
Nutricionista, escritor e doutorando em Saúde Coletiva na UFJF, Alan Roger é autor de jogos HQs e livros que relacionam alimentação, saúde e cultura (Foto: Arquivo pessoal)
“Descascar mais e desembalar menos” é o que os nutricionistas dizem. Tarefa difícil para os adultos que têm consciência da importância de uma alimentação saudável, e mais difícil ainda para as crianças e adolescentes que querem ser vencidos por doces e ultraprocessados ao longo do dia. É pensando nesse público que o pesquisador Alan Roger criou “Desembalados”, jogo que facilita o entendimento de rótulos nutricionais e contribui para escolhas alimentares mais conscientes e saudáveis.
Roger é nutricionista, escritor e doutorando em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Escolheu pesquisar saúde e cultura pelas mudanças no perfil alimentar populacional, marcadas pelo aumento do consumo de ultraprocessados e pela redução da ingestão de alimentos in natura. Além disso, por seu particular interesse na área da Educação – Roger também é graduando em Pedagogia na UFJF –, seguiu o que reconhece a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sobre a importância de abordar temas de alimentação e nutrição com estudantes a partir do quinto ano do Ensino Fundamental.
“Desembalados” possui 72 cartas e um manual de regras composto por 21 páginas em formato de história em quadrinhos. O produto passou por validação de dez especialistas na área e três turmas de adolescentes de 10 a 13 anos de idade, matriculados nos quinto e sexto anos de duas escolas da rede pública e uma da rede particular de Juiz de Fora. Com linguagem lúdica e visual, a tecnologia pretende apoiar professores e profissionais da saúde que trabalham por uma Educação Alimentar e Nutricional (EAN) mais acessível, horizontal e dialógica.
A revista em quadrinhos (HQ) que acompanha o material traz conceitos sobre rotulagem, alimentação e as próprias regras do jogo. Ela contempla tanto os princípios da EAN quanto os da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas. Na pesquisa, isso se reflete na presença de protagonistas negros, contrariando a pouca representatividade ancestral dos materiais didáticos do nosso país – de sua população majoritária.
Resultado de anos de pesquisa e imersão no assunto, em maio deste ano, Roger também lançou o livro “Raiou, Aurora!’, que traz, na mesma estética de ilustração e cores vibrantes, uma história infantojuvenil com temas ligados à alimentação e à cultura negra. A obra conta com ilustrações de Gabriella Frazão, aluna do Bacharelado em Artes e Design da UFJF, e revisão técnica da professora Eliane Rodrigues de Faria, do Departamento de Nutrição. Junto a Eliane, toda a pesquisa de Roger é coorientada pela professora Ana Paula Cândido, também do Departamento de Nutrição da UFJF.
ID Pergunta: O que é o jogo “Desembalados”?
Alan Roger: O Desembalados é um jogo de cartas que apresenta 60 alimentos comumente consumidos por adolescentes. Cada carta-alimento possui seis atributos utilizados na mecânica do jogo: densidade nutricional, qualidade da receita, aditivos alimentares, açúcar e/ou adoçante de adição, gordura de adição e sódio de adição.
Além dos atributos, a parte frontal das cartas traz uma ilustração do alimento acompanhada de um slogan que remete à marca, às características nutricionais e/ou a elementos históricos. Como exemplo, cito a carta dos flocos de milho com açúcar, chamada Cereal Killer, cujo slogan é: “Minha especialidade é matar a sua fome de açúcar”.
No verso das cartas, estão os rótulos nutricionais, que apresentam informações como tabela nutricional, selos de advertência (semelhantes aos utilizados nos alimentos comercializados no Brasil, como “alto em sódio”, “alto em açúcares” e “alto em gorduras”) e também a classificação do alimento segundo seu grau de processamento (minimamente processado, ingrediente culinário, processado ou ultraprocessado).
É como uma batalha de cartas?
Sim, o jogo funciona como uma batalha de cartas. Os jogadores escolhem um atributo das cartas-alimento para o embate, quem tiver o maior valor naquele atributo vence a rodada e fica com as
cartas usadas. Além disso, o jogo conta com cartas-cupom, que funcionam como cartas de efeito especial. Elas podem alterar completamente o rumo da rodada ou até da partida como um todo. Pense nelas como as cartas +4 do jogo Uno: divertidas, imprevisíveis e, às vezes, causadoras de pequenas discórdias em partidas amistosas.
Um exemplo é a carta “Falsa regra dos 3 Segundos”, que reduz os valores dos atributos das cartas dos oponentes naquela rodada. Para vencer, o jogador precisa acumular o maior número de cartas-alimento. Em caso de empate, alguns critérios são usados para desempatar, como a quantidade de cartas com o selo “In natura ou minimamente processado” e a posse da carta com o maior valor no atributo “Densidade nutricional”.
E como a leitura de rótulos alimentícios pode influenciar no desenvolvimento de consciência e prática de uma alimentação mais saudável?
A leitura dos rótulos pode ser uma ferramenta importante para o desenvolvimento da autonomia alimentar, que é um dos princípios do Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB). O jogo Desembalados parte dessa lógica: ele não foi criado para espalhar medo, mas sim para oferecer instrumentos que ajudem as pessoas, especialmente os adolescentes, a fazerem escolhas mais conscientes, críticas e contextualizadas.
