“Intransigência, Falácia e Ilusão: a reação conservadora contra a previdência e a seguridade”. O título do artigo produzido pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ignacio Godinho Delgado, deixa claro sua posição frente à proposta de reforma da previdência do Governo Federal. O texto, no entanto, está longe de ser material meramente panfletário ou embasado nos rasos argumentos “lacrativos” das redes sociais. Doutor em Sociologia e Política, Delgado publicou em 2001 um estudo sobre a previdência social na perspectiva do empresariado sua tese de doutorado e tem ampla experiência em estudos sobre desenvolvimento, cidadania e políticas industriais, trazendo neste novo trabalho, especialmente preparado para o site da UFJF, contribuições aos dilemas apresentados sobre a previdência e a seguridade social no Brasil.
Na entrevista abaixo, os pontos principais do artigo são debatidos com o autor, atualmente diretor de Inovação da UFJF do Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia (Critt). Ele reconhece a necessidade de renovação do pacto entre gerações, garantindo os direitos a aposentadoria, mas sem mudanças drásticas. O ponto central da discussão, no entanto, é mudança de perspectiva sobre os reais impactos econômicos e no desenvolvimento do país com a proposta, especialmente em relação ao sistema de capitalização. A reforma não é um “condão mágico”, e precisa dar lugar a um debate mais profundo sobre produtividade, inovação, desenvolvimento tecnológico e cidadania.
Diretoria de Imagem Institucional: No artigo, o senhor defende que a proposta da reforma da previdência se utiliza de uma retórica historicamente conhecida dentro do debate entre progressistas e conservadores. Explique como os argumentos dessa narrativa estão dispostos no debate político.
Ignacio Delgado: Esse é um conceito desenvolvido pelo economista Albert Hirschman, “a retórica da intransigência”, com o que analisou a reação e os argumentos conservadores diante dos avanços políticos e sociais no mundo, desde a Revolução Francesa. No Brasil, essa retórica esteve presente em todos os passos das conquistas por direitos. Veja, o fim da escravidão foi apontado por muitos como um risco para a economia brasileira; a consolidação dos direitos do trabalho por Vargas inviabilizaria a produção industrial; a bolsa família alimentaria a ociosidade; as cotas estimulariam um racismo ‘inexistente’ no país da ‘democracia racial’ e minavam a meritocracia. Esses são alguns exemplos clássicos.
Na área do desenvolvimento econômico, outro argumento é de que a ampliação dos gastos sociais geraria uma explosiva crise fiscal do Estado e impediria que o livre mercado cumprisse seu papel na elevação do investimento e na geração de emprego.É exatamente esta mesma retórica que alimenta hoje as ações de desmonte do estado de bem-estar social, do qual a previdência faz parte, e que construímos,a duras penas, ainda que de forma incompleta, desde a Constituição de 1988.
Isso quer dizer que esse debate faz parte de um movimento cíclico, realmente de reação aos avanços, sem correlação com fatores econômicos?
Neste caso, o gatilho para a reação é a retração da atividade econômica, a partir de 2011. Naquele momento se instala um conflito redistributivo e começa a retornar com força o discurso de que a recuperação brasileira passa pela redução do custo do trabalho e da mitigação do papel do Estado na promoção do desenvolvimento e na garantia de proteção social. Esse sistema de proteção social seria generoso demais e responsável pela crise fiscal do Estado brasileiro.
A solução dos conservadores [para a retração econômica], mais uma vez, seriam as velhas receitas de privatização, o esvaziamento do papel dos bancos públicos e a dinamização do mercado de capitais, a reforma trabalhista e, agora, a chamada Nova Previdência.
A solução dos conservadores, mais uma vez, seriam as velhas receitas de privatização, o esvaziamento do papel dos bancos públicos e a dinamização do mercado de capitais, a reforma trabalhista e, agora, a chamada Nova Previdência. Essas medidas seriam supostamente capazes de corrigir os “excessos” da seguridade social, proporcionar a retomada do crescimento econômico e a geração de empregos.
Assim, no caso da previdência, a proposta do Governo se ancora em dois argumentos básicos: a insustentabilidade financeira da seguridade social e da previdência, o que iria prejudicar seus futuros beneficiários e, segundo, a dinamização do mercado e um aumento suposto da segurança para beneficiários com a mudança do sistema de repartição simples para o regime de capitalização.
E esses argumentos se sustentam? A previdência como existe hoje é ou não inviável financeiramente?
De fato existe um desempenho negativo da previdência, a partir de 2015, e isso coincide com o mergulho do país na recessão, combinado a políticas de precarização do trabalho. No entanto, há uma evidente manipulação das fontes de receita e das despesas efetuadas na contabilidade apresentada pelo Executivo, quando trata da seguridade social.
