O Brasil soma mais de 58 mil professores negros em Instituições de Ensino Superior (IES). Os dados, referentes ao ano de 2022, foram levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Ainda de acordo com o levantamento, mulheres negras atuando como docentes representam 26.770 pessoas; e homens negros, 31.541 indivíduos. Em comparação, o número de professores brancos atuando no Ensino Superior é mais que o dobro, chegando a 176.778 docentes.
No mês da Consciência Negra, uma das pautas raciais discutidas é relacionada ao quantitativo de professores e professoras negros atuando nas IES, sejam elas públicas ou privadas. Esse índice ainda é baixo, se comparado aos números totais da população negra no país: 55,8%, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira, uma série de medidas e ações vêm sendo encaminhadas no sentido de reverter as desigualdades educacionais provocadas pelo longo processo de racismo existente no Brasil. “Os movimentos por reparações, cotas, cursinhos pré-vestibulares para pessoas negras e carentes visam romper com as inúmeras barreiras que vão desde a discriminação sofrida no interior da escola e da universidade, passando pelas dificuldades materiais e financeiras para a manutenção dos estudos.”
Desafios e avanços: o impacto na contratação de professores negros nas universidades
A Lei nº 12.990/2014 estabelece a reserva de 20% das vagas em concursos públicos federais para candidatos negros. No entanto, sua eficácia no setor educacional, especialmente na contratação de professores negros para universidades, continua sendo uma questão crítica, refletindo a necessidade de estratégias mais efetivas para assegurar não só a inclusão, mas também a representatividade significativa no ambiente acadêmico.
O diretor aponta que, frequentemente, outras instituições de ensino superior aplicam essa reserva percentual em cada concurso individualmente, que geralmente se destina a uma única vaga em uma disciplina específica de um departamento. Em contraste, a UFJF adota a política de contabilizar os 20% de cotas por edital, abrangendo vários concursos simultâneos.
“Isso possibilitou a presença de candidatos negros cotistas. Contudo, é importante ressaltar a relevância das bancas e da comissão de heteroidentificação. Assim como acontece na entrada de estudantes na graduação, observa-se no concurso docente a presença de candidatos não negros que se autoclassificam como negros”, pontua Moreira.
Outro marco relevante aconteceu em 2021, quando o Conselho Superior (Consu) da UFJF aprovou a política de reserva de 50% das vagas em Programas de Pós-Graduação (PPGs) para candidatos provenientes de ações afirmativas. Esta medida abrange grupos diversificados, incluindo pessoas negras, povos tradicionais, indivíduos trans, pessoas com deficiência, além de refugiados, solicitantes da condição de refugiados e imigrantes humanitários, todos agora elegíveis para concorrer a vagas docentes na universidade por meio das cotas.
Conforme estabelecido pela Resolução 67/2021 do Consu, este percentual de 50% deve ser implementado por todos os PPGs da UFJF. A norma prevê uma implantação progressiva: inicialmente, um mínimo de 30% das vagas serão destinadas a ações afirmativas. Este índice aumentará anualmente em 5%, alcançando os 50% estipulados no quinto ano de aplicação da medida. Com mais estudantes negros ingressando nos programas de pós-graduação, espera-se, eventualmente, um aumento correspondente na candidatura de professores negros nas universidades.
Professores da UFJF relatam suas trajetórias
Empossada em março deste ano, a professora Jaqueline Soares, do Departamento de Ciências Básicas da Vida da UFJF-GV, foi aprovada em concurso e entrou na Instituição por meio de cotas. A docente relembra que teve apenas um professor negro durante a graduação, realizada na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). O mesmo aconteceu no mestrado e no doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Perceber a situação desigual fez a pesquisadora se desanimar com a perspectiva de trilhar a carreira acadêmica.
“Quando não se tem uma referência é muito difícil nos mantermos perseverantes em um propósito. Não é só a questão dos docentes, até mesmo o número de alunos negros ou pardos foi muito pequeno durante a graduação e a pós-graduação, incluindo mestrado, doutorado e pós-doutorado. Tive apenas seis colegas negros ou pardos. Mas, felizmente, sempre tive pessoas em meu caminho que me apoiaram e incentivaram e eu não desisti”, relata.
Estudante de escola pública, Jaqueline afirma que, no atual cenário, políticas de inclusão para docentes em universidades e IES ainda são necessárias no Brasil, pois são muitas as dificuldades enfrentadas para a conclusão da graduação e da pós-graduação, requisitos necessários para se tornar um professor universitário.
