A audiodescrição, descrita como “ver com palavras”, desempenha um papel essencial na inclusão de pessoas com deficiência visual, transformando imagens e narrativas visuais em descrições detalhadas. Esse recurso esteve na pauta dos debates no IV Simpósio Internacional de Inclusão e Acessibilidade no Ensino: Práticas Inclusivas, promovido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), entre os dias 4 e 8 de dezembro.
Organizado pelo Núcleo de Pesquisa em Inclusão, Movimento e Ensino a Distância (Ngime), o evento reuniu especialistas e pesquisadores de diversas áreas para discutir práticas inclusivas e explorar novas perspectivas para a acessibilidade na educação – um campo promissor, mas ainda subexplorado. Entre os destaques da programação esteve a professora Anna Matamala, da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), instituição reconhecida mundialmente por suas contribuições à acessibilidade e à tradução audiovisual.
Na palestra de abertura, intitulada “Acessibilidade: formação transversal, impacto universal”, Anna apresentou iniciativas inovadoras, como o projeto Athena, que incorpora acessibilidade e design universal em currículos universitários, e a plataforma Media Accessibility Platform (MAP). Além disso, a docente destacou o papel da inteligência artificial no futuro da inclusão, evidenciando o potencial transformador da tecnologia nesse campo.
A Diretoria de Imagem Institucional da UFJF fez uma entrevista com a pesquisadora. Confira:
O que a motivou a ingressar nesta área de estudo?
Estudei Tradução e Interpretação na Universidade Autônoma de Barcelona e concluí o Mestrado em Linguística Aplicada com especialização em Lexicografia e Terminologia na Universidade Pompeu Fabra (UPF). Paralelamente comecei a trabalhar como tradutora audiovisual para a televisão catalã, traduzindo para dublagens e locuções. Depois comecei o doutoramento e, em 2004, participei de uma conferência em Londres, onde descobri a audiodescrição. Neste mesmo congresso, juntamente com a professora Pilar Orero e outros colegas, criamos o grupo internacional TransMedia e, em 2005, organizamos o primeiro congresso Media for All. Desde então, realizamos esta conferência de dois em dois anos, que se tornou uma referência internacional no âmbito da acessibilidade dos meios de comunicação social. Também em 2005 criamos o grupo de pesquisa TransMedia Catalunha na Universidade Autônoma de Barcelona e, desde então, temos pesquisado nesta área, atentos à evolução tecnológica e às necessidades dos usuários.
Como as ferramentas de inteligência artificial estão impactando o campo da tradução audiovisual?
Um dos temas mais urgentes atualmente é, sem dúvida, a incorporação da inteligência artificial e como ela pode impactar tanto os profissionais quanto os usuários finais. Como pesquisadora, gosto de entender como podemos usar a tecnologia para facilitar processos e a acessibilidade, sempre com um espírito crítico em relação às questões éticas e aos possíveis vieses que ela apresenta.
Existem também outros desenvolvimentos tecnológicos aos quais devemos estar atentos: no nosso grupo de investigação, TransMedia Catalunha, estamos trabalhando em projetos relacionados a mundos virtuais (ou metaverso) para ver como integrar a acessibilidade em ambientes imersivos. Acreditamos que são um desafio e ao mesmo tempo uma oportunidade para criar um mundo virtual para todos, multilíngue e multimodal.
O campo da tradução audiovisual e da acessibilidade audiovisual é muito amplo e são muitas as competências e conhecimentos que devem ser adquiridos ao longo dos estudos
Há espaço para uma colaboração eficiente entre humanos e máquinas nesse contexto?
Os seres humanos têm colaborado com as máquinas há muitos anos e certamente encontraremos uma maneira de tornar esta colaboração eficiente. Quando comecei como tradutora profissional, não existia Internet nem dicionários eletrônicos, nem memórias de tradução. Os colegas mais velhos começaram a trabalhar sem computador. A tecnologia evolui e temos que nos adaptar, aprendendo a utilizá-la a nosso favor.