De acordo com a Constituição, os regimes próprios de servidores federais são parte da “Organização do Estado”, e não da “Seguridade Social”, assim como os salários dos militares inativos, que possuem regime próprio. Por isso, não faz sentido apresentar suas despesas como componentes do déficit da previdência social.
Há uma evidente manipulação das fontes de receita e das despesas efetuadas na contabilidade apresentada pelo Executivo, quando trata da seguridade social.
Além disso, segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), nos boletins mensais publicados sobre as receitas e despesas da previdência não são consideradas as renúncias fiscais que afetam diretamente a arrecadação, bem como a contribuição do Estado, dentro do modelo tripartite do sistema de repartição adotado em todos os países que o instituíram.
Isso significa que a conta pode estar errada?
A conta está errada, como o demonstram as tabelas da Anfip incluídas no artigo. A Constituição Federal definiu a previdência como parte da Seguridade Social, junto à saúde e à assistência, com um orçamento único. Portanto, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), o Cofins, as receitas de prognósticos de loterias e dos tributos incidentes sobre o importador de bens e serviços, além das contribuições previdenciárias são parte de um só orçamento, de onde deve sair, também, a participação do Estado no custeio da Previdência. Para essa o Executivo só considera as receitas das contribuições e inclui nas despesas os regimes próprios. Mesmo após 2015, a participação do Estado no custeio do regime geral da previdência, ficou, no Brasil, abaixo da média da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Além disso, em minha opinião, se considerarmos isoladamente a previdência, como um sistema de aposentadorias e pensões contributivo, um benefício como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) não deveria figurar nas despesas, pois se trata de um benefício conceitualmente mais associado à assistência. Por fim, em sua contabilidade para a seguridade como um todo, o Executivo desconsidera a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que toma 30% das receitas da seguridade, excluídas as contribuições, subestima as compensações que são devidas pelas desonerações das contribuições previdenciárias, não leva em contas as renuncias fiscais, ignora a sonegação, projetando um cenário catastrófico, completamente sem sentido se a previdência e a seguridade recebessem tudo que lhe cabe.
Sem falar no baixo índice de formalização do mercado de trabalho brasileiro, que reduz a base de arrecadação da previdência. Quando ela se elevou, a participação do Estado na Previdência, mesmo com os números do Executivo, caiu de 25% em 2005 para 12% em 2012. Com a “reforma trabalhista”, que estimula a informalidade, a situação vai se complicar.
Uma justificativa da proposta é o crescente aumento do número de pessoas inativas, de idosos, invertendo a pirâmide demográfica. Como ficará o sistema previdenciário diante das mudanças demográficas do país?
Há controvérsias no tratamento das estimativas demográficas. Enquanto o Executivo alardeia que vivemos uma transição demográfica que exige uma mudança drástica hoje, a Anfip faz um balanço diverso dos impactos de tal transição para o desempenho da previdência. Segundo o estudo da entidade, somente a partir de 2037, haverá mais brasileiros saindo do que entrando no mercado de trabalho.
Por outro lado, não se pode, evidentemente, fechar os olhos aos dilemas que decorrem das mudanças demográficas em curso. A elevação do número de idosos e a redução de pessoas em idade ativa podem exigir ajustes pontuais nas contribuições e nas idades de ingresso e saída do mercado de trabalho, renovando periodicamente o pacto entre gerações, sem supressão de direitos ou reformas abruptas que alterem totalmente o curso de vida das pessoas. Aliás, reformas têm sido efetuadas desde a década de 1990 e deverão continuar a acontecer, mas isso deveria ocorrer de forma pactuada e progressiva.
Outra preocupação com os dados é a seguinte: quanto mais distante as datas são projetadas, mais incongruentes podem ser as estimativas de cenários futuros. No caso do Brasil, as projeções do governo federal sobre a arrecadação previdenciária têm frequentemente incorrido em erros, em geral, subestimando receitas e elevando despesas, por se fixarem em variáveis constantes, que não consideram a dinâmica do mercado de trabalho. Isso quer dizer que os modelos estatísticos não incluem desvios cujos impactos podem ser determinantes para a vida das pessoas.
O déficit da previdência e da seguridade social apresentado como justificativa para sua reforma é, no mínimo, controverso e, no limite, uma falácia.
Resguardadas, então, as distorções apontadas pelo senhor, quais seriam as alternativas para a previdência social no Brasil?
O déficit da previdência e da seguridade social apresentado como justificativa para sua reforma é, no mínimo, controverso e, no limite, uma falácia. No entanto, como disse, reformas têm sido efetuadas em todos os governos e deverão continuar a acontecer. Medidas específicas para os regimes próprios devem ser objeto de debates, mas considerando as particularidades de cada um, como nos casos dos servidores civis e dos militares.
