Dando sequência à série especial “Mulheres na UFJF” – em comemoração ao Dia Internacional da Mulher -, a reportagem de hoje aborda a trajetória de Zélia Ludwig, pesquisadora que enfrentou obstáculos e hoje é reconhecida internacionalmente.
“Dizem que mineiro, quando muda para São Paulo, ou vai para vencer ou vai para pegar trem. Eu fui fazer as duas coisas.” conta Zélia, lembrando de seu período de graduação, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, quando percorria (de trem, ônibus e metrô) a distância entre sua casa em Jundiaí e a faculdade. Dessa época para cá, ela avançou por distâncias ainda maiores: cerca de uma década mais tarde, Zélia entraria para o seleto grupo de cientistas a trabalhar com a última fronteira, ao contribuir com a Nasa na construção de uma plataforma lunar.
O projeto de criação da estrutura de vidro ultra-resistente coordenado pela agência espacial foi apenas um dos trabalhos internacionais da professora, que teve a oportunidade de passar como pesquisadora convidada pelo Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), na Itália; pelo Instituto de Materiais da Universidade do Texas, nos EUA; e, realizando um sonho antigo, pelo Max Planck, na Alemanha.
“A primeira vez que saí do Brasil, ainda no Pós-doutorado, foi com uma bolsa financiada pela Marinha americana. Chegando lá, em Maryland, fiquei surpresa com a facilidade com que entrei no país. Eu estava com uma carta do comandante da Marinha.” conta, rindo “Pensei comigo mesma: isso de convite é muito bom.”
Consciente de seu papel como desbravadora, Zélia vê as conquistas de sua carreira como uma espécie de missão. Professora de Física na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), desde (2007), ela teve de romper barreiras além das geográficas e atmosféricas. Mulher negra, Zélia representa uma pequena minoria no campo das Ciências Exatas, tradicionalmente dominado por homens, e, como quase todos os âmbitos acadêmicos, majoritariamente branco.
“Nós precisamos desconstruir esse estereótipo do ‘sexo frágil’. As meninas da Física podem resolver uma equação no braço, assim como podem fazer um serviço de pedreiro, se precisar”
“Algumas vezes, no começo da formação, me perguntei o porquê do caminho das pedras ser tão mais cheio de pedras para mim, do que para a média dos meus colegas. E, a partir de alguns entremeios, me toquei. Me olhando no espelho, via uma mulher negra do interior, ocupando um espaço onde isso não era comum.”
Longe de se intimidar, a professora conduz sua trajetória acadêmica guiada pela filosofia de “trabalhar em dobro, se o dobro lhe é cobrado”. Em sua sala no Departamento de Física, Zélia organiza sua atribulada agenda em uma das paredes, onde ficam expostos os editais de projetos aos quais tem que atender. Nesse mesmo espaço, guarda alguns brinquedos antigos de sua filha, agora com 12 anos, e recebe seu alunos.
Especialista em síntese de novos materiais e física nuclear, a professora pratica uma espécie de física quântica em seu cotidiano: mãe, casada com um colega de departamento, pesquisadora e coordenadora do curso na UFJF, frequentemente ela tem que existir em vários pontos no espaço, ao mesmo tempo.
“A maternidade muda a dinâmica do trabalho, claro. Se antes da minha filha nascer eu podia fazer uma especialização fora do país sem pensar duas vezes, agora são necessárias mil considerações antes de decidir. O rítmo da pesquisa também reduz, especialmente nos primeiros meses. Hoje em dia, com ela já maior, as coisas ficam um pouco mais simples. Ela me acompanha no laboratório e nas aulas, e já participou de algumas reuniões.” conta. “Mas algumas coisas ficam de lado. Em casa, por exemplo, resolvendo a submissão para algum edital para ontem, com ela do lado querendo brincar. Acabo tendo que renunciar a algumas coisas com ela, mas ela entende. É também uma questão de acompanhar os momentos da vida, e realizar mais no pouco tempo que se tem.”
Pensando nas dificuldades encontradas pelas mulheres ao longo da carreira científica, Zélia decidiu criar a Mulher, Ciência e Sociedade, uma página no Facebook que reúne pesquisadoras e alunas para discutir seu papel na comunidade acadêmica, os obstáculos enfrentados e as formas de superá-los.
“O meio em que somos criadas influencia muito nisso. Por que, além de dar um fogãozinho de brinquedo para as meninas, não damos também um lego, para estimular a criatividade, a capacidade de resolver problemas? Mais tarde, quando o carro parar de funcionar, por exemplo, não vai ser um bicho de sete cabeças. A menina vai parar e olhar, procurar o porquê de não estar funcionando.” sugere a professora.
Para ela, o incentivo começou cedo e em casa. Filha de um torneiro mecânico (um “engenheiro de engenhoca”, como ela mesma define), Zélia e sua irmã foram estimuladas, ainda na infância, a buscar respostas para o funcionamento do mundo nas ciências exatas. Mais tarde, ela encontraria outro exemplo em seus professores, durante sua Pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP). “Lá, encontrei professores realmente apaixonados pela ciência. O entusiasmo deles me motivou a continuar por esse caminho.”
Observando a história de sua própria família, a professora aponta que ocorreu um avanço na democratização e pluralização da comunidade acadêmica. “No tempo da minha avó, mulheres negras não costumavam ter acesso ao ensino e ocupavam posições muito bem delimitadas, trabalhando para outras pessoas como domésticas, por exemplo. No caso da mãe já foi diferente: em função de uma condição econômica melhor, teve mais acesso aos estudos.” Mesmo reconhecendo um avanço, percebe que se torna mais rarefeito à medida em que se observa os níveis mais altos de especialização. “Apesar do aumento no ingresso de mulheres na graduação, existe um afunilamento, durante a Pós-graduação, e nos cargos de chefia dentro dos departamentos.”
Apesar das pedras no caminho, Zélia relembra sua trajetória e pensa no futuro com otimismo: “Quando cheguei em Juiz de Fora, vim com “a cara e com a coragem”. Nessa época, tínhamos uma única politriz no laboratório, que meu pai conseguiu adaptar a partir do motor de um carro. Hoje, estamos equipados com seis fornos, um equipamento de absorção óptica, etc. Com isso, nós vamos crescendo no campo da pesquisa e incentivando alunas e alunos que fazem parte de minorias no mundo acadêmico.”
“Nós precisamos de mais diversidade, mais exemplos de mulheres negras ocupando posições além daquela tradicional da época de minha avó. Vamos desconstruindo esses mitos e mostrando possibilidades para esses alunos e alunas que estão ingressando na Universidade. Ainda faltam programas de incentivo, mas nós vamos ‘balançar esse coreto’ aqui e chamar atenção para ter mais avanços.” conclui, sorrindo.