Por Carolina Nalon e Laís Cerqueira

Lama e elementos químicos dos rejeitos modificam a morfologia e os ambientes biológicos dos rios (Foto: Maria Otávia Rezende)

A questão não é discutir se vai romper outra barragem no futuro ou não. A questão é quando.” A afirmação categórica é do professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Miguel Fernandes Felippe. Desde o rompimento da barragem de Fundão, ele alega que a comunidade acadêmica já sabia que era uma questão de tempo até acontecer algo parecido em outro local de risco. “Infelizmente, a gente só não sabia qual.” O professor segue nesta segunda-feira, dia 4, para a primeira missão de campo da UFJF em Brumadinho.

Para Felippe, é necessário uma mudança completa no atual processo de extração de minério, abarcando desde as condições estáveis para a construção de barragens até a garantia da segurança da população do entorno. “Se não tiver uma mudança em toda essa estrutura, fica muito difícil de pensar que não vamos ter outras tragédias no futuro, principalmente aqui em Minas Gerais.”

Não sei quanto tempo vai levar para recuperar, mas tenho certeza de que eu não vou ver – Miguel Felippe

Meses antes do recente desastre, Felippe foi um dos entrevistados por repórteres da Revista A3 para a apuração de um dossiê sobre a ruptura de uma barragem da Samarco em Mariana, que atingiu diretamente a bacia do rio Doce – um episódio que ficou marcado como o maior desastre ambiental do Brasil. Na ocasião, o pesquisador foi categórico: “repito a mesma coisa desde o rompimento da barragem até hoje, três anos depois: não sei quanto tempo vai levar para recuperar, mas tenho certeza de que eu não vou ver”.

Os primeiros resultados sobre técnicas, processos e alternativas de recuperação das áreas degradadas do rio Doce começaram a ser publicados nos últimos meses. De acordo com o pesquisador, a Samarco deveria ter feito esses estudos de base logo de imediato, ou seja, uma profunda varredura dos danos nos meios físicos, ambientais, ecológicos e sociais, para então subsidiar as tomadas de decisões. Na opinião de Felippe, as organizações não governamentais também perderam tempo – fizeram relatórios muito tardios e burocráticos. Universidades e centros de pesquisa tentam suprir essa demanda, mas enfrentam seus próprios problemas com investimentos.

Segundo Felippe, os primeiros editais de apoio para pesquisas relacionadas ao desastre de Mariana foram publicados no início de 2016, e a maioria dos recursos foi liberada no segundo semestre daquele ano. Só a partir daí os projetos começaram a ser desenvolvidos, o que gera um atraso no progresso científico sobre o tema. É fundamental que, no caso de Brumadinho, a resposta seja mais imediata não só em relação às vítimas mas também com as análises dos impactos ao meio ambiente.

Miguel Felippe discute com suas orientandas as severas modificações causadas no decorrer da bacia do rio Doce (Foto: Maria Otávia Rezende)

Na bacia do rio Doce, dentre as ações propostas firmadas por meio da Renova, fundação responsável pela reparação, há 20 programas e projetos na área socioambiental e outros 20 de cunho social e econômico. “De nada adianta tentar recuperar o modo de vida das pessoas sem recuperar a paisagem que dava subsistência para aquele modo de vida. Por outro lado, você se preocupar com o rio, sem dar às pessoas um lugar para morar, uma condição econômica para elas se sentirem produtivas e fazer justiça ao que aconteceu, chega a ser cruel.”

Contaminação da água

As pesquisas de Miguel Felippe na bacia do rio Doce estão concentradas em três eixos principais. O primeiro deles ligado à qualidade das águas e à interação dos rejeitos com os rios do ponto de vista químico. Atualmente, a mestranda Bárbara Avila tem se debruçado sobre a temática. A pesquisa está no estágio inicial, e já foram feitas as coletas de campo perto de Paracatu de Baixo. “Em uma bacia hidrográfica, esse material (rejeito) fica em um local determinado e, quando há esse deslocamento, ele passa a interagir com os outros elementos da água e do relevo de forma diferente, muda a dinâmica”, explica a estudante.