Uma dimensão pouco considerada neste debate é a elevação da produtividade do trabalho, em especial através do incremento da inovação tecnológica. Isso pode trazer um significativo impacto para as receitas previdenciárias, modificando os parâmetros para o cálculo da razão de dependência com o futuro envelhecimento da população. O aumento da produtividade eleva o valor da atividade do trabalhador, compensando a redução do número de pessoas ocupadas. Nesse sentido, as contribuições previdenciárias poderiam ser alteradas, incidindo mais sobre a parcela derivada do faturamento do que sobre a folha de pagamentos. Acredito que garantir a vitalidade da previdência social passa pela sua articulação com políticas industriais e de apoio à inovação.
Por fim, no ambiente atual brasileiro há, ainda espaço variado para o aumento da arrecadação. São exemplos a mudança na política de desonerações e isenções, mais efetividade na fiscalização à sonegação e na cobrança das dívidas, além da redução do saldo da conta única do Tesouro. O impacto geral seria o aumento da demanda, da atividade e das contribuições.
E a mudança do sistema de repartição simples para o regime de capitalização também não geraria incremento na atividade econômica, como defende o governo?
Acho pouco provável que a ampliação da previdência privada e a universalização do sistema de capitalização venham a se converter num condão que, magicamente, eleve o investimento produtivo. No artigo, comparo diversos países, de modo a revelar que esta conexão entre investimento, desenvolvimento tecnológico e dinamização do mercado de capitais pelo aumento do peso da previdência privada não pode ser considerada uma regra geral. Atualmente, tal correlação é mais fluida ainda, pelo cenário global de financeirização da economia, acentuada no caso brasileiro.Mesmo empresas não financeiras entendem que há maior chance de obter rentabilidade de seus investimentos se aplicá-los no sistema financeiro, em fundos de renda fixa, por exemplo, e não na sua atividade principal. Há, então, uma degradação das atividades da economia real. As taxas de juros elevadas e a concentração do sistema bancário brasileiro também agravam o cenário.
No artigo, também apresento a ideia de que é uma ilusão comparar o papel do mercado de capitais e dos fundos de pensão dos Estados Unidos com aquilo que pode ser feito no Brasil a partir do modelo de capitalização da previdência. O desenvolvimento econômico e tecnológico dos EUA depende em boa parte do poder de compra do Estado, em especial na área da defesa, que se irradia por todo o tecido produtivo, além das enormes inversões públicas em pesquisa, que municiam as corporações norte-americanas. A pujança da economia dos EUA associou-se, ainda, à presença de grandes empresas nacionais, apoiadas pelo Estado em seu processo de crescimento e projeção para o exterior. Já no Brasil, as inversões dos fundos de pensão fechados indicam um grande peso de suas aplicações em renda fixa e pouca participação em outros ativos, mais associados ao investimento produtivo.
Por isso, a criação do sistema de capitalização, ao meu ver, tem fraca relação com a elevação do investimento, favorece inversões de curto prazo e afeta negativamente a demanda, possivelmente provocando efeitos opostos aos esperados por seus propositores para a elevação do investimento e do emprego.
O Brasil enfrenta um impasse, então, na busca por uma solução para o sistema de previdência?
A repactuação do acordo entre gerações nos sistemas de aposentadoria e pensões baseados na repartição simples exige acertos permanentes nas regras de ingresso e saída do mercado de trabalho e criatividade na definição da estrutura de contribuições.
O sistema de capitalização pode ser considerado como uma opção para os fundos de previdência complementar, de caráter público ou privado, mas não como base do regime geral. Dessa forma ele é adotado em poucos países. Como base do regime geral da previdência, o sistema de capitalização esvazia a aposentadoria como um direito, tal como aparece no Artigo 7º da Constituição, porque seu provimento passa a depender exclusivamente disposição individual de investir em fundos de capitalização, eliminando o princípio da solidariedade entre gerações e classes, que existe no sistema de repartição. Além disso, como observei, ele não é capaz de gerar recursos para investimentos pacientes em projetos de maturação mais longa, capazes de ampliar o peso das atividades intensivas em tecnologia na estrutura econômica do país.
No entanto, é preciso observar que a repactuação do acordo entre gerações nos sistemas de aposentadoria e pensões baseados na repartição simples exige acertos permanentes nas regras de ingresso e saída do mercado de trabalho e criatividade na definição da estrutura de contribuições. Além disso, deve estar conectada a um projeto de desenvolvimento que assegure ao país capacidade de inovar para superar sua condição semiperiférica na economia global e para a elevação da riqueza geral. Isso passa por relações de trabalho que elevem o espaço de liberdade das pessoas ou seu tempo livre, bem como seu comprometimento com o empenho inovador das empresas. Relações de trabalho precárias e aposentadorias miseráveis não vão contribuir pra isso.