A terceira mesa-redonda do evento “Todo dia é dia de luta”, organizado pela Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em comemoração ao Dia Internacional da Mulher – 8 de março, debateu, na noite desta quarta-feira, “As Diversas Formas de Violência contra as Mulheres e os 10 anos da lei Maria da Penha: resultados, desafios e perspectivas”.
A atividade, mediada pela professora de Direito Penal e Criminologia na UFJF, Ellen Cristina Carmo Rodrigues, contou com a presença da delegada Especial de Atenção à Mulher de Juiz de Fora, Angela Fellet; da diretora do Centro de Referência Casa da Mulher de Juiz de Fora, Maria Luiza de Moraes; da coordenadora do Projeto de Pesquisa “Jurisdição e Política” e docente da Faculdade de Direito da UFJF, Joana Machado; da representante do Tribunal de Justiça do Estado de Minais Gerais (TJMG), Senira Regina Rocha; da mestre em Direitos Humanos e Inovações pela UFJF, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB – subseção Juiz de Fora e do Coletivo PretAção, Lia Siqueira; e da integrante do Coletivo Duas Cabeças e Grupo VisiTrans, Bruna Leonardo.
Até o ano de 2005, se uma mulher brasileira, vítima de violência sexual, se casasse com o seu agressor ou com outro homem, o crime simplesmente deixava de existir.
Ao iniciar o debate, Ellen Rodrigues fez uma contextualização de como o sistema jurídico, ao longo dos anos, penalizou as mulheres. Até o ano de 2005, por exemplo, se uma mulher brasileira, vítima de violência sexual, se casasse com o seu agressor ou com outro homem, o crime simplesmente deixava de existir. Segundo o que estava previsto na Lei 11.106 do Código Penal, o casamento arranjado era uma maneira de extinguir a pena do agressor. A legislação estava em vigor desde 1940, nos chamados “Crimes contra os Costumes”. Entre as mudanças feitas em 2005, também se destaca a retirada da expressão “mulher honesta” do Código Penal.
Joana Machado afirmou que o patriarcado – sistema social em que homens adultos mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança, além de, no âmbito familiar, manterem a autoridade sobre as mulheres e as crianças – é reforçado pelo sistema jurídico. “Quem são os legisladores e juízes brasileiros? Em sua maioria, são homens, cisgêneros, brancos e heterossexuais.”
A violência contra as mulheres em Juiz de Fora
Ao longo de quatro anos, mais de 9 mil mulheres registraram queixas de agressão, seja física, psicológica, patrimonial, moral ou sexual. Na maioria das vezes, a mesma mulher é vítima de mais de um tipo de agressão.
A diretora da Casa da Mulher de Juiz de Fora, Maria Luiza de Moraes, apresentou os dados acerca dos tipos de agressão registrados nos quase quatro anos de funcionamento do centro de referência na cidade. “Ao todo, 9.034 mulheres foram atendidas nesse período. Os tipos de agressão variam. Foram 3.750 registros de agressão física, 7.300 de agressão psicológica, 1.130 de agressão patrimonial, 4.300 casos de agressão moral, 427 de agressão sexual e 71 casos de estupro. Na maioria das vezes, a mesma mulher é vítima de mais de um tipo de agressão. A UFJF, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Polícia Militar são nossos parceiros. O nosso trabalho é fazer o acolhimento das mulheres vítimas de violência, verificar o boletim de ocorrência e oferecer cursos de capacitação e palestras sobre autoestima feminina. Os índices de violência contra a mulher são elevados na cidade.”
A delegada Angela Fellet lembrou que os crimes domésticos, de modo geral, não têm testemunhas, apenas vítima e agressor. “Desse modo, os operadores do direito têm mais dificuldade para atuar de forma preventiva em relação a esses crimes. O 8 de março, Dia Internacional da Mulher, e eventos como este são importantes para encorajar as mulheres a denunciarem as violências que sofrem. Todas nós mulheres somos ou já fomos vítimas de algum tipo de violência doméstica em algum momento da nossa vida. Por exemplo, o namorado era ciumento, não deixava sair com amigas ou usar determinada roupa. Isso tem que mudar!”
A representante do Tribunal de Justiça do Estado de Minais Gerais (TJMG), Senira Regina Rocha, informou sobre o projeto local desenvolvido pelo TJMG , cujo objetivo é garantir que o agressor tenha advogado constituído durante o processo. “Ter acesso à defesa é um princípio da democracia. Realizamos audiências de mediação e buscamos no nosso trabalho colaborar para que o agressor reflita sobre a condição dele, para que ele se reeduque. Precisamos transformar também o agressor. A nossa educação ainda é extremamente machista”.
“Precisamos transformar também o agressor. A nossa educação ainda é extremamente machista.”
A omissão do Estado
A mestre em Direitos Humanos e Inovações pela UFJF, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB e do Coletivo PretAção, Lia Siqueira, ressaltou que o fenômeno da violência contra as mulheres não se inicia apenas no momento do ataque do agressor à vítima. “A violência de gênero é um fenômeno complexo. A instância mais violenta para a mulher brasileira, especialmente as negras e periféricas, talvez seja o próprio Estado Brasileiro, que é omisso. Por um longo período, a violência doméstica não foi tratada de maneira responsável pelo Estado, tanto é que houve a exigência da mudança da legislação. A Lei Maria da Penha é um avanço, mas está limitada aos casos de violência doméstica familiar, ou seja, exige uma relação entre vítima e agressor anterior à violência. E sabemos que muitas vezes não existe a relação anterior, mas existe a violência de gênero. As temáticas da desigualdade de gênero e da violência contra a mulher deveriam ser tratadas de maneira transdisciplinar, para que fossem pensadas e construídas políticas públicas efetivas. Porém, as políticas públicas no Brasil são de modo geral elaboradas de maneira vertical, ou seja, pouco democrática.”
“A Lei Maria da Penha é um avanço, mas está limitada aos casos de violência doméstica familiar, ou seja, exige uma relação entre vítima e agressor anterior à violência.”
A avaliação é compartilhada pela integrante do Coletivo Duas Cabeças e Grupo VisiTrans, Bruna Leonardo, que expôs ao público as dificuldades vivenciadas especialmente por mulheres transexuais e travestis. “As mulheres trans estão entre as principais vítimas da violência. Na época do colégio, sofri tanta discriminação que deixava de beber água por medo de ter que ir ao banheiro da escola e ser agredida. Este é o primeiro 8 de março no qual sou reconhecida como Bruna Leonardo, do sexo feminino. Precisamos desconstruir o preconceito. Nós, LGBTIs, precisamos ter voz. Lésbicas, mulheres trans e travestis precisam ter acesso aos espaços como a Delegacia da Mulher e Casa da Mulher. Também sofremos violências.”
“Todo dia é dia de luta”
A programação em comemoração ao Dia da Mulher termina hoje, dia 9. Todas as atividades são gratuitas e abertas à comunidade. O evento é uma organização da Diaaf com apoio da Pró-reitoria de Extensão; Diretoria de Imagem Institucional; Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais (NEPCrim); e os coletivos de mulheres Aliança pela Infância; Feminista Classista Ana Montenegro; Coletivo Candaces – Organização de Mulheres Negras e Conhecimento; Duas Cabeças; Flores Raras – Educação, Comunicação e Feminismos; Maria Maria; PretAção; e Visitrans.
Confira a próxima mesa que será realizada nesta quinta-feira, às 19h, no Anfiteatro do Instituto de Ciências Humanas (ICH). Acesse aqui a programação completa do evento “Todo dia é dia de luta”