Eles são talentosos e dedicados à vida acadêmica na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Os estudantes trans – aqueles que sentem e concebem a si mesmos como pertencentes ao gênero oposto ao designado no nascimento – produzem dissertação, monografia, artigos, realizam concertos musicais, dentre inúmeras outras atividades.
São como os demais alunos da instituição, exceto pelo fato de enfrentarem estatísticas alarmantes e preconceitos para chegarem até aqui.
“A situação é tão grave que, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 90% das mulheres trans brasileiras se encontram em situação de rua e a expectativa de vida não chega aos 40 anos”, revela a aluna trans do 3° período do curso de Letras da UFJF, Anna Macacchero, 19 anos.
Em Juiz de Fora, assim como em todo o país, a população trans enfrenta desafios na hora de garantir acesso a direitos básicos. “O Brasil é um dos países que mais matam trans em todo o mundo. Muitas pessoas trans são rejeitadas por suas famílias, sofrendo todo tipo de violência em casa ou sendo expulsas ainda muito jovens. É difícil conseguir um emprego. Dessa forma, acabam não tendo outra alternativa, senão recorrer à prostituição”, acrescenta Anna, que é natural de Juiz de Fora.
O também juiz-forano e aluno trans do 6° período do curso de Pedagogia, Michell Marques, 27 anos, destaca que a maioria dos empregadores desconhece o que é uma pessoa trans e também não sabe o que significa o nome social: aquele pelo qual as pessoas trans preferem ser chamadas, em contraste com o nome oficialmente registrado que não reflete sua identidade de gênero. “Juiz de Fora ainda tem aspectos muito conservadores. Por conta disso, temos de fato dificuldade para conseguir emprego.”
A UFJF foi uma das primeiras universidades do país a garantir o direito ao uso do nome social no âmbito da instituição a estudantes e servidores, por meio da Resolução 06/2015. O diretor de Ações Afirmativas, Julvan Moreira de Oliveira, destaca que a Universidade reconhece a situação de vulnerabilidade das pessoas trans em todo o país.
Ainda segundo Oliveira, é objetivo da Diretoria construir coletivamente uma política de ações afirmativas para a instituição, visando à consolidação e eficiência das medidas já existentes e a criação de novas estratégias de inclusão e respeito à diversidade. “Já tivemos ações afirmativas isoladas, como a autorização do uso do nome social. Pretendemos, agora, por meio da criação de um fórum, desenvolver uma política de fato, na qual estará incluída a população trans.”
Faltam informação e compreensão
Na avaliação do estudante trans do 6° período do bacharelado interdisciplinar em Artes e Design, Eduardo Novaes, 20 anos, nascido em Leopoldina, o desconhecimento da sociedade em geral em relação à causa trans coloca essa população em risco. “Não só em Juiz de Fora, como em qualquer outra cidade, quando você se diz trans, muitas pessoas nem mesmo sabem o que é, e isso eu acho que é ser invisível. Você fica à margem. Por isso, a grande dificuldade de aceitação e compreensão e, por esse mesmo motivo, muitas vidas são postas em risco.”
Até mesmo o acesso à saúde, seja no setor público ou na iniciativa privada, é uma barreira a ser transposta quando se trata da população trans. “Eu, por exemplo, pago plano e não tenho direito ao nome social na carteirinha. Já fui rejeitado por vários endocrinologistas. Eles me disseram que não poderiam acompanhar meu tratamento hormonal, porque não eram especialistas, sendo que essa especialidade não existe. No Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo tendo o nome social na carteira, ele quase nunca é respeitado. Isso quer dizer que em toda consulta me sinto humilhado”, desabafa Marques.
A avaliação é compartilhada pela primeira mulher trans a concluir um curso de mestrado na UFJF, Brune Coelho Brandão. Ela é psicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade. “Percebe-se uma lacuna de serviços voltados especificamente para as pessoas trans, como acompanhamento hormonal. Não há profissionais preparados para lidar com essa demanda na cidade. Além disso, não só na saúde, mas também em outros campos como a educação, há o desrespeito quanto ao uso do nome social nos espaços pelos quais as pessoas trans circulam.”
