Termos como masculinismo, Incel, Red Pill e MGTOW, entre outros, ganharam o debate público acompanhados por histórias reais e ficcionais realmente assustadoras. Todo esse repertório se refere à manifestação de ódio ao feminino, que resulta em uma onda de violência – verbal e física – por parte de homens de diversas idades, muitas vezes disfarçada de proteção à família, aos bons costumes e à própria sobrevivência. Esses grupos se reúnem em comunidades que pregam a submissão das mulheres como um caminho para que os homens resgatem a masculinidade.
Não é nenhuma novidade o fato de vivermos em uma sociedade sexista. Ao contrário, fomos acostumados a naturalizar manifestações preconceituosas de desvalorização das mulheres, pautadas na submissão feminina e dominação masculina. Porém, percebemos que cada vez mais, em resposta às conquistas da luta de grupos feministas apoiados por políticas públicas, manifestações de ódio, preconceito e misoginia têm sido recebidas com profundo constrangimento.

Monique Bernardes é doutoranda da UFJF e integrante do Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social. (Foto: Divulgação)
O fenômeno percebido como novo é o movimento chamado de masculinismo. Trata-se de uma radicalização da “masculinidade tóxica”, no qual seus adeptos enxergam o feminino como objeto inominável, com características abominantes, capaz apenas de promover prazer, sem jamais pensar se o outro corpo sente o mesmo prazer. Tal radicalização foi nomeada pela jornalista e feminista Susan Faludipor de backlash, ou seja, uma “reação contrária”, ou uma guerra não declarada contra as mulheres, uma resposta aos avanços.
O pesquisador Raphael Bispo, do departamento de Ciências Sociais da UFJF, destaca que hoje é praticamente impossível qualquer sujeito numa arena pública confessar-se de forma muito explícita ser um homofóbico, misógino, ou falar sobre questões ligadas a tais preconceitos sem ser constrangida. “Podemos dizer que conseguimos avançar em algumas pautas. Por mais que estejamos muito longe de um mundo ideal, muitas coisas foram modificadas e isso gerou contra-respostas graves por parte de segmentos tradicionalmente hegemônicos, que tiveram suas posições de poder abaladas”, enfatiza.
Para Monique Bernardes, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF, mesmo com os avanços dos movimentos feministas, o sexismo não diminui, “apesar de muitas vezes ter ficado mais sutil, ainda se mantém restringindo o papel da mulher à subserviência e à docilidade. Ainda vivemos sob fortes pressões de marcadores sociais e qualquer coisa que ameace a hegemonia masculina acaba contribuindo para o surgimento de variadas formas de repressão e controle, como tais movimentos extremistas”, ressalta.
A pesquisadora lembra que vivemos em uma organização sociocultural que estabelece padrões, papéis e expectativas de gênero (estereótipos) tratados equivocadamente como naturais. São estereótipos, pautados em uma heteronormatividade cisgênero, frutos de um sistema patriarcal de dominação masculina, que diferencia homens e mulheres em termos de status e poder, colocando as mulheres como inferiores e submissas em relação aos homens. “As mulheres são ‘amputadas’, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas, que revelam força e coragem”, completa. Dentro dessa lógica, que reforça as desigualdades de gênero e pune comportamentos que extrapolem tais normativas, a violência, em suas mais variadas forma de manifestação, representa um instrumento de manutenção e controle de tal estrutura.

Rafael Bispo é pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF. (Foto: Arquivo)
Um dos destaques do estudo de Monique é a teoria do Sexismo Ambivalente (SA). De acordo com tal teoria, o sexismo se manifesta de forma ambivalente em duas dimensões, a hostil e a benevolente. Na primeira, existe uma antipatia em relação às mulheres, considerando-as como inferiores e incapazes perante os homens e, no segundo caso, o sexismo é mais sutil, com base na dissimulação do real, com caráter preconceituoso, colocando a figura feminina como complementar ao homem, sugerindo, em princípio, atitudes positivas de proteção, idealização e afeto, o que oferece uma justificativa conveniente para restringi-las a funções domésticas e reforça sua posição subordinada em relação aos homens. Tais manifestações não atravessam somente o universo dos homens, uma vez que se originam da estrutura social podem ser endossados igualmente por mulheres ou quaisquer indivíduos, sobretudo aqueles mais conservadores, que corroboram com a afirmação de que o mundo está em desordem, logo é preciso retornar a um mundo ideal como era no passado.
Outro ponto abordado por Bispo, que também é coordenador do Grupo de Pesquisa em Família, Emoções, Gênero e Sexualidade, é que, quando desancoramos o gênero do corpo, entendemos que, numa sociedade machista, há uma ojeriza ao feminino e tudo aquilo que o simboliza ou que remete a ele. Lembrando que a ideia que temos do feminino é sempre uma constituição, por exemplo, considerar uma saia algo feminino é completamente arbitrário. Segundo o pesquisador, construímos culturalmente símbolos que remetem ao feminino, uma saia pode ser vista dentro de uma sociedade como uma vestimenta inferior a um terno. “Quando você pergunta se atitudes misóginas podem ser direcionadas à comunidade LGBTQIA+ a resposta é sim, porque essa comunidade é composta de diversos femininos. Podemos pensar em questões desde a transexualidade até o âmbito dos homens gays. Aqueles vistos como mais afeminados e disruptivos são menos valiosos no mercado erótico e são mais julgados”, completa.
