O Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF, gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – Ebserh) alcança um marco histórico ao realizar a primeira cirurgia de transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na cidade de Juiz de Fora, sendo atualmente o único serviço oficialmente habilitado para a prática no estado de Minas Gerais. O procedimento aconteceu em março. A paciente, Mirella da Silva Ferreira, uma mulher trans de 31 anos, já está de alta e segue vida normal, com acompanhamento regular de equipe multiprofissional.
O êxito no tratamento da paciente se deve a um trabalho de qualidade da equipe multiprofissional que cuida da saúde da população trans no HU-UFJF, afirma o superintendente Dimas Augusto Carvalho de Araújo. “Nosso hospital tem se dedicado a prestar uma assistência de qualidade associada a uma formação de excelência para nossos alunos e residentes”, assegura.
A médica ginecologista Carolaine Bitencourt e o urologista José Murillo Netto são os cirurgiões responsáveis. Eles foram capacitados, visitando serviços experientes na técnica no Brasil, complementando o arcabouço teórico que já tinham, com o intuito de iniciar esse trabalho com segurança e tranquilidade. “É indescritível a emoção e a honra de ver a ciência mais uma vez ocupando seu lugar de mantenedora da vida e da dignidade humana em sua plenitude”, afirma Carolaine.
A paciente teve acesso ao HU pelo fluxo habitual do Sistema Único de Saúde (SUS), dando início ao acompanhamento psicológico, médico, fisioterápico e social, para que todos os requisitos legais, aspectos clínicos e sociais fossem contemplados. Depois, foi orientada quanto à cirurgia: rede de apoio para o pós-operatório, acesso ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), previsibilidade de complicações. O procedimento cirúrgico ocorreu de forma tranquila, com duração de quatro horas e pós-operatório imediato sem intercorrências.
Normalmente o período de internação é de sete dias, sendo o pós-operatório inicial, com cuidados mais frequentes, previsto em torno de 90 dias, e total recuperação em 180 dias, informa a médica. Após este período, pode ser semestral e anual. Mas, no caso de intercorrências, este tempo pode variar. “A pessoa que deseja realizar o procedimento precisa ter esse entendimento. É uma cirurgia de mudança de função urinária, evacuatória, sensitiva e motora, visto que todos os órgãos pélvicos externos e internos são reestruturados. Por isso, o trabalho da equipe multiprofissional é imprescindível para o sucesso global da cirurgia e satisfação da paciente”, ressalta Carolaine.
O urologista José Murillo Netto, especializado em urologia pediátrica e reconstrutora, lembra que a cirurgia de transgenitalização, também chamada redesignação sexual, já é uma realidade em todo o mundo, embora em poucos centros brasileiros. Ele explica que algumas pessoas trans podem apresentar desconforto com características anatômicas e/ou fisiológicas de nascimento. “Sendo assim, poder realizar a cirurgia de transgenitalização traz uma grande mudança em suas vidas. Esse impacto é único e individual. Participar desse marco histórico foi uma grande honra, tendo a possibilidade de melhorar a qualidade de vida das pessoas e realizando seus sonhos”, comemora. O pré-operatório seguiu recomendações do Ministério da Saúde, e a paciente ficou internada por cerca de uma semana, sendo acompanhada nos ambulatórios de ginecologia e urologia nos primeiros meses de pós-operatório.
Também fundamental foi o trabalho da fisioterapia pélvica, ligado diretamente à reabilitação do assoalho pélvico e suas disfunções. “Quando pensamos na cirurgia de redesignação sexual, entendemos que a musculatura pélvica será readequada à sua nova inserção e função”, elucida Priscila Almeida Barbosa, fisioterapeuta pélvica do HU-UFJF. O trabalho foi desenvolvido a partir de um plano de cuidados, que envolveu acolhimento e esclarecimentos pré-cirúrgicos e acompanhamento pós-cirúrgico, oferecendo métodos terapêuticos para trabalhar e prevenir possíveis complicações e queixas, a exemplo de abertura de pontos, edema, fibroses, dor, retenção e/ou incontinência urinária, constipação, prolapsos e estreitamento vaginal, além de fornecer orientação sobre a redescoberta da sexualidade neste novo corpo, enumera.
“Me sinto honrada e muito grata por ter tido a oportunidade de vivenciar o que considero ser o maior desafio profissional da minha carreira, e por ter ciência de fazer parte de um serviço pioneiro na rede pública, que não somente privilegia o atendimento multiprofissional, como também reconhece a importância da atuação positiva da fisioterapia pélvica no processo de transgenitalização”, salienta a profissional.
“Cada pessoa trans tem suas próprias demandas”
A paciente, Mirella Ferreira, conta ter iniciado a transição de gênero aos 23 anos. Ela via a cirurgia de redesignação sexual como algo distante que demandava muito tempo para ser realizada via SUS. “No município, ainda não havia a institucionalização de políticas de saúde pública para a população trans e, financeiramente, não estava ao meu alcance realizá-la na rede privada. Quando o HU começou a atender no Ambulatório de Diversidade de Gênero, fui às consultas em busca de acompanhamento na minha terapia hormonal junto à equipe da endocrinologia e, em uma delas, foi citada a possibilidade de a cirurgia ser realizada. Esse processo durou três anos até eu ser comunicada, em 2023, que seria uma das possíveis pessoas dentro dos critérios exigidos pelo Ministério da Saúde para a cirurgia. Com isso, comecei o acompanhamento pré-operatório”, conta.
