Fabíola Rubim é mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e fala sobre representatividade na linguagem documental (Foto: Alexandre Dornelas)

A linguagem documental tem o poder de inclusão e exclusão. Se por um lado, é possível a recuperação de informações, por outro, os uso de termos inadequados reforçam estereótipos, opressões e preconceitos, que são fixados e transmitidos através das descrições presentes nos catálogos de bibliotecas e bases de dados de acesso público. 

As bibliotecas são, por natureza, instituições democráticas, por oferecerem acesso gratuito à informação a todas as pessoas, inclusive em consonância com os objetivos do desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas. Dessa forma, desempenham papel fundamental para o acesso e a garantia das liberdades individuais. E, para cumprirem essa missão, é crucial que a linguagem que utilizam não seja um mecanismo de reprodução de preconceitos. Pelo contrário, deve refletir a diversidade das comunidades atendidas.

A pesquisa da bibliotecária documentalista da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Fabíola Rubim Silva busca compreender as discussões sobre a terminologia aplicada por bibliotecas na descrição da informação em catálogos e bases de dados. Neles estão reunidos conteúdos científicos, literários e outros, listados, muitas vezes, por meio de termos não mais usuais – e, o mais grave, que podem carregar significados pejorativos, principalmente, quando relacionados aos grupos historicamente excluídos.

A servidora da UFJF, mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), apresentou o tema da representatividade na linguagem documental no 30º Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), ocorrido em Recife, e constatou que esse é um assunto ainda bastante desconhecido do grande público. Confira a entrevista completa:

Descreva sobre como foi participar do CBBD trazendo um tema tão importante sobre a adequação dos termos nos processos de recuperação da informação.

Participar do CBBD como palestrante e apresentar a pesquisa desenvolvida na minha dissertação foi uma oportunidade única. Foi uma chance de levar o tema da representatividade e existência de vieses nos termos que usamos na recuperação da informação a um público amplo de bibliotecários, no maior evento da área, com o potencial de provocar mudanças efetivas. Meu objetivo foi suscitar reflexões que contribuam para aprimorar os processos de recuperação da informação a partir do olhar da justiça social e equidade.

Como se deu a sua pesquisa sobre o uso inadequado dos termos?

A pesquisa foi conduzida com o objetivo de compreender, a partir da literatura especializada em Biblioteconomia e Ciência da Informação, as discussões existentes sobre a terminologia empregada por bibliotecários na descrição da informação em catálogos de bibliotecas e bases de dados. Essa terminologia é posteriormente utilizada por pesquisadores e usuários para a recuperação de informações. O uso de termos desatualizados, imprecisos ou ofensivos nesse processo pode gerar um grande impacto. 

Ao explorar como a literatura aborda essa questão, o principal objetivo foi fornecer subsídios para a atualização e melhoria da terminologia utilizada, além de identificar recomendações presentes na literatura para mitigar esses problemas. Outro objetivo importante foi mapear iniciativas de criação de terminologias que considerassem princípios de justiça social e equidade.

Você diz que o uso de termos desatualizados, imprecisos ou ofensivos pode gerar um grande impacto. Quais são esses impactos ou prejuízos?

Primeiro, a recuperação da informação é prejudicada, uma vez que os usuários encontram resultados parciais ou insuficientes durante as pesquisas, devido à inadequação dos termos utilizados para descrever os recursos.

Segundo, o uso de termos inadequados pode perpetuar estereótipos, opressões e preconceitos, que são fixados e transmitidos através das descrições presentes nos catálogos e bases de dados, que são sempre de acesso público. 

Cite alguns exemplos de uso inadequado.

Como exemplo, temos o uso do termo primitiva(o), que muitas linguagens documentárias utilizam para se referir ao que é relativo às comunidades indígenas. Linguagens documentárias tradicionais e amplamente usadas como a terminologia de assuntos da Biblioteca Nacional do Brasil tem algumas dezenas de termos como Arte primitiva, Religião primitiva, Sociedades primitivas e outros. Outro exemplo é a expressão Drag queen que é amplamente utilizada, mas o adotado nessa linguagem é “Personificadores femininos”. 

Por isso, ao elaborar terminologias para catalogação de recursos em bibliotecas sem considerar essas questões, ocorre um impacto significativo. Essas terminologias se tornam visíveis nos catálogos, que são de caráter público, permitindo que usuários da biblioteca tenham acesso a termos ofensivos ou ultrapassados. 

Isso pode levar os usuários a assumirem que tais terminologias são legítimas, reforçando estruturas tradicionais de poder que marginalizam determinados grupos. Assim como as pessoas pertencentes a esses grupos podem sentir-se alheias ou rejeitadas pela terminologia usada, o que pode resultar no afastamento dessas comunidades das bibliotecas.

Qual é o atual cenário nacional e internacional no que diz respeito à representatividade em linguagem documental?

No cenário nacional, tanto as discussões teóricas quanto o mapeamento de iniciativas práticas ainda são bastante incipientes. Em relação às reflexões teóricas, dos 137 autores mapeados pela pesquisa que abordam a questão da representatividade em linguagem documental no mundo, apenas nove são brasileiros. Quanto às iniciativas práticas, foi identificada apenas uma: o Tesauro para Estudos de Gênero e sobre Mulheres, criado pela Fundação Carlos Chagas em 1998, que, no entanto, não foi atualizado desde então. Um tesauro faz controle terminológico, de forma a constituir um instrumento de descrição e recuperação de informação em áreas especializadas.

