Desde muito cedo na história da civilização, nós construímos o mundo à nossa imagem. As primeiras unidades de medida criadas correspondiam às proporções de importantes personagens nos impérios que nasciam. A compreensão do universo a partir de nossa primeira (e última) morada logo transformou-se em admiração. A cerimônia máxima do culto ao corpo, revelado pelos antigos gregos, continua a testar e expandir os limites humanos até hoje, nas Olimpíadas; o estudo da proporcionalidade e da beleza humana ainda comove os visitantes de museus e inspira artistas atuais. Em todas essas manifestações, a Fisiologia teve papel central, aprofundando os conhecimentos e ampliando as capacidades do corpo humano.
Para discutir essa relação entre Fisiologia e as demais esferas da sociedade, em especial nas artes, esportes e tecnologia, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) recebe, nesta quarta-feira, 26 de abril, o professor Thierry Pozzo (Universidade de Borgonha, França), que irá ministrar a palestra “A Arte e a Ciência do Movimento”. Com tradução simultânea, o evento será realizado às 18h no Anfiteatro das Pró-reitorias e contará com a participação da professora do Departamento de Fisiologia da UFJF, Anaelli Campos.
O professor Pozzo estuda os princípios da organização motora e os mecanismos fisiológicos subjacentes, além de desenvolver um trabalho extenso envolvendo a história e a arte na ciência com base nos trabalhos de outro pesquisador francês, Étienne-Jules Marey (1830-1904). Segundo o Professor, existem várias razões para o foco nos estudos de Marey. “A primeira delas é que Marey desenvolveu técnicas importantes para o estudo do movimento, que serviram como base para entender o comportamento do movimento em geral”, relata.
Pozzo também explica que os trabalhos de Marey tiveram implicações em diversas áreas, desde a científica, com aplicações em robótica e medicina, por exemplo, até áreas artísticas e culturais. “Sem os estudos do Marey, para trabalhar com robótica hoje, seria necessário voltar e estudar cada fase que constrói o movimento”, afirma. “Ele também teve grande influência na forma como os artistas representavam o movimento em suas obras e até no desenvolvimento do cinema”. Ao trabalhar com a cronofotografia – processo de análise do movimento a partir de fotografias sucessivas -, produzindo filmes para estudar as fases do movimento, o trabalho de Marey serviu como base para a invenção do cinema.
Além da facilidade de se associar a diversas áreas do conhecimento, outro fator importante para Pozzo é o momento histórico das suas descobertas: “durante o desenvolvimento industrial, ocorreu uma explosão científica. Várias invenções tecnológicas, como a fotografia, o telefone e o carro, estavam surgindo. E os artistas se viram seduzidos por esse momento, tendo uma grande influência em seus trabalhos.”
Por último, Pozzo explica que uma grande aplicação do trabalho de Marey é apresentar a ciência básica à sociedade, usando os aspectos artísticos desse trabalho. “Isso justifica o investimento em ciência. Os achados científicos nem sempre são entendidos pela população, mas a arte tem esse poder. Arte e ciência são comuns a qualquer cultura, então é uma maneira eficaz de chegar às pessoas”, declara. “É importante que a sociedade faça parte do universo científico”.
Por que estudar o movimento?
“O estudo do movimento tem diversas aplicações”, afirma Pozzo. “Por exemplo, para o ganho de performance no esporte, na reabilitação de pacientes, no cinema. São inúmeras as possibilidades”.
Em sua mais recente pesquisa, o professor busca entender como o cérebro participa, controla e organiza o movimento manual dirigido à um objeto, quando indivíduos são colocados em um contexto de interação social. “Dessa forma, queremos entender quais mecanismos têm implicação no movimento quando você está em uma condição de interação com o outro”, explica.
Em parceria com o Departamento de Fisiologia da UFJF, o pesquisador vai registrar o deslocamento do braço e atividade muscular através da eletromiografia, além da atividade cerebral por meio da eletroencefalografia para observar o que muda quando o movimento é executado em um contexto social.
A pesquisa se faz relevante pois ajuda a entender alterações de interação social, como o autismo. “Queremos acessar esses problemas de interação por meio da investigação do sistema sensório motor. Avaliar a resposta sensório motora, em uma condição de interação, pode nos dar indícios para entender essas alterações, conta.
Pozzo também desenvolveu pesquisas utilizando indivíduos saudáveis que tiveram seu membro imobilizado. A partir da observação da ação do outro, foi feito um protocolo experimental no qual vídeos de movimento manual são apresentados. “A imobilização gera uma atrofia na área de representação do membro no cérebro. Aplicando esse protocolo e avaliando a representação motora no cérebro por meio da Estimulação Magnética Transcraniana, a atrofia é revertida. É o inverso de pessoas que usam um instrumento musical, por exemplo, que cria uma expansão da representação do movimento”, explica. “Nós sugerimos que esse protocolo pode ser eficiente na possível reabilitação de pacientes”. A ideia é expandir o estudo para pacientes com AVC.
Para realizar os estudos, Pozzo acredita que é necessário analisar o corpo como um todo e utilizar técnicas distintas para entender esse conjunto. “Não dá para cortar o corpo em partes para tentar entender o todo”, diz.
Em outro estudo realizado pelo seu grupo na Universidade da Borgonha, o professor reafirma a importância dessa abordagem. “Especialistas consideravam a dislexia um problema unicamente cognitivo, mas nosso grupo percebeu que os pacientes também apresentam problemas motores associados, como perda de equilíbrio e alteração de postura. Por isso, eu acredito que para entender e descrever mecanismos neurofisiológicos, é importante considerar o todo”, completa.
Parceria
A palestra do professor à UFJF consolida uma parceria com a Universidade de Borgonha. Pozzo diz apreciar colaborações com pesquisadores distantes geograficamente e culturalmente: “é uma forma de encontrar opiniões e interpretações novas, olhares a partir de pontos de vista diferentes. É daí que nascem novas ideias”.
Para Hugo Rocha, responsável pelo Setor de Acordos da Diretoria de Relações Internacionais (DRI/UFJF), a visita do professor “é uma oportunidade de apresentar novas abordagens para os alunos e estreitar as relações entre as duas universidades.”
Além da palestra, o Professor desenvolveu um curso “A Arte e a Ciência do Movimento”, oferecido à distância. Este curso está sendo traduzido para o português pelo Laboratório de Neurofisiologia Cognitiva/LabNeuro, em parceria com a DRI. De acordo com a professora Anaelli Campos, o material será usado para oferecer uma maneira diferente de entender o sistema nervoso, mais especificamente a cognição motora por meio do trabalho do Marey. “Sua obra é imensa e tem diversas aplicações no mundo atual”, completa.