“Hoje, percebo que minha sala de aula é mais heterogênea do que no tempo em que eu estudava, e sei que muitos só estão em uma universidade federal graças às ações afirmativas implementadas. Porém, além de formar profissionais, temos que trabalhar o ser humano para respeitar o próximo, não julgar pela aparência e aceitar a diversidade”, reforça a professora.
Já o professor Rodolfo Batista, da Faculdade de Educação da UFJF, começou sua trajetória acadêmica em 2008, quando ingressou na graduação em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Após ter concluído o curso de doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o docente prestou concurso para a UFJF e concorreu como candidato cotista, mas foi aprovado no regime de ampla concorrência. Na avaliação de Batista, há muitos profissionais negros com competência reconhecida e que poderiam ocupar vagas de docência em instituições públicas.
Ainda de acordo com o professor, ações como a implantação de cotas em concursos para docentes da UFJF são essenciais por, pelo menos, dois motivos: a desconstrução de traços do racismo estrutural e para que as atuais e futuras gerações possam reconhecer que o espaço universitário também lhes pertence e deve ser ocupado.
“A desigualdade instalada estruturalmente na sociedade brasileira precariza e, muitas vezes, impossibilita que pessoas negras possam alcançar cargos públicos. A universidade pública brasileira, infelizmente, ainda é um ambiente bastante elitizado. E há ainda o racismo das relações cotidianas”, pondera o professor.
Na avaliação de Batista, se questionar sobre a situação de negros na academia não é um tema que está posto naturalmente; pelo contrário, é necessário que a pessoa reconheça seu lugar social de origem, seu pertencimento a um grupo étnico-racial e à uma classe social, além de se opor às desigualdades que lhe são impostas. “Percebo que este é um processo contínuo ao longo da vida e penso, como professor negro em uma universidade federal, em como posso intervir positivamente para que a carreira universitária pública possa ser objeto de interesse de meus estudantes.”
Reconhecer a luta
Professor e pesquisador na Faculdade de Comunicação (Facom) desde 2009, Wedencley Alves se graduou em Jornalismo entre os anos de 1985 e 1990. Naquela época, o número de pessoas negras em universidades era muito inferior ao dos dias atuais, e temas como racismo e discriminação não eram debatidos. O docente relembra o número reduzido de pessoas negras dentro das universidades e, para ele, houve algum avanço.
“Embora não suficientes, as cotas podem contribuir para a diversidade e a inclusão. Hoje, nas turmas, temos em média de dois a quatro alunos negros, algumas delas chegando a até mais. No geral, isso acaba representando cerca de 20% de cada classe. Enquanto eu fui um dos seis a oito alunos negros em um período de cinco anos, hoje temos, em pelo menos duas turmas, algo similar.”
Ao iniciar o mestrado no final dos anos 90 e o doutorado entre 2003 e 2007, o professor recorda ter sentido o mesmo que durante o curso de Jornalismo. De acordo com ele, ainda não se discutia a possibilidade da abertura de vagas para pesquisadores cotistas na pós-graduação. “Se os doutorados representam um nível de excelência pouco acessível aos pesquisadores negros, e as universidades geralmente exigem o doutorado como qualificação mínima, isso cria um filtro social bastante perverso, além da competição que já é intensa.”
Para o docente, as cotas destinadas para o ingresso de professores cotistas terão o mesmo efeito benéfico das cotas para estudantes. Alves considera que um aluno negro que chega ao doutorado venceu barreiras sociais de enorme impacto em sua energia produtiva. “Se temos ainda um enorme desequilíbrio étnico-racial em turmas de doutorado, é preciso que os talentos negros sejam aproveitados ao máximo. Isso não é a defesa de um privilégio, e sim ter sensibilidade histórica. Se aquele aluno negro está ocupando aquele espaço, é porque provavelmente tem enorme capacidade de vencer desafios intelectuais.”
Mesa-redonda sobre vivências estudantis
Nesta quinta-feira, dia 30, como parte das atividades da V Semana de Consciência Negra, ocorrerá uma mesa-redonda com docentes negros da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Durante o evento, os professores compartilharão suas experiências pessoais e trajetórias escolares. A sessão está marcada para acontecer das 17h às 19h, no Anfiteatro das Pró-reitorias. Os interessados em participar devem se inscrever através de um formulário on-line. Além da mesa-redonda, a programação da Semana de Consciência Negra inclui diversas outras atividades, todas com vagas abertas ao público e gratuitas.
Confira a programação completa da V Semana de Consciência Negra da UFJF.