No cenário internacional, as discussões estão mais avançadas, especialmente nos Estados Unidos e no Canadá. Os Estados Unidos são o berço dessas reflexões, iniciadas na década de 1970 por autores como Doris H. Clack e Sanford Berman. Além disso, foram mapeadas iniciativas importantes em países como Canadá, Nova Zelândia e Austrália, com a criação de tesauros e vocabulários que promovem uma representação mais sensível e culturalmente adequada de povos indígenas.

Como a UFJF está posicionada neste sentido? Há estudos ou conversas para que a instituição possa aplicar a readequação do uso dos termos?

Ainda não há nenhuma discussão sobre a criação de uma linguagem documentária própria. Atualmente, utilizamos linguagens documentárias desenvolvidas por outras instituições. Acredito que, a partir do debate e da ampliação dessas discussões, nós, bibliotecários da UFJF, podemos nos somar aos esforços para pressionar por mudanças e contribuir para a mitigação de preconceitos nas linguagens que utilizamos.

Descreva sobre os desafios para garantir que a linguagem documental seja inclusiva e reflita a diversidade cultural e social.

Creio que o maior desafio, e o primeiro, é sensibilizar a comunidade bibliotecária para essas questões, especialmente no Brasil. E conscientizar que é uma necessidade ética não perpetuar termos preconceituosos nas ferramentas que usamos para catalogar, especialmente os tesauros e vocabulários. 

A identificação de termos inadequados e atualização dos tesauros e vocabulários tradicionalmente utilizados também é fundamental. Cito, por exemplo, o LCSH (Library of Congress Subject Headings), nos Estados Unidos, e no contexto brasileiro, a Terminologia de Assuntos da Biblioteca Nacional. 

Esses sistemas são amplamente usados e acabam influenciando um conjunto enorme de bibliotecas, porque a maioria não dispõe de recursos humanos para desenvolver seus próprios tesauros ou vocabulários. Já para bibliotecas que possuem estrutura própria, há um potencial de criar instrumentos mais alinhados aos valores, à diversidade local e às especificidades culturais e sociais.

E como promover essa participação de forma ativa?

Durante a pesquisa, foi possível identificar na literatura científica uma série de outras abordagens e garantias sugeridas para complementar as deficiências do modelo tradicional. Como por exemplo, a garantia de usuário, onde os usuários das bibliotecas são consultados para definir a linguagem usada pela biblioteca para descrever seus recursos de informação. Desse modo, serão incluídos termos representativos da cultura local e de grupos historicamente marginalizados, utilizando uma linguagem próxima ao contexto de uso, integradora e democrática.

Uma alternativa apontada por alguns autores é complementar os catálogos de bibliotecas, físicas ou digitais, com o uso de folksonomia, ou seja, tags geradas pelos próprios usuários, como as utilizadas em plataformas como o Instagram, por exemplo. A ideia é que, ao permitir que a comunidade usuária inclua tags, isso possa promover maior representatividade e uma linguagem mais próxima ao contexto de uso dos materiais. Outros pesquisadores, no entanto, defendem que essa não deve ser uma solução integral, pois também pode reproduzir visões de mundo dominantes e, em alguns casos, perpetuar preconceitos, caso os usuários incluam termos discriminatórios ou inadequados.

Saiba mais:

Fabíola Rubim Silva

Fabíola é mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos UFSCar (2021-2023). Além disso, é graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal Fluminense (2012) e desde 2014 é bibliotecária-documentalista da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Iniciativas levantadas pela pesquisa de Fabíola Silva que trazem maior representatividade para a linguagem documental:

Mashantucket Pequot Thesaurus

Desenvolvido para a nação tribal Mashantucket Pequot, do estado americano de Connecticut, o projeto incluiu entrevistas, reuniões e correspondências com estudiosos nativos e não nativos. Metoyer e Littletree (2015) relatam que historiadores tradicionais, tribais, antropólogos e cientistas sociais foram consultados para analisar a linguagem e a terminologia utilizadas. Vários participantes eram provenientes de comunidades indígenas.

Māori Subject Headings (Ngā Upoko Tukutuku)

Esta iniciativa visa representar o povo indígena Māori da Nova Zelândia em sua língua nativa. Ela é descrita como bilíngue, bicultural e incorporadora da visão holística de mundo Māori. A equipe envolvida na elaboração e manutenção do projeto inclui membros da comunidade 

Māori, sugerindo sua participação efetiva e contribuição para as fontes terminológicas.

University of Alberta Libraries (UAL)

Farnel et al. (2018) descrevem ações em desenvolvimento para tornar os cabeçalhos de assunto mais inclusivos, equitativos e representativos dos povos indígenas de Alberta, Canadá. Segundo os autores, as consultas à comunidade local são essenciais não apenas para identificar a terminologia preferida, mas também para compreender como o uso de termos inadequados criou barreiras históricas.

Homosaurus

Inicialmente criado como um tesauro em 1997, o Homosaurus é atualmente um vocabulário abrangente de termos LGBTQIA+. O conselho é formado por arquivistas, bibliotecários e pesquisadores de áreas como Informática, Ciência da Informação e Estudos de Gênero e Sexualidade. A iniciativa promove interação com a comunidade por meio de um formulário online e de um Google Group, ampliando o envolvimento e a representatividade.

O trabalho completo pode ser acessado no Repositório Institucional da Ufscar