A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, entre os anos de 1907 e 1912, é um dos momentos mais importantes da história brasileira. O projeto era ambicioso: construir uma ferrovia de 366 quilômetros no coração da Floresta Amazônica, no princípio do século XX. O intuito era criar uma alternativa mais barata para o escoamento da borracha produzida na Amazônia – na época, o Brasil era responsável por aproximadamente 90% da produção mundial do produto.
A estrada de ferro foi construída pela companhia Madeira-Mamoré Railway Company, de propriedade do empresário americano Percival Farquhar (1864-1953). A ferrovia, que existe até hoje e se encontra desativada, liga as cidades de Porto Velho, atual capital de Rondônia, e Guajará-Mirim (RO). No interior da selva amazônica, em um local remoto e isolado próximo à fronteira do Brasil com a Bolívia, formou-se uma sociedade dominada por homens oriundos de mais de 50 nações, como Japão, Grécia, Barbados, Itália, Índia e China. Como a presença de várias doenças era frequente (a exemplo de malária, disenteria e beribéri), a Madeira-Mamoré passou a ser conhecida como a “Estrada da Morte”.
O cotidiano das pessoas envolvidas na obra foi registrado pelo fotógrafo americano Dana B. Merrill. Contratado para reportar a construção da estrada para investidores britânicos, Merrill não se ateve a esse aspecto, e retratou as pessoas envolvidas no empreendimento, desde os trabalhadores que atuavam diretamente nas obras, até empresários. A partir dos registros de Merrill, a pesquisadora britânica Elizabeth Kutesko realizou uma análise das relações e trocas daquela sociedade, por meio da vestimenta das pessoas retratadas. O olhar do fotógrafo capturou as diferenças nas roupas usadas por administradores e médicos, trabalhadores anônimos da construção da ferrovia, seringueiros brasileiros e povos indígenas da região.
Esse é o mote da pesquisa da professora, que concedeu palestra no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na última sexta-feira, 2. A conferência, com o tema “Moda na Fronteira: Roupa Masculina Tropical e o Capitalismo Extrativista na Amazônia Brasileira, 1907-1912”, foi organizada pelo grupo de pesquisa em História e Cultura de Moda, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens (PPGACL) e também pelo curso de Bacharelado em Moda, ambos do Instituto de Artes e Design (IAD). O grupo de pesquisa é coordenado pelas professoras Maria Claudia Bonadio e Elisabeth Murilho da Silva.
Divisão social pela vestimenta
De acordo com Elizabeth, naquela sociedade, a moda era uma ferramenta para sustentar hierarquias de raça, gênero e classe. Eram distinguidos “os engenheiros americanos, as mulheres caribenhas que trabalhavam na lavanderia, os funcionários do governo brasileiro, os trabalhadores qualificados e não qualificados de todo o mundo e os povos indígenas cujas terras estavam sendo expropriadas”.
Por meio das fotografias, em conjunto com diários e memórias, é possível obter informações sobre detalhes da indumentária e as performances que esses homens realizavam. “Os engenheiros americanos são o único grupo que usava ternos de linho branco, e não apenas para lazer. A brancura de suas roupas era mantida pelo trabalho das mulheres caribenhas que trabalhavam na lavanderia a vapor. Assim, a vestimenta masculina branca tinha conotações de brancura racial, autoridade e prestígio social que eram tanto simbólicos quanto materiais, pois dependiam do trabalho de corpos femininos negros”, avalia Elizabeth.
Na análise da pesquisadora, os engenheiros aparentam relaxamento diante da câmera e há familiaridade na forma como Merrill retrata seus compatriotas. “Eles posam em ternos brancos fazendo gestos divertidos diante da câmera, o que demonstra que podem aproveitar o tempo livre e não precisam se envolver no trabalho manual necessário para construir a ferrovia.”
No entanto, quando o fotógrafo registra os trabalhadores migrantes, o foco está nas roupas de trabalho “gastas e rasgadas” e que “contêm vários reparos”. “Vemos itens interessantes, como um colete dos Bálcãs, que fornece ao pesquisador uma pista sobre as rotas de trabalho para a Amazônia. Mas sabemos que, quando um trabalhador morria no acampamento, seus pertences eram vendidos a outros trabalhadores; portanto, não podemos usar itens de vestimenta nacional para essencializar quem os usava”, salienta a professora.
Havia ainda fotografias que retratavam indígenas habitantes da região; pessoas que, de acordo com Elizabeth, trocavam roupas com os trabalhadores e as incorporavam em seus próprios sistemas de vestimenta. “O olhar fotográfico itinerante de Merrill sobre esses diferentes temas é fluido e variado, o que nos permite entender as relações de poder que operavam nessa sociedade fronteiriça e que eram representadas por meio do corpo em forma.”
