Carolina Bezerra critica foco pontual no 20 de novembro e defende projeto político-pedagógico institucional que integre ensino, pesquisa, extensão e gestão a partir uma perspectiva antirracista. (Foto: Carolina de Paula)

A conclusão do ensino fundamental e médio avançou nos últimos dez anos no Brasil, mas a inclusão ainda é insuficiente para reduzir as desigualdades raciais e de renda. É o que mostra um estudo do Todos Pela Educação, que revela disparidades a partir do recorte racial: em 2025, estudantes pretos, pardos e indígenas têm 12,2 pontos percentuais a menos de conclusão que brancos e amarelos, com desigualdades ainda maiores entre jovens pobres.

Nesse sentido, pensar uma educação antirracista é fundamental para uma formação inclusiva e reparadora. É a partir dessa perspectiva que a professora Carolina Bezerra, do Colégio de Aplicação João XXIII da UFJF, defende a necessidade de avançar em políticas estruturais e ações permanentes de formação para a promoção da igualdade racial, para além das iniciativas já desenvolvidas no contexto institucional. 

Para a docente, é necessário que a data simbólica da Consciência Negra seja ressignificada. “Já passou da hora de pensarmos não apenas em um dia da consciência negra, mas em uma ação negra permanente.” Para ela, não é possível que as instituições continuem ignorando pesquisas que mostram dados alarmantes sobre genocídio da juventude negra, evasão escolar de jovens indígenas e afro-brasileiros e violações de direitos humanos. Ela defende que uma transformação estrutural depende de investimento contínuo em formação, especialmente nas licenciaturas, mas também em todos os cursos da universidade.

“Não dá para seguir sem disciplinas que tratem de relações étnico-raciais, gênero e sexualidade. Sem formação, não há mudança.”

Ela destaca iniciativas do João XXIII, como o Festival Cultural Ubuntu, que trabalhou na última edição as “Memórias afro-brasileiras” entre outras iniciativas, mas alerta que esforços individuais não bastam. “Não adianta ter professores isolados realizando atividades. É preciso um projeto político-pedagógico institucional, articulado com ensino, pesquisa, extensão e gestão”.

Carolina também chama atenção para a necessidade de recuperar espaços institucionais de produção de conhecimento, como o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), historicamente responsável pela formação de quadros voltados às relações étnico-raciais, e história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. Para a docente, a ausência do NEAB enfraquece a capacidade da UFJF de promover ações permanentes. “Foi um espaço agregador. Formamos pessoas que hoje ocupam posições estratégicas na sociedade juiz-forana. A universidade precisa retomar essa centralidade.”

Vinte anos da lei 10.639 e avanços insuficientes
Apesar da obrigatoriedade legal estabelecida pelas Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08 (que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena) sua efetivação nas escolas brasileiras enfrenta desafios significativos e permanece, muitas vezes, frágil ou insuficiente. 

Para fortalecer essa formação a docente desenvolve o projeto de treinamento profissional “A formação crítica no ensino de história e geografia: entrecruzamentos de relações étnico raciais, gênero, diversidade e classe”. O projeto surge diante de uma lacuna de formação para que futuros professores possam desenvolver conteúdos focados em história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, articulando esses conteúdos à compreensão histórica, geográfica e às desigualdades sociais, raciais e de gênero. “Temos 22 anos de obrigatoriedade, mas a permanência de estudantes negros e indígenas ainda é um desafio. Sem investimento, não se sustenta política pública.” 

“Um currículo descolonizado reduz silenciamentos, desconstrói estereótipos e cria condições reais de inclusão, porque vincula ensino, conhecimento, território, escola e vida.”

Além da educação básica, Carolina também atua nas pesquisas sobre a forma como a universidade lida com corpos negros, indígenas e dissidentes que chegam ao espaço acadêmico e o que isso revela sobre a estrutura institucional. Segundo ela, há um limite claro para o reconhecimento desses sujeitos como produtores legítimos de conhecimento. “A universidade escuta corpos racializados enquanto militância, mas deslegitima o conhecimento que eles produzem. Há um epistemicídio.” O que para a docente, não é apenas uma questão moral ou ética, mas de um projeto civilizatório de nação. “A academia opera um ‘pacto narcísico da branquitude’, para usar um conceito da Cida Bento. Um pacto que reproduz hierarquias históricas desde a escravidão e das relações de poder arraigadas na sociedade brasileira e juiz-forana. Quando corpos racializados chegam à universidade, há uma resistência institucional em legitimar seus saberes. Essa violência estrutural também é fundadora da academia.”

Carolina finaliza destacando a necessidade de políticas institucionais de curto, médio e longo prazo, com investimento financeiro, acompanhamento de dados e ampliação da representatividade docente. “Para transformar o projeto civilizatório, a universidade precisa olhar para suas práticas, admitir seus pactos e abrir espaço para outras epistemologias. Não basta celebrar. É preciso agir. Um quadro mais diverso traz novas pesquisas, novas demandas e novos valores civilizatórios. Sem isso, a universidade não se transforma.”