Existem levantamentos desse tipo, mas sem consenso quanto aos resultados. Segundo Felippe, os laudos são contraditórios. “A água tem altos teores de alguns tipos de metais como alumínio, ferro e manganês. Os próprios relatórios da Samarco mostram isso. Outros relatórios de institutos, porém, também apresentam arsênio e bário, por exemplo, e aí entra a contradição”. Para além da presença desses elementos, existe ainda uma divergência sobre a origem deles na bacia. “A empresa defende que a água do rio Doce já estava contaminada.”

Para Felippe, de fato, sempre houve uma preocupação em monitorar a degradação da bacia, ocasionada principalmente devido à retirada excessiva de água do rio e às atividades de pecuária, mineração e siderurgia. Junto delas há, historicamente, um intenso impacto ambiental no Rio Doce, com destaque para a região metropolitana do Vale do Aço e Governador Valadares.

Todavia, mesmo diante dessas condições, os dados do Instituto Mineiro de Gestão de Águas (Igam) não mostravam a presença desses metais com linearidade, especialmente nos rios do Carmo e Gualaxo. “Aqueles 40 milhões de metros cúbicos estavam em um ponto e agora estão espalhados ao longo da bacia”, salienta. Além disso, não há mais a típica oscilação dessa concentração de elementos químicos nos períodos de chuva e seca. “No verão, haveria a tendência de diminuir essa concentração. Mas a chuva está levando para o rio os rejeitos das planícies, e os índices estão se mantendo altos o ano inteiro.”

Já o rompimento da barragem de Córrego do Feijão afetou diretamente o rio Paraopeba, que, de acordo com o professor, está sendo “completamente destruído por causa dos rejeitos químicos e físicos”. O abastecimento já foi suspenso desde o dia 31 de janeiro. A bacia do ribeirão Ferro-Carvão também está amplamente afetada, e ainda não se sabe se a contaminação química chegará ao rio São Francisco. “Não é uma coisa que vai se encerrar em alguns dias ou meses”, alerta Felippe. “Se não acontecer um manejo adequado, as primeiras chuvas vão levar de volta para o rio. Até hoje, os rejeitos estão sendo levados de volta para o Rio Doce, por que não foram retirados, não teve uma estabilização deles. É uma contaminação constante que vai durar por anos e anos.”

Rios que não existem mais

“A primeira coisa que temos que entender quando se rompe uma barragem é que, com milhões de metros cúbicos de rejeitos jogados de uma vez só, toda a dinâmica do rio muda, se transforma. Na verdade, aquele rio que existia antes não existe mais.” A morfologia do córrego de Santarém, em Bento Rodrigues, e do ribeirão Ferro-Carvão, em Brumadinho, foram totalmente modificadas após o desastre.

No caso do Doce e seus afluentes atingidos, as pesquisas mostram que seus leitos ficaram mais rasos. Com a onda de lama, houve um assoreamento muito forte e o fundo ainda está coberto de rejeitos, principalmente no trecho entre Bento Rodrigues e a Usina Hidrelétrica de Risoleta Neves, entre os municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado.

As ruínas de Bento Rodrigues, três anos após o rompimento de Fundão (Foto: Maria Otávia Rezende)

A menor profundidade do leito faz com que a água se distribua mais horizontalmente, e isso aumenta o risco de enchentes. Em alguns pontos de Barra Longa foram feitos trabalhos de desassoreamento, mas “não sabemos como está isso nas áreas rurais e pequenas comunidades”, comenta Felippe. Outra preocupação relacionada à morfologia diz respeito à quantidade de energia usada pelo rio para transportar os sedimentos. “Quando você coloca novos elementos, isso muda a dinâmica energética, o rio pode perder ou ganhar força, erodir áreas que não eram erodidas ou depositar, assorear outras.”

Com alterações na força do rio e no turbilhonamento das águas, há uma grande chance de impacto na biota, ou seja, de atingir a fauna e a flora que habitam aquele ambiente geológico. “O rio tem ambientes turbulentos e lentos, onde há mais ou menos oxigenação da água. Mudando esse ambiente, muda o desenvolvimento das comunidades biológicas”. Para o pesquisador, ainda não há uma nítida preocupação por parte da Renova ou do poder público com a biodiversidade, a geodiversidade e as próprias características do rio.