Testemunha e cúmplice
Dana Bertran Merrill (c. 1887-19?) era um fotógrafo comercial de Nova York. Contratado para documentar o progresso da ferrovia Madeira-Mamoré, para garantir aos investidores britânicos que o projeto seria concluído no prazo, Merrill foi além. A atenção às roupas dos envolvidos com a obra era marcante em suas imagens. Posteriormente, o fotógrafo fez trabalhos para revistas de moda americanas, como Vogue e Harper’s Bazaar. Na avaliação de Elizabeth Kutesko, a câmera de Merrill foi “testemunha e cúmplice” de um projeto americano de exploração da América do Sul. Mesmo assim, a lente captou as contradições do discurso sistêmico. “Como americano, seria fácil entender sua câmera como uma representação direta do olhar imperialista. Mas Merrill apresentou uma representação ambígua da modernidade capitalista que chegava à Amazônia, pois mostrou as inúmeras contradições que se interpunham no caminho do ‘progresso’, como deslizamentos de terra e pistas desmoronadas.”
Descolonizando a História da Moda
Elizabeth Kutesko é historiadora de Moda, PhD pelo Instituto de Arte Courtauld (The Courtauld Institute of Art) e coordenadora do Mestrado em Comunicação de Moda: Estudos críticos e do Bacharelado em Comunicação em Moda: História e Teoria, da Central Saint Martins, faculdade integrante da Universidade das Artes de Londres (University of the Arts London – Ual). A pesquisadora também é autora do livro “Brazil: Globalization and the Representation of the Brazilian Dress in National Geographic” (“Brasil: Globalização e a Representação da Vestimenta Brasileira na National Geographic”, em tradução livre), Editora Bloomsbury, 2018.
Ela viveu no Brasil pela primeira vez em 2008 e pesquisa as representações do país e dos brasileiros por meio da Moda desde o seu doutorado. Para a docente, a diversidade cultural do país se manifesta na moda nacional e as representações estrangeiras do Brasil apresentam uma linguagem unidimensional, geralmente concentrada nas praias cariocas ou na Floresta Amazônica. Elizabeth destaca que há um movimento para descolonizar a História da Moda e incluir outras perspectivas, “mais inclusivas e globais”. Mesmo assim, ainda faltam pesquisas sobre o Brasil.
“O Brasil oferece um estudo de caso fascinante para refletir sobre a interação e o intercâmbio cultural que ocorreu na América Latina como resultado da colonização, do comércio transatlântico de escravos e da imigração. Estou motivada a entender como isso influenciou a moda e as relações de poder que a sustentam, no passado e no presente.”
Segundo a professora do curso de Bacharelado em Moda e historiadora Maria Claudia Bonadio, em 2022, Elizabeth entrou em contato com a intenção de conhecer a docente da UFJF e fazer uma palestra para os alunos da Universidade. A aproximação se deu após Maria Claudia publicar artigo sobre a História da Moda no Brasil na revista acadêmica “Fashion Theory”. Após uma palestra on-line na ocasião, dois anos depois, o encontro pôde acontecer de forma presencial.
“É uma coisa muito rara você ter um pesquisador estrangeiro que busca uma aproximação com um pesquisador brasileiro”, frisa Maria Claudia. Como destaca a professora da UFJF, Elizabeth é docente da Central Saint Martins, uma das mais renomadas escolas de Moda do mundo, da qual são egressos estilistas de destaque internacional, como Alexander McQueen, John Galliano e Stella McCartney. Para Maria Claudia, o contato com pesquisadores estrangeiros é muito importante para os estudantes da Universidade.
“Para que eles saibam o que tem sido feito nessa área de pesquisa de Estudos em Moda. No caso da Elizabeth Kutesko tem uma questão muito importante porque ela é proveniente da Central Saint Martins, que está sempre no ranking das dez maiores escolas de moda do mundo. Ela traz outras possibilidades de pesquisa, para além daquilo que, muitas vezes, parece mais óbvio no universo dos estudantes”, afirma.
Na visita a Juiz de Fora, Elizabeth também visitou o Museu da Moda Social (MMOS) da UFJF, e o Museu Mariano Procópio, onde teve acesso à reserva técnica de fotografias e objetos.
Outras informações
Página do grupo de pesquisa em História e Cultura de Moda no Instagram
Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens (PPGACL)
Bacharelado em Moda
Elizabeth Kutesko