Um dos motivos, segundo ela, é não haver políticas municipais que resguardem os direitos das pessoas trans. “As escolas de modo geral não aceitam as pessoas trans em suas especificidades: uso do nome social, do banheiro conforme sua identidade de gênero. Isso ocasiona uma evasão que se retroalimenta na outra ponta, no mercado de trabalho. As pessoas trans muitas vezes também não têm seus direitos respeitados no campo profissional, ser trans já coloca o candidato em desvantagem em processos seletivos de emprego. Nesse sentido, pensar em políticas de acesso à educação e empregabilidade trans pode ser importante para compensar essa desigualdade social ainda marcada na nossa sociedade.”
Apoio familiar e educação pública de qualidade
Brune é um exemplo do quão positivo pode ser o resultado da combinação de apoio familiar e educação pública de qualidade. A psicóloga defendeu a dissertação “A produção de corpos trans e suas interseções com os processos saúde-doença: efeitos (in) desejáveis e autonomia dos corpos”, em novembro do ano passado, sob orientação da professora Juliana Perucchi.
“Minha família foi fundamental para eu chegar até aqui. Não só os meus pais, mas também tios, tias, avós, primos e primas. Infelizmente, sou exceção, o que denota que as coisas poderiam ser diferentes. Ter um espaço de acolhida, respeito e apoio dentro de casa deveria ser o essencial. Mas para as pessoas trans, ainda hoje, se configura como um privilégio, que minimiza muito a transfobia, ódio e preconceito de pessoas ou grupos contra a população trans, à nossa volta”.
A estudante trans do Bacharelado em Música, modalidade Canto, da UFJF, Júlia de Oliveira, 40 anos, acrescenta que o apoio dentro do ambiente universitário também foi fundamental, para o seu bom desempenho. Ela tem colação de grau marcada para o dia 17 de fevereiro. “Será a realização de um sonho acalentado por muitos anos! Comigo foi mais tranquilo, pois no meu setor, a Música, a maioria dos meus colegas me conhecia. Muitos foram meus alunos, no Conservatório de Música de Juiz de Fora, e já me respeitavam, mas no contexto geral, existem muitos impasses para as pessoas trans.”
Júlia enfatiza que a dificuldade para a mudança do registro civil no país é o maior de todos os problemas da população trans. A opinião é compartilhada por todos os demais estudantes entrevistados. “Há mais de uma década iniciei processo para retificação do nome e do gênero em meus documentos e, até hoje, não consegui. Isso causa diversos transtornos, quando preciso usar meu Registro Geral (RG), Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), Título Eleitoral. Em todos os meus documentos oficiais constam nome e gênero com os quais não me identifico”.
Em países como a Argentina, a alteração do nome é realizada diretamente nos cartórios. No Brasil não existe uma norma específica para tratar o assunto, o que leva cada tribunal a julgar a questão de maneira diferente. A ausência de uma norma única amplia as possibilidades de preconceito, constrangimento e exclusão social, uma vez que a população trans se sente refém de diferentes interpretações.
Ações Afirmativas na UFJF
O diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, explica que o primeiro evento do fórum para construção de uma política de ações afirmativas na instituição deve ocorrer ainda no início do primeiro semestre letivo deste ano, em março ou abril. O encontro havia sido marcado para o segundo semestre de 2016, mas teve de ser adiado em virtude das greves de docentes e técnicos. “Este fórum será composto por grupos de trabalho com temáticas variadas. Um deles tratará especificamente das questões relacionadas à população LGBTTI. Tudo será discutido e debatido democraticamente”.
Outras informações: (32) 2102-6919 (Diretoria de Ações Afirmativas-UFJF)