Em 2003, um importante avanço na luta antirracista no país foi concretizado: a implementação da Lei 10.639. A legislação tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, sendo elas públicas ou particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio. Mesmo após duas décadas da sua implementação, embora tenham ocorrido alguns progressos, a aplicação efetiva da lei ainda enfrenta desafios.

“É importante destacar que as diretrizes curriculares não dizem respeito somente à população negra, mas a toda população brasileira. Isso reflete um projeto de sociedade no qual todas as raízes étnico-raciais devem ser reconhecidas e respeitadas. A Lei proporciona uma oportunidade para a ampliação do conhecimento e para o estabelecimento de diálogos”, ressalta a professora, relatora e conselheira da Lei, Petronilha da Silva, ao dirigir-se para uma sala cheia, composta de alunos, professores e pesquisadores. 

Aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Educação discute aplicação da legislação, avanços e novos desafios (Foto: Vivian Armond/UFJF)

O momento foi registrado na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), realizada nesta quarta-feira, 23, na sala Paulo Freire. O evento teve como tema “Conquistas e Desafios na Promoção da Educação para Relações Étnico-Raciais: 20 anos após a Lei 10.639”. A aula ainda marca o início da atividade de Acolhimento da Faced, direcionada aos alunos de graduação e à comunidade acadêmica. 

Além de Patronilha, que participou remotamente, a mesa de discussão contou com a presença da professora e coordenadora de Educação da Prefeitura de Juiz de Fora, Aretusa Santos, e o professor e diretor de Relações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira, os quais conduziram o debate de forma presencial.

Diretrizes curriculares
Em 2004, ano seguinte à implementação da lei, foram adotadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e cultura Afro-brasileira e Africana. Essa resolução foi o desdobramento do Parecer CNE/CP 3/2004, cuja relatora e conselheira foi Petronilha. As diretrizes estipulam as formas de como as questões étnico-raciais devem ser trabalhadas na educação. Uma das orientações é reconhecer e valorizar as raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias e asiáticas. “Inicialmente foi um trabalho de consultas, formal ou informal, com professores, estudantes, coordenadores de educação, pais de alunos, e outros. Foi um processo longo e o mais profundo possível”, conta a pesquisadora gaúcha sobre sua  experiência em participar do processo.

Em 2008, a legislação avançou para fortalecer a luta indígena, com a aprovação da Lei 11.645, que uniu, ampliou e trouxe à tona as lutas das comunidades negras e indígenas no contexto educacional brasileiro. A educadora ainda ressalta que, apesar dos progressos e das discussões em curso, desafios significativos ainda persistem. Um deles é a presença de grupos e indivíduos que mantêm a ideia de hierarquia entre diferentes identidades étnico-raciais e origens. De acordo com Petronilha, essas pessoas ainda possuem um certo nível de desconhecimento em relação à verdadeira composição da sociedade e, acima de tudo, em relação às contribuições dos diversos grupos étnico-raciais na história do Brasil. 

Encontro contou com a participação remota da professora, relatora e conselheira da Lei, a gaúcha Petronilha da Silva (Foto: Vivian Armond/UFJF)

Desafios e conquistas
Para Aretusa, uma das principais dificuldades é fazer com que os professores pensem, criticamente, a implementação da cultura afro-brasileira e africana nas suas salas de aula. Segundo ela, isso se deve à cultura europeia enraizada em nosso país. “Quem são os autores que estavam presentes na nossa graduação? Quando os analisamos, ainda percebemos um viés eurocêntrico muito marcante. Isso dificulta a adoção de uma abordagem crítica e ainda é algo que todos nós tendemos a normalizar”, destaca a professora que se concentra em pesquisas sobre o tema voltadas para a área infantil. 

Em suas observações, ela também nota que os assuntos e estudos sobre a cultura afro-brasileira muitas vezes são limitados a um período específico, como o mês de novembro, durante a Semana da Consciência Negra, sem continuidade ao longo do ano letivo. Embora a Lei preveja um foco nos eixos de história, literatura e artes, segundo ela, sua aplicação deve ser efetivada em todas as disciplinas do currículo escolar.

“Para exemplificar, quando comecei a dar aulas em uma escola que já estudava a implementação dessas disciplinas, apesar de todo o diálogo, ainda existiam questões que eram deixadas de lado. Poucas eram as atividades com o tema, não tinham brinquedos pretos para as crianças. São detalhes que fazem a diferença para a construção da identidade da criança”, pontua. Apesar dos diversos desafios, a pedagoga expressa entusiasmo ao observar que o debate vem aumentando constantemente e a mudança curricular ainda está em processo. 

Para o diretor de Ações Afirmativas, apesar das lutas constantes serem cansativas para muitos, são notáveis diversos avanços ao longo dos últimos anos. “Olhar para essa sala e ver ela cheia, com pessoas negras, é satisfatório, ainda mais para quem vem de uma outra época, onde o cenário era outro. É uma prova de que estamos no caminho.”  Exemplificando esses avanços, Julvan ressalta a Lei de Cotas do Ensino Superior (Lei 12.711/12), que reserva 50% das vagas para alunos provenientes de escolas públicas, sendo metade desse percentual destinada a estudantes negros. 

O professor também destaca a mudança mais recente e notável: a inclusão da temática no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) da UFJF em 2022, tornando obrigatória a incorporação nos currículos de graduação.

Inspiração
O evento também contou com a participação da aluna de Pós-Graduação, Kelly Farias, que compartilhou com a plateia um texto que escreveu durante uma disciplina sobre “Exercícios e Experimentações com Educação: Problematizações Acerca de Formação, Experiência e Invenção”, coordenado pela professora Sônia Clareto. O texto aborda suas percepções acadêmicas e os conflitos raciais que experienciou.

“Durante nossas discussões, exploramos a carência de referências bibliográficas relacionadas a autores negros. Eu estava me sentindo muito incomodada de estar em um lugar, mas não me reconhecer nele, questões como as abordadas na aula de hoje. O texto foi uma maneira de me expressar e externalizar questionamentos importantes. Ficava me perguntando: será que as coisas que são discutidas na academia ficam na academia?”

Apesar dos desafios, ela ainda ressalta a importância do evento, ao observar a sala cheia de ouvintes. “Quando temos uma aula inaugural como essa, falando sobre uma lei que já existe há mais de 20 anos, dentro de um núcleo que forma profissionais para a educação, é como se ganhássemos um fôlego renovado para continuar lutando, sabendo que temos uma rede de apoio”, concluiu Kelly.