Entender que numa sociedade machista o ódio ao feminino se espraia por diversas experiências e performances de gênero é basilar. “Determinados elementos considerados femininos vão ser sempre desvalorizados. Ser feminino é poluidor, menor, e se aproximar dele é visto como negativo”, comenta o Bispo. A construção da masculinidade atua regularmente na execução e atuação de uma virilidade permanente, que é monitorada. Ou seja, os homens são vigiados de forma coletiva e por si próprios, devendo demonstrar a sua virilidade, muitas vezes, por meio da rejeição de comportamentos considerados femininos ou afeminados.
Outra questão delicada é a convivência das crianças nas escolas. “Naturalmente trata-se de uma experiência muito conflituosa, pois convivem em um mesmo espaço trajetórias das mais diversas possíveis, pessoas extremamente diferentes entre si. As diferenças realçadas tendem a sofrer pressões por reajustes, por normatizações. “Quando uma criança é chamada de “viadinho”, os colegas estão querendo dizer para ele deixar de ser mulher. Reconhece-se assim a prestigiosa posição do homem e afasta por definitivo a ameaça de se tornar mulher ao ser um homem homossexual”, reflete Bispo.
Sobre o impacto das redes sociais na violência de gênero, para Bispo, ao contrário do que muitos pensam, a rede social é algo real, ela é a rua. Quando os pais alertam sobre o perigo de não falar com estranhos, por exemplo, devem estender o alerta para o ambiente virtual. “Precisamos investir em educação digital, os pais devem saber acompanhar, de forma saudável, a presença dos seus filhos nas redes. Saber colocar limites, quais são as idades e formas de interação seguras. Não é para ter uma visão apocalíptica sobre as redes, é preciso saber conviver com elas.”
Outro ponto preocupante é como as vítimas de bullying podem usar o ambiente virtual como uma espécie de refúgio. O Bullying afeta subjetivamente as crianças. Muitas vezes, quando não encontram espaços de conversa e troca, seja na família, na escola ou com os próprios amigos, buscam isso na internet. “Nesse ambiente, um estranho pode trazer o conforto necessário. Esse conforto muitas vezes vem por meio de uma ideologia misógina, masculinista, que culpa as mulheres por tudo o que estão vivendo”, destaca Bispo.
O pesquisador fala sobre a importância de darmos mais valor às primeiras experiências amorosas. Segundo ele, olhamos para as relações juvenis como coisas bobas, risíveis. “Aí está o risco, desconsiderar a importância daquele sofrimento que realmente pode ser um momento disruptivo, doloroso para eles. Aí esses jovens muitas vezes encontram respostas e respaldo em grupos extremamente violentos, com culturas de violência, de misoginia, para quem a culpa de tudo aquilo é das mulheres. Assim, o conforto vem desses grupos que ele interage, em espaços que estimulam o ódio, a contra resposta”. Bispo completa enfocando sobre a importância de considerarmos as diferentes perspectivas para compreender as dinâmicas das masculinidades dentro do mundo que qualquer feminilidade num contexto de masculinidade é poluidora”.
Dentro dessa perspectiva, o pesquisador do departamento de Direito da UFJF/GV, Murilo Procópio, aponta que para reconhecer riscos atinentes ao discurso masculinista é preciso, em primeiro lugar, que a parentalidade seja exercida de perto, com a participação ativa dos responsáveis pela criança ou adolescente. “Isso inclui vivenciar efetivamente o cotidiano dos filhos, saber de suas relações e controlar o acesso à internet, principalmente às redes sociais. Mas inclui também a familiarização com uma perspectiva feminista sobre a sociedade. Muitos dos discursos misóginos e de masculinidade tóxica nascem de práticas sociais e aspectos culturais enraizados na educação de meninos, que vão se transformar em problemas sociais futuros.”
Alerta também sobre como neste processo, vivido na família, na escola, na religião, sugere-se uma superioridade do gênero masculino, acompanhada da naturalização do comportamento violento e da ocultação dos sentimentos, entre outros aspectos. “Desse modo, considero importante estabelecer uma relação de confiança, com supervisão, sempre baseada na defesa da equidade entre os gêneros”, defende.
Procópio coordena o projeto de Extensão Masculinidades e políticas públicas. A proposta surgiu da necessidade de abordar os problemas e as relações de gênero especificamente a partir do recorte masculino, constatada após alguns anos desenvolvendo educação de gênero em escolas de Governador Valadares. “Hoje, o projeto atua na educação de jovens de escolas e outras instituições sociais, bem como no sistema socioeducativo e na rede de proteção à violência contra a mulher. Também promove capacitações sobre masculinidades para profissionais da rede pública e privada que atuam neste segmento”, completa o professor.
Outras informações:
Confira a página do Instagram do projeto Masculinidades e políticas públicas