Segundo a paciente, o acolhimento da equipe foi bom e com grande sensibilidade. A existência de uma equipe multiprofissional foi um fator diferencial. Para Mirella, a cirurgia representou a obtenção de uma “liberdade inexplicável”. “Antes, eu tinha muitas limitações, das mais simples, como usar um traje de banho, às mais complexas, como ter bloqueio em me relacionar sexualmente. Hoje essa sensação de poder colocar uma peça íntima ou até mesmo poder ir a um clube ou praia de uma forma leve me traz conforto e prazer, olho no espelho com muito mais sentido.”
Mirella destaca, ainda, que “cada pessoa trans tem suas próprias demandas em relação ao corpo”. “O principal ponto é ter autonomia para eleger quais cirurgias fazem sentido ou não para se viver de uma forma plena (não que uma intervenção cirúrgica seja necessária para a pessoa ser respeitada com a identidade com a qual se apresenta). Contudo, estou muito realizada com o meu processo. O mais importante é isso: cada pessoa ter autonomia sobre seu corpo e acesso a esses procedimentos na saúde pública”, completa.
Impactos no ensino e na pesquisa
“É sem precedentes que a nossa instituição esteja vendo nascer uma nova vertente de assistência à saúde. Tanto em termos de formação de profissionais quanto no campo da pesquisa”, pontua a médica Carolaine Bitencourt. De acordo com ela, existe bastante literatura sendo produzida em todo mundo, com o intuito de formatar a atenção em saúde para a população trans, com política de redução de danos, avaliações prospectivas de resultados e melhoria de técnicas, e o HU-UFJF está participando do desenvolvimento de tudo isso.
Para a fisioterapeuta Priscila Almeida, é esperado o desenvolvimento de práticas de cuidado baseadas em evidência científica, por meio do aprendizado e fomento à pesquisa acadêmica com relação a técnicas cirúrgicas envolvidas, complicações potenciais, eficácia das terapias hormonais associadas e avaliação do impacto psicossocial da cirurgia. Com isso, será possível garantir a formação acadêmica e profissional para a prestação de um serviço de saúde mais inclusivo e sensível às necessidades das pessoas transgênero na rede pública de saúde.
O médico José Murillo Netto reforça que “o início de um serviço, de forma estruturada e organizada, como o nosso, nos permite levantar dados e realizar pesquisas de forma sistemática. Além disso, um dos principais ganhos para o ensino na nossa instituição é permitir que todos, alunos, funcionários, profissionais de saúde e professores, possam conviver com as diferenças e combater a transfobia”.
Atendimento multiprofissional
O HU-UFJF foi habilitado pelo Ministério da Saúde como Serviço de Atenção Integral à Saúde da População em Diversidade de Gênero em 2023. A partir daí, foi estruturada uma equipe multiprofissional, que conta com profissionais e residentes do HU, nas áreas de psicologia, serviço social, fisioterapia, endocrinologia, cirurgia plástica, ginecologia e urologia. Também conta com apoio da enfermagem, das enfermarias cirúrgicas e do centro cirúrgico.
Ao chegar no HU, há um primeiro acolhimento e posterior acompanhamento multiprofissional com idade e duração mínimas, entre outros critérios estabelecidos nas normativas vigentes do Ministério da Saúde. O Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada pessoa é construído em harmonia com o seu desejo, interesse, possibilidades e limitações.
Importante frisar que o trabalho multiprofissional é fundamental para o sucesso de todo o processo. Conforme a chefe da Unidade Multiprofissional, Priscilla Batista Noé, “o trabalho realizado pela equipe multi busca fomentar acolhimento humanizado, garantia de direitos e valorização das pluralidades, bem como criar uma ambiência de cuidado integral à saúde da população trans, enfrentando situações de vulnerabilidade subjetiva, social e programática, objetivando a promoção da qualidade de vida e a garantia da dignidade. Outra ação importante foi a realização de capacitações das diversas equipes do HU-UFJF, para garantir um atendimento ético e humanizado”.
Entre os procedimentos hospitalares/cirúrgicos oferecidos pelo Serviço de Atenção Integral à Saúde da População em Diversidade de Gênero estão:
Mastectomia (retirada de seios), Histerectomia (retirada de útero), Cirurgia de transgenitalização (construção de neovagina). Há expectativa de novos procedimentos, a exemplo de mamoplastia de aumento (implante mamário), ooforectomia (retirada de ovários) e tireoplastia (remoção do chamado “pomo-de-adão”), dentre outros.
Como é o fluxo de atendimento?
A porta de entrada são os dispositivos de Atenção Básica (como as Unidades Básicas de Saúde – UBSs), que fazem a marcação na agenda de acolhimento do Ambulatório de Diversidade de Gênero no HU-UFJF. Se for de área descoberta, ou seja, que não tenha UBS ou outro dispositivo de atenção básica próximos, é necessário procurar o PAM Marechal. Para residentes de outras cidades, a solicitação de marcação é através da secretaria de saúde do município da pessoa.