado de trabalho. A série “Mary Tyler Moore Show” é considerada um símbolo ao contar a história de uma protagonista de 30 anos, solteira e bem-sucedida na carreira como produtora televisa. Na década de 1990, a representação feminina nas séries se intensifica, com personagens e tramas complexas. Produções como “Buffy: A Caça-Vampiros” e “Sex and the City” são exemplos disso. “Penso que Game of Thrones se mostra como um produto de seu meio, ou seja, uma narrativa em que a mulher não pode ser apenas mera coadjuvante nas relações e disputas, já que não é isso que a identidade feminina vem construindo ao longo dos anos em nossa sociedade”, comenta Paloma.
A autora defende que Cersei Lannister se manifesta como um retrato do individualismo, apesar dos filhos sempre se apresentarem como sua principal motivação. Mãe, amante, esposa e estrategista, a rainha que ocupou o cobiçado Trono de Ferro por mais de uma temporada é uma personagem narcísica que vê a si mesma em tudo o que ama: os filhos são a sua continuidade e o irmão gêmeo (e amante) é seu lado masculino. “Todos os seus movimentos protetores culminam para a sua manutenção na guerra dos tronos”, analisa Paloma.
Já Catelyn Stark inicia sua jornada no estereótipo da mãe-esposa, relegada ao âmbito privado por sua ocupação social. No entanto, o desenrolar da trama e dos conflitos em Westeros a levam para a esfera pública. Com a ausência do marido no castelo de Winterfell, ela deixa de ser apenas uma personagem de fundo para se tornar a matriarca da Casa Stark. “Ela sofre metamorfoses, revelando, a cada virada na trama da narrativa, uma nova identidade, uma nova Catelyn: a mãe, a justiceira, a estrategista, a protetora, a vingativa, a conselheira, a embaixatriz, a negociadora.”
Quanto a Daenerys Targaryen, Paloma argumenta que ela se mostra como uma excelente representação do indivíduo contemporâneo. Começando como uma princesa exilada sob o controle do irmão, ela se torna uma Khaleesi, líder de um dos clãs do poderoso povo guerreiro Dothraki. Ao final da primeira temporada, ela se torna a Mãe dos Dragões, ao fazer com que os ovos das criaturas extintas e lendárias se choquem. Para Paloma, a identidade da personagem se transforma e entra em crise na medida em que ela se vê inserida em contextos diferentes, que vão demandar reações variadas. “Daenerys encarna uma metamorfose pela qual todos nós passamos em nossas vidas. Ao fim, surge outra Daenerys, composta por diversas camadas, mas que tentará, certamente, ser e se sentir completa.”
Paloma reitera que a série se tornou um campo muito mais vasto de pesquisa e análise ao longo dos anos. Ela destaca a ascensão de outras personagens femininas com arcos narrativos complexos e que participam ativamente dos conflitos políticos em Westeros – é o caso da sacerdotisa Melisandre, da guerreira Brienne de Tarth e das irmãs Sansa e Arya Stark. Essa insurgência influenciou vários personagens masculinos, como Jon Snow e Theon Greyjoy, que apresentaram mudanças significativas na forma com que se relacionam com as mulheres ao seu redor.
Referenciando teóricos como Edgar Morin e Douglas Kellner, a mestre explica que compreender os produtos audiovisuais e a cultura pop podem auxiliar a entender a sociedade contemporânea, já que esses conteúdos exercem forte influência na vida e na formação do sujeito. “As representações vão nos ajudar a constituir uma visão de mundo do indivíduo, o senso dele de identidade e de sexo. Essa cultura da mídia então fornece materiais para que as pessoas formem suas identidades e construam seu senso de classe, nacionalidade, etnia.”
A tormenta de piratas
Muitos indicadores atestam a grande popularidade de Game of Thrones. Entre eles está o número de downloads ilegais: segundo o site de monitoramento TorrentFreak, a série foi a mais pirateada por seis anos consecutivos. O último episódio da sétima e penúltima temporada, exibida em 2017, foi compartilhado por mais de 400 mil canais piratas simultaneamente. Na dissertação “Game of Torrents: Pirataria e Cultura de Fãs em Game of Thrones”, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a mestre Roberta Garcia discutiu o papel dos downloads ilegais e da cultura de spoilers dentro dos fandoms – termo em inglês que designa grandes grupos de pessoas com um gosto em comum.