No jogo, os rótulos são apresentados de forma didática, com cores, selos e linguagem acessível, para que o jogador compreenda o que há por trás dos alimentos ultraprocessados. Entretanto, é sempre importante lembrar que a alimentação não se resume aos nutrientes. Comer é também cultura, afeto e prazer.
Por falar em cultura e afeto, quem é Aurora no recém-lançado “Raiou, Aurora!”? E quais aspectos da cultura negra podem ser vistos na história?
Aurora é a protagonista do livro Raiou, Aurora!. Ela é uma menina negra que brilha com a mega-absorção, uma habilidade que lhe concede superpoderes ao consumir alimentos. Quando come cenoura, que faz bem pra visão, adquire uma série de poderes visuais, como visão de longo alcance, periférica e até raio-x. Seus poderes vêm de seu pai, o Major Absorção, super-herói protagonista da HQ que acompanha o jogo Desembalados.
Aurora e seu pai são descendentes da etnia Akan, originária de Gana e da Costa do Marfim, um povo marcado pelos adinkras (símbolos africanos repletos de significados sobre sabedoria, resistência, cuidado e coletividade). Essa ancestralidade é parte essencial da narrativa. Ela mostra que o conhecimento e a força da personagem não surgem do nada, mas estão enraizados em uma herança cultural potente.
Apesar de carregar uma linhagem real e dons extraordinários, Aurora é retratada como uma menina comum, com inseguranças, frustrações, desejos e sonhos. Seu nome já é um símbolo: “Aurora” costuma ser associado à branquitude nas narrativas. Aqui, é uma menina negra que carrega a luz. Não apenas a luz do amanhecer, mas a luz do saber, da ação e da transformação.
Os elementos da cultura negra estão presentes em diversos detalhes da história. Desde os adinkras até as vestimentas tradicionais, passando por quilombos e por referências às religiões de matriz africana. Também há elementos atuais, como a touca de cetim, os penteados e a homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus, que dá nome à escola onde Aurora estuda.

Pesquisador lançou o livro “Raiou, Aurora!” no Congresso Nacional de Alimentos e Nutrição (Foto: Arquivo Pessoal)
Como foi participar e lançar essa obra no Congresso Nacional de Alimentos e Nutrição (Conan)?
Foi uma experiência muito marcante, porque enxergo esses momentos como uma espécie de consolidação da minha trajetória como nutricionista, educador e pesquisador. No meu trabalho de conclusão de curso, publiquei um livro de poesias chamado “Salada Poética”, com foco na EAN.
Aquele trabalho foi uma semente. Durante anos trabalhei com ele em escolas do município, e hoje percebo que o que desenvolvi no doutorado foi, de certa forma, o florescer daquela mesma ideia.
Lançar “Raiou, Aurora!” naquele espaço foi mais do que apresentar um material educativo. Foi afirmar que outras narrativas, mais afetivas, sensíveis e representativas também têm lugar na ciência. Foi levar uma menina negra para o centro da roda e mostrar que ela pode ser espelho, guia e inspiração.
Os Griots são guardiões da palavra, responsáveis por transmitir memórias, costumes e saberes de geração para geração. Os materiais que advêm da sua pesquisa podem ser considerados objetos de resgate de saberes ancestrais, como fazem os Griots?
A história de Aurora é guiada pelo lema “Coma os seus superpoderes”, que convida as crianças a valorizarem os alimentos in natura e a se reconhecerem como protagonistas das próprias escolhas. Essa valorização do alimento natural também é uma forma de resgate.
Ao apresentar frutas, legumes e verduras como fontes de poder, o livro se opõe ao discurso da indústria alimentícia, que muitas vezes associa produtos ultraprocessados a heróis da cultura pop. Aurora, portanto, não só representa uma nova forma de heroísmo, mas também convoca os leitores a refletirem sobre seus hábitos, seus poderes e suas histórias.
O griot se revela não só nos livros e jogos que produzo, mas também nas trocas que construo com educadores, estudantes e comunidades. Sou griot quando conto histórias em escolas, quando atuo junto aos projetos políticos pedagógicos, quando desenvolvo ações de EAN ou quando publico vídeos nas redes sociais da “Raiou, Griot”. Cada um desses momentos carrega a intenção de preservar, compartilhar e construir saberes coletivos.
A editora “Raiou, Griot” já tem um novo trabalho a caminho? Quais são os próximos passos da sua pesquisa?
Sim, há alguns projetos em andamento. O primeiro será o lançamento do jogo “Desembalados”, muito provavelmente em novembro, mês da Consciência Negra.
Em seguida, planejo lançar o jogo
de tabuleiro “Nutri Dama”, que aborda os alimentos regionais brasileiros de forma lúdica, valorizando a diversidade cultural e alimentar do país.
Posteriormente, será lançado o livro “Merendeira Mágica”, que conta a história de uma criança que tem uma gênia em sua merendeira que prepara refeições saudáveis para ela.
À medida que esses materiais forem lançados, vamos nos articular com educadores para desenvolver guias pedagógicos, sempre alinhados à BNCC e com caráter interdisciplinar, para facilitar o uso dos educadores em sala de aula e em outros contextos educativos.
Saiba mais
Alan Roger é nutricionista, educador, escritor e pesquisador. Doutorando em Saúde Coletiva e graduando em Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é especialista em Educação Alimentar e Nutricional (EAN) e em Nutrição Materno-Infantil. Atua como responsável técnico pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) no município de Tocantins (MG) e é autor dos livros “Salada Poética” e “Raiou, Aurora!” e do jogo “Desembalados”.