Em Gesteira, distrito de Barra Longa, as plantas semeadas pela Renova disfarçam a montanha de rejeitos depositados nas margens do rio Gualaxo do Norte (Foto: Gabriel Duarte)

Mapeando o antes e o depois

O eixo transversal das pesquisas orientadas por Miguel Felippe avalia as consequências para a população a partir dos danos ao meio físico. Uma delas é a de Laís Mendes, que defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-graduação em Geografia da UFJF no início de 2018. Neta de produtores rurais da cidade de Laranjal (MG), viu no rompimento da barragem a possibilidade de pesquisar algo próximo a sua realidade familiar. Laís elaborou um mapa com as alterações das margens, lagos e meandros da região compreendida desde a barragem de Fundão até o ponto de deságue do rio do Carmo no Piranga. “As feições do rio foram severamente destruídas”, aponta.  

Encontrei no campo o que eu já esperava, mas dói. Escutar os relatos dói, porque significa a perda daquele lugar que era tão importante – Laís Mendes

Além de retratar os danos no relevo, Laís entrevistou 13 produtores rurais em Barra Longa, fazendo um diagnóstico das perdas. “Encontrei no campo o que eu já esperava, mas dói. Escutar os relatos dói, porque significa a perda daquele lugar que era tão importante.” A maior parte dos danos está relacionada à produção leiteira, ou seja, pastos, animais e estruturas. “De longe está tudo verde, mas se você olhar de perto têm muitos lugares onde não nasce mais capim. Os produtores contam que se soltarem o gado ali, as vacas acabam com o pasto em dois dias.”

Para o professor, muitas das pesquisas esbarram na falta de dados substanciais anteriores ao rompimento da barragem, principalmente levando em conta a diversidade da bacia hidrográfica. Alternativas metodológicas têm sido testadas na busca por parâmetros, como o estudo de afluentes não impactados pela lama. Questionado sobre essa dificuldade, Felippe resume: não importa se antes era pouco ou muito ruim, hoje as condições (do rio) são lastimáveis”, destaca. “Há a necessidade de criar uma métrica para comparar com o passado? Talvez essa seja uma necessidade muito mais acadêmica do que social”, argumenta. Para ele, as propostas de recuperação devem ser pensadas de forma coerente. “A gente não quer só voltar ao que era antes, queremos o rio bom para a população.”


+ Miguel Fernandes Felippe

Líder do grupo de pesquisas TERRA – Temáticas Especiais Relacionadas ao Relevo e à Água (UFJF-CNPq). Trabalha na interface entre a Geomorfologia, Hidrologia e Hidrogeologia, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão nas áreas de Hidrogeomorfologia, Geomorfologia Fluvial, Geomorfologia Ambiental e Recursos Hídricos. Tem experiência em nascentes de cursos d’água, técnicas de mensuração de campo, análises morfométricas, hidrogeoquímicas e radioisotópicas.

Leia mais Dossiê A3:

Às Margens

Os cerca de 600 moradores do distrito de Bento Rodrigues tiveram cinco minutos para saírem correndo na tarde daquele 5 de novembro. “Nossa sorte foi que o ônibus estava no ponto perto da escola, e foi todo mundo entrando”. Ninguém avisou. Não havia sirene, rota de fuga, treinamento ou carro da empresa para resgate das pessoas. Nas ruínas, hoje, placas novas indicam a cada esquina para qual direção correr. “Deve ser para os bichos, né”, ironiza o morador Sandro Sobreira. As Hilux agora também passam, a todo tempo, monitorando o território vazio.

“Volta Samarco”

Diante da profunda tragédia que colocou Mariana em todas as manchetes de jornais é, no mínimo, inesperado encontrar frases do tipo “Volta Samarco” penduradas nas fachadas de alguns comércios. As mensagens dão uma ideia do poder exercido pela empresa na vida dos moradores – a paralisação das operações do Complexo do Germano não só fechou milhares de postos de trabalho como transformou a vida da cidade