Como as preferências do público influenciam o desenvolvimento de soluções acessíveis, como a legendagem e a audiodescrição ?
Quem trabalha e pesquisa em acessibilidade sabe que o slogan “Nada sobre nós, sem nós” é central. É por isso que no grupo TransMedia Catalunha realizamos estudos com usuários finais nos quais recolhemos suas opiniões por meio de grupos focais e entrevistas ou mediante experimentos nos quais testamos se certas estratégias funcionam melhor ou pior.
Como você vê a colaboração entre pesquisadores e indústria?
A universidade não pode estar isolada da sociedade e, portanto, as colaborações entre pesquisadores e indústria, usuários, agentes sociais, administrações, etc, são fundamentais. Uma conexão direta entre universidade e sociedade nos ajuda a identificar necessidades e a investigar soluções. Com isso não estou dizendo que a pesquisa tem de ser marcada pelo mercado, mas sim que a pesquisa tem de ultrapassar os muros da universidade e ser transferida para a sociedade. Essa transferência pode assumir diversas formas. Precisamente este tema é o que abordamos na rede de transferência AccessCat, financiada pelo governo catalão. Nesta rede apoiamos grupos de pesquisa na área da comunicação acessível, para que suas investigações se aproximem do mercado e da sociedade. Trata-se de uma rede no âmbito das Ciências Sociais e Humanas e tem-nos feito refletir sobre as especificidades da transferência nestas áreas.
Quais habilidades e competências são mais importantes para formar profissionais no campo da tradução audiovisual e acessibilidade?
O campo da tradução audiovisual e da acessibilidade audiovisual é muito amplo e são muitas as competências e conhecimentos que devem ser adquiridos ao longo dos estudos, desde competências linguísticas, culturais, de tradução e mediação, até um conhecimento profundo do contexto comunicativo, dos usuários finais e das tecnologias. Estes são apenas alguns dos elementos que nos vêm à mente neste momento, mas desenvolvemos projetos cujo objetivo tem sido precisamente definir as chamadas “skills card” (competências) de determinados perfis. Por exemplo, no projeto Accessible Culture & Training (ACT) – Cultura e Treinamento Acessíveis, em tradução livre – definimos o perfil do coordenador de acessibilidade nas artes cênicas.
A universidade não pode estar isolada da sociedade (…) Uma conexão direta entre universidade e sociedade nos ajuda a identificar necessidades e a investigar soluções
Existe algum projeto em que tenha trabalhado que considere exemplar para ilustrar os desafios e soluções em matéria de acessibilidade audiovisual e tradução?
Seria muito difícil para mim selecionar um único projeto, mas tendo em conta que fui convidada para falar sobre audiodescrição, gostaria de destacar o trabalho que fizemos nos projetos Audio Description: Lifelong Access for the Blind (AdLab) – Audiodescrição: Acesso vitalício para os cegos, em tradução livre – e AdLab Pro, liderados pelos professores Christopher Taylor e Elisa Perego na Universidade de Trieste (Itália). Geramos uma série de recomendações para audiodescrição, bem como materiais didáticos gratuitos.
Um projeto mais recente em que aprendi muito é o projeto Easy Acsess for Social Inclusion Training (Easit) – Treinamento de Fácil Acesso para Inclusão Social, em tradução livre -, sobre linguagem de fácil compreensão aplicada a ambientes audiovisuais. Este projeto também gerou uma plataforma gratuita com muitos vídeos e materiais didáticos que os convido a consultar. Como resultado deste projeto, comecei a investigar com muito mais propriedade o tema da linguagem fácil, colaborando também em normas internacionais sobre o tema.
Atualmente estou trabalhando no projeto WEL e no projeto Enact, ambos sobre linguagem fácil aplicada à linguagem oral. No caso do projeto Enact, pesquisaremos sobre como criar notícias fáceis para que pessoas com dificuldades de compreensão possam acessar a informação.
Outras informações: Núcleo de Pesquisa em Inclusão, Movimento e Ensino a Distância (Ngime).