A autora explica que os downloads ilegais têm um papel importante dentro das comunidades no que tange à distribuição igualitária e massiva do produto. Isso gera discussão, principalmente quando o produto é um material audiovisual contínuo – como séries, animes e franquias de filmes. “Se eu quero conversar sobre a série que eu gosto, eu preciso que outras pessoas tenham assistido para que exista diálogo. Se eu tenho a HBO e outras pessoas não, como a gente conversa sobre?”. Ela ainda aponta que os conteúdos ilegais atingem um ponto incomum que está fora do alcance da distribuição legal: o esforço múltiplo dos fãs para que o episódio seja compartilhado. “Uma pessoa arruma o arquivo; vários computadores deixam o arquivo no ar; grupos enormes legendam os episódios; sites disponibilizam; e por aí vai. Para alguém assistir a um único episódio, ela dependeu de milhares de pessoas. É a mesma lógica da organização do fandom: várias pessoas juntas por um ideal em comum.”
“Fora as pré-estreias, é raro você ver a sala inteira reagindo à morte de um personagem. Estabeleceu-se uma cultura bem parecida com a do consumo do futebol. Até bares exibem os episódios.”
Entre 2015 e 2017, Roberta realizou uma pesquisa quantitativa sobre as formas como os fãs consumiam a série. Os dados coletados mostram que, através dos anos, houve pouca alteração nos números de quem escolhe baixar ou de quem optou por assinar a TV à cabo. O que chamou a atenção da autora foi o aumento de pessoas que assistiam à série na casa de amigos. Segunda ela, dois fatores são responsáveis por essa mudança: o primeiro, é a simples explicação de que um amigo, assinante do canal, disponibilizava sua casa para outras pessoas; já o segundo, implica toda a ideia social de assistir aos episódios em grupo. “Isso é incomum até se você pensar sobre o cinema. Fora as pré-estreias, é raro você ver a sala inteira reagindo à morte de um personagem. Estabeleceu-se uma cultura bem parecida com a do consumo do futebol. Até bares exibem os episódios.”
Roberta pretende realizar a pesquisa novamente em 2019, já que a série não foi exibida em 2018 devido a um hiato para a produção da última temporada. Ela destaca a importância de estudar o comportamento dos fãs em uma época em que o consumo de material midiático é crescente. “Como publicitária, podemos aplicar esse conhecimento em marcas. Outras áreas podem aplicar esse conhecimento para crises entre religiões, por exemplo. Fanatismo não é uma palavra escolhida à toa. Com um recorte voltado para a questão política, se você olhar a forma super polarizada como as pessoas se comportam durante as eleições, elas são basicamente comunidades de fãs.”
O festim dos fãs
“Até a década de 1970, o fã era estigmatizado”, explica Daiana Sigiliano, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisadora do Observatório da Qualidade no Audiovisual. “Ou ele era groupie, histérico e não pensava em nada; ou ele era alienado, ou seja, ele não tinha conhecimento crítico sobre aquilo; ou ele adorava sem saber porquê. Era algo sempre pautado em estereótipos pejorativos.”
A visão do papel dos fãs no funcionamento da cultura sofre uma grande transformação com os trabalhos de Henry Jenkins. Como aponta Daiana, ao explorar o funcionamento do fandom da franquia Star Trek, o pesquisador norte-americano rompem com os estereótipos vigentes. “O fã é o modelo clássico de você ter a compreensão crítica do que você consome, então você conhece cada detalhe, você consegue observar se tem erros ou a forma como o personagem está sendo construído”.
O formato da narrativa seriada também é um grande fator nesse engajamento da audiência. A partir dos anos 1990, começando com Twin Peaks, as séries passam a ter uma nova maneira de contar suas histórias. O roteiro passa a tentar confundir, para depois surpreender, o público, abrindo espaço para que o público possa teorizar e participar ativamente da construção da trama. “Na maior parte do tempo, o público sabe que está perdido e o roteirista quer fazer ele ficar perdido. Faz parte da experiência você não entender ou completar a informação, é como se fosse um jogo”, Daiana explica.
