“Terra que brilha, sorrisos que embalam! Awe minha Angola! Awe ÁfricAmada!”: estas foram as primeiras palavras ouvidas pela estudante de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Kelly Farias, entoadas pelas crianças da Escola Primária 16 de Junho, em Luanda, capital do país africano Angola. Também foi esse o contato que deu início à experiência que ajudaria Kelly a se educar como intercambista, estagiária e cidadã. A língua era a mesma que nós, brasileiros, falamos — mas a cultura acabaria se mostrando muito diferente.
As primeiras diferenças começaram a surgir já pelo modo como as crianças se relacionavam com ela. À princípio, havia a curiosidade natural ao conhecer a professora que vinha de tão longe. Os alunos animadamente perguntavam se ela falava “brasileiro” e como eram as crianças para as quais ela dava aula aqui no Brasil. Kelly foi aprendendo que havia uma relação de profundo respeito das crianças para com os professores e, aos poucos, conseguiu construir uma convivência mais próxima, que mesclava hábitos dos dois países.
Causou-me um certo estranhamento ver as crianças colocando-se de pé ao entrar ao me verem entrar em sala de aula. Ao questionar às professoras sobre este hábito, elas disseram que “é assim mesmo, é sinal de respeito a quem lhe é superior, até na universidade vais perceber essa prática, mana”.
Crianças também ensinam
Em sua experiência, a estudante aprendeu tanto quanto ensinou, ressaltando que a vontade de estudar das crianças da Escola Primária 16 de Junho não transparecia que a educação do país passava por um processo de reestruturação devido às consequências deixadas pela guerra civil e às altas taxas de analfabetismo. O próprio nome da escola é uma homenagem, segundo o diretor de Ações Afirmativas, Julvan Moreira, “às centenas de crianças assassinadas e feridas no dia 16 de Junho de 1976, em Joanesburgo, Soweto, em manifestação por uma educação em suas culturas e contra o apartheid”. Moreira classificou a experiência de Kelly em Angola como “importantíssima contribuição para a História e cultura africana em nossa educação”.
“Olhares de alegria e também de reprovação”
O contato com a cultura africana começou muito antes, na época em que Kelly iniciou sua graduação em uma instituição privada e se tornou amiga de africanos que vieram ao Brasil para estudar. “Pensava como seria interessante poder vivenciar outros costumes e conhecer a cultura africana, tal como eles estavam conhecendo a cultura brasileira. Entretanto, esta era, para mim, uma possibilidade remota”, conta. Ao ingressar na UFJF, surgiu a oportunidade que ela queria.
A estudante de pedagogia já estava decidida a tentar o Programa de Intercâmbio Internacional de Graduação (Piigrad), vinculado à Diretoria de Relações Internacionais (DRI) da Universidade. Foi quando descobriu que, pela primeira vez, entraria em vigor uma parceria com a Universidade Agostinho Neto (UAN), em Angola.
“Quando decidi me inscrever para o intercâmbio, percebi olhares de alegria e também de reprovação”, relembra. “Pude contar com o suporte de amigos que compreenderam minha busca. Recebi apoio incondicional do professor Julvan Moreira, que não mediu esforços para me auxiliar no que fosse necessário. Entretanto, não raras vezes, familiares e colegas de faculdade perguntavam o que eu iria fazer ‘naquele lugar’, ou questionavam o fato de não ter escolhido países como Portugal ou Estados Unidos.”
Mas, para Kelly, isso nada mais foi que uma forma de estímulo que a impulsionou a continuar. “Respostas a essas e outras perguntas foram se revelando no brilho do olhar de cada um que me ensinou a vivenciar um pouco da cultura angolana, e no orgulho que sinto por ter sido uma das primeiras estudantes da UFJF que o Intercâmbio Institucional levou até Angola, país muitas vezes desacreditado por outros discentes.”
Por quê a África?
Para Kelly, afinal, como definir a motivação por escolher um país africano? Ela afirma que muitos questionamentos seguem vivos nela e que, durante seus seis meses de intercâmbio, se permitiu conhecer muito mais sobre a cultura africana e ir além do que aprendeu em seus anos de escola. Não se tratava apenas de um continente marcado como “exótico”, “assolado pela fome”, cheio de “guerras entre tribos” e “escravidão”, como é retratado, caricaturalmente, para muitos.
“As histórias de suas rainhas e reis, configurando existência de uma estrutura social organizada, o know-how das civilizações africanas acerca da exploração do ferro, a agropecuária desenvolvida: todo o conhecimento acerca desses tópicos desmistificaram a imagem tida por mim de uma ‘África Selvagem’. Na semana em que comemoramos a Consciência Negra, estamos somando esforços não apenas na luta contra o racismo, mas ampliando nosso conhecimento acerca da riqueza cultural, linguística, étnica, intelectual, artística, relativas à História africana e aos seus processos históricos que nos possibilitam entender que há muito de África em nós”, pondera. “Comemorar a Consciência Negra é deixar falar a ancestralidade africana, e, sobretudo nos levar à conscientização e reflexão sobre a importância do povo africano na construção da sociedade brasileira.”