Jussara Alves da Silva investiga como práticas pedagógicas vinculadas à memória e à cultura podem reconfigurar a formação de professores no Brasil (Foto: arquivo pessoal)

Griotagens para transformar a formação docente e descolonizar o currículo
A discussão sobre a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, instituída pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, ganha força quando observamos como essas diretrizes chegam (ou deixam de chegar) às salas de aula. Foi nesse contexto que a tese de doutorado da pesquisadora Jussara Alves da Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFJF, investigou como práticas pedagógicas vinculadas à memória e à cultura podem reconfigurar a formação de professores no Brasil. 

O trabalho, intitulado “Griotagens em educação: culturas, saberes e imaginário afro-brasileiro”, investigou como práticas pedagógicas vinculadas à memória e à cultura podem reconfigurar a formação de professores no Brasil. “O tema nasceu das minhas escrevivências como professora negra, supervisora pedagógica e filha de uma ancestralidade que sempre ensinou pela narrativa e pela comunidade. Ao perceber que muitas práticas vivas das escolas, sobretudo das professoras, não cabiam nos modelos eurocentrados de pesquisa, busquei um caminho que honrasse a memória ancestral e articulasse educação, cultura e afroperspectiva”.

Conforme a docente, as griotagens são uma pedagogia formativa que reconhece cada educador como guardião e doador de memórias, histórias e saberes que atravessam o tempo. “Elas atuam na educação valorizando oralidade, ludicidade, corporeidade e espiritualidade como formas legítimas de conhecimento, criando experiências formativas que rompem com a colonialidade do saber. As griotagens convidam a professora e o professor a narrar suas escrevivências, a brincar, cantar, inventar, recriar e produzir sentidos coletivos que fortalecem identidade e pertencimento.”

Para Jussara, as griotagens configuram uma pedagogia que transforma educadores em guardiões de memórias e narradores de saberes, conectando passado, presente e futuro. (Foto: arquivo pessoal)

Para Jussara, ao descolonizar o currículo formativo, abre-se um espaço para que todas as crianças e jovens se vejam como parte legítima da história, da ciência, da cultura e da produção de conhecimento. “Quando o currículo acolhe epistemes africanas, afro-brasileiras e indígenas, ele desafia hierarquias raciais, reconhece a pluralidade dos modos de aprender e afirma que diversidade é fundamento. Um currículo descolonizado reduz silenciamentos, desconstrói estereótipos e cria condições reais de inclusão, porque vincula ensino, conhecimento, território, escola e vida.”

Entre a jaqueira e a memória: como crianças quilombolas constroem identidade étnico-racial

“Todos os dias lidamos com as mazelas do racismo. A escola precisa enfrentá-lo e combater toda forma de discriminação.”

Outra pesquisa que dialoga diretamente com a aplicação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 é a tese “Pretinhos, coquinhos e a jaqueira de Muquém: a construção da identidade étnico-racial das crianças negras e quilombolas”, de José Artur do Nascimento Silva, defendida também no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Desenvolvido na escola do Quilombo de Muquém, em União dos Palmares (AL), região marcada pela memória do histórico Quilombo dos Palmares, o trabalho investiga como crianças negras e quilombolas elaboram suas identidades a partir de marcadores como raça, cor, cabelo e pertencimento ao território. A pesquisa utiliza uma etnografia sensível, combinando atividades com obras de literatura infantojuvenil e conversas com as crianças sobre suas relações com a comunidade e com o espaço que habitam.

A motivação de Artur nasce de sua própria trajetória como criança negra no ambiente escolar. “O racismo atravessou toda a minha vida, e muitas vezes os professores não intervinham. As piadas eram lidas como brincadeira”, relembra. Essa vivência o levou, já como professor e pesquisador, a buscar compreender como as crianças que crescem no quilombo enfrentam o racismo cotidiano e, sobretudo, como constroem identidades positivas. Morador da região onde existiu o maior quilombo das Américas, ele destaca que sua atuação profissional é inseparável de seu compromisso antirracista.

 

Pesquisa investiga como crianças negras e quilombolas constroem suas identidades a partir de marcadores como raça, cor, cabelo e pertencimento ao território (Ilustração: arquivo pessoal)

A tese mostra que, embora o racismo ainda exista no território, os processos de construção identitária das crianças quilombolas se fortalecem na convivência com os mais velhos, nas brincadeiras, no contato com a natureza, nos saberes transmitidos pela comunidade e no orgulho de pertencer ao quilombo. Para o professor, esses elementos compõem um movimento que ele chama de “afroaquilombamento”, no qual a identidade é construída de forma coletiva, afetiva e politicamente situada. “Essas crianças se reconhecem na cultura negra, mas também no território que habitam. É na relação com o lugar, com os mais velhos e entre elas mesmas que afirmam quem são.”

Os relatos das crianças indicam que os episódios diretos de violência racial na escola quilombola são menos frequentes, o que, para o pesquisador, não elimina a presença do racismo, mas revela a força das redes de proteção e afirmação construídas pela própria comunidade. Ao refletir sobre a urgência de currículos e práticas pedagógicas antirracistas, Artur defende que a educação brasileira precisa romper com perspectivas coloniais e construir novos possíveis. “Por muito tempo disseram muito sobre nós perdendo. Agora precisamos falar sobre nós ganhando”, afirma. Para ele, esse movimento começa na escola, no cotidiano das relações e em experiências que valorizem as histórias, memórias e identidades das crianças negras e quilombolas como parte de um projeto educacional de país.