Essa dinâmica narrativa implica diretamente na preocupação dos fãs com spoilers – as importunas revelações sobre o enredo. Em sua dissertação sobre pirataria, Roberta Garcia também explorou o comportamento dos espectadores em relação aos vazamentos (tanto de roteiros, quanto de episódios) que aconteceram no começo de determinadas temporadas. “Nos três anos a porcentagem de gente que responde que baixou o torrent por medo de spoiler vai crescendo. Em 2015, eram 16% e depois já sobe para 34% e 33%. Na sexta e na sétima temporadas, essa taxa mais do que duplica.”
Nos anos iniciais, a série seguia os livros quase devotamente, entretanto, a saga literária ainda não está finalizada. O volume mais recente, “A Dança dos Dragões”, foi publicado nos Estados Unidos em 2011 e equivale aproximadamente aos acontecimentos vistos na quinta e em parte da sexta temporada. Por isso, Game of Thrones precisou tomar liberdades criativas e se desvencilhar da obra para dar fim à sua narrativa. A roteirista Monica Solon comenta que isso é comum e importante nas adaptações, mas o desafio é dar continuidade à trama e aos personagens quando os livros subsequentes sequer foram escritos. Ela cita séries como The Handmaid’s Tale e Big Little Lies que, apesar de serem baseadas em livros com apenas um volume, têm (ou terão) outras temporadas.
Tais “liberdades” têm feito com que, nos últimos anos, a série venha sendo alvo de constantes críticas por parte do próprio fandom. A forma como se deram as reviravoltas da oitava e última temporada geraram tanta revolta que mais de meio milhão de pessoas já assinaram uma petição para que os produtores refizessem a trama. Como o próprio texto da petição explicita, muitos fãs associam a suposta queda de qualidade com a carência dos livros como base para a narrativa. A doutoranda Daiana acredita que tal mudança tem mais relação com os aspectos mercadológicos da popularização da série:
Até a quarta temporada, o autor George R. R. Martin figurava pontualmente como roteirista de Game of Thrones. Entre os episódios pelo qual ele é creditado estão alguns dos mais importantes para a trama, como o “O Leão e a Rosa” – centrado no casamento do tirano rei Joffrey. Desde então, o escritor participa apenas como co-produtor. Daiana Sigiliano avalia como essa quebra de laços criativos com os livros e o atraso na publicação deles é interessante para a emissora, principalmente no que tange às críticas dos fãs:
A dança dos dragões
Para Daiana, é difícil responder os motivos que fizeram de Game of Thrones em um fenômeno. Para além de uma narrativa focada em criar tensões e engajar a audiência, a série faz parte de um universo ficcional transmídia que facilita o consumo dela – o espectador pode pavimentar seu caminho dentro da história a partir de jogos, livros e enciclopédias. Ela chama atenção para o fato de a exibição ser feita em tempo real para inúmeros países. “É uma série de questões que talvez potencializam essa experiência compartilhada que sempre esteve presente na televisão.”
Para Monica Solon, “a série é um marco no sentido de ser um fenômeno mundial, em termos de audiência”. Mesmo que seja uma adaptação de obras já conhecidas, o público da série ultrapassou em muito o dos livros. “A própria série avançou, enquanto os livros finais ainda nem foram escritos. Ela ganhou vida própria para além da obra original, mesmo que alguns leitores desaprovem certas decisões tomadas pelos showrunners (os produtores) da série.”
O professor Christian Pelegrini enumera uma série de fatores que se destacam em Game of Thrones: os diálogos bem escritos; o trabalho do elenco, extremamente em sintonia com o universo narrativo; e o valor de produção, que resultou em algo extremamente sofisticado. Na opinião dele, a série se tornou tão popular simplesmente por ser boa. “Pode parecer que não é resposta, mas me parece simples assim. Em suma, embora Game of Thrones tenha sido ousada em relação a algumas estratégias narrativas, não acredito que a série seja revolucionária. Mas isso não impede, de forma alguma, que ela seja feita com maestria.”
Em relação ao desfecho da série, Daiana Sigiliano enumera produções que se encerraram de maneira polarizante, como House, Dexter e Lost. Tanto como fã quanto como pesquisadora, ela conclui: “faz parte do ‘gostar de séries’ se decepcionar no final!”.