Padre Júlio Lancellotti é reconhecido por seu trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade (Foto: Victor Angelo Caldini/Reprodução Instagram)

A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) concederá o título de Professor Doutor Honoris Causa ao padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo sediada na capital paulista. A aprovação se deu por unanimidade em reunião do Conselho Superior (Consu) da UFJF no mês de outubro.

Lancellotti se notabilizou pela sua luta contínua, há mais de quatro décadas, em favor dos setores vulneráveis da sociedade, atravessando diversos períodos históricos nacionais, incluindo a Ditadura Militar (1964-1985), a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, e o desenvolvimento da Política Nacional da População em Situação de Rua nos anos 2000.

Convidado da cerimônia de abertura da VII Mostra de Ações de Extensão, na última quarta-feira, 22, o sacerdote fez reflexões sobre o papel da universidade pública na luta por uma sociedade mais justa e igualitária. “Acredito que a universidade tem essa vocação: de manter um diálogo permanente e de ver a totalidade, onde somos parte de um todo. Não há como pensar o futuro dos povos e as especificidades das lutas sem considerar o todo. Cada luta, como a dos povos originários e por moradia, tem suas peculiaridades, mas todas convergem para a transformação. Essa transformação não se alcança isoladamente, mas num processo contínuo envolvendo todas as áreas humanas.”

Relação com os princípios da UFJF

A proposta para a entrega do título partiu da Congregação da Faculdade de Serviço Social e foi oficializada em documento assinado pela diretora da unidade acadêmica, Marina Monteiro de Castro e Castro. O pedido foi encaminhado à Secretaria Geral da Universidade, que, por sua vez, remeteu o documento ao pró-reitor adjunto de Gestão de Pessoas, Warleson Peres, relator do parecer favorável ao pedido, analisado pelos integrantes do Consu.

O título se junta a outras honrarias recebidas por Lancellotti, incluindo da PUC-SP e da Universidade São Judas Tadeu (Foto: Victor Angelo Caldini/Reprodução Instagram)

De acordo com a solicitação da Faculdade de Serviço Social, a trajetória de Lancellotti tem relação direta com os princípios da UFJF, de “contribuição para o progresso da ciência e da sociedade, combate ao conservadorismo e defesa do pluralismo, da democracia e da liberdade de ideias e de vida em suas plenas acepções”.

Ainda segundo o texto, o percurso de vida do sacerdote demonstra a sua atuação “veemente” em áreas de dedicação do Serviço Social brasileiro: “o enfrentamento das expressões da questão social, a defesa intransigente dos direitos humanos, a contribuição na construção de políticas públicas, a luta pela construção de uma sociedade igualitária”.

Em seu parecer, o pró-reitor adjunto de Gestão de Pessoas destacou a trajetória formativa de padre Júlio Lancellotti no campo do cuidado: auxiliar de Enfermagem, pedagogo, teólogo, humanista e defensor dos direitos humanos.

“São percursos complementares que reforçam o comprometimento com o outro, com as gerações futuras, e com aqueles que na sua invisibilidade são chamados a participar de um plano maior, de um mundo melhor: a civilização do amor. Nesse lugar, que para muitos aparece no campo das ideias, padre Júlio materializa ações diárias”, escreve Warleson Peres.

O relator ainda acrescenta que o trabalho de Lancelotti vai ao encontro do que uma Universidade precisa produzir: “transformação social, agentes conscientes de seu papel e da necessidade de resgatar a todos, educar a todos, de ser, por fim, ‘ser humano’ e garantir que todos ‘sejam humanos’, com todos os seus direitos assegurados.”

A honraria concedida pela UFJF se somará a outros títulos de Doutor Honoris Causa conferidos ao padre Júlio Lancellotti pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pela Universidade São Judas Tadeu (USJT). Devido a compromissos previamente agendados pelo sacerdote, a entrega da honraria será realizada posteriormente.

Influências no Censo da População de Rua de JF

A produção intelectual e a participação na criação de políticas públicas são frentes de atuação de padre Júlio também destacadas na solicitação da Faculdade de Serviço Social. De acordo com o texto, no processo de elaboração do “Censo e Diagnóstico da População Adulta em Situação de Rua”, realizado em parceria entre a UFJF e a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), foram levadas em conta as críticas formuladas pelo sacerdote a documentos similares produzidos em São Paulo, tanto em relação à construção metodológica quanto às formas de abordagens e percepções da condição de rua.

Registro de Lancelotti quando destruiu pedras sob viaduto de SP, colocadas pelo então prefeito Bruno Covas como forma de impedir que pessoas em situação de rua utilizem o espaço (Foto: Reprodução/Twitter)

“Nós buscamos incorporar no desenho metodológico do nosso Censo em Juiz de Fora as questões destacadas por ele, como a maior proximidade com a população em situação de rua, a construção em um espaço de tempo breve para evitar contagem em duplicidade ou omissões. A construção do Censo e essa parceria com a Prefeitura vêm na esteira da luta e da produção dele”, afirma a vice-diretora da Faculdade de Serviço Social, Viviane Souza Pereira, que foi coordenadora geral dos trabalhos do Censo.

Para a diretora da Faculdade de Serviço Social, Marina Monteiro de Castro e Castro, padre Júlio é uma figura de destaque pela sua militância e como importante intelectual. “Além disso, há a sua trajetória de resistência dentro da Igreja Católica, elemento que foi destacado pelo reitor Marcus David – a importância da sua perspectiva progressista dentro da Igreja.”

Padre Júlio Lancellotti já aceitou a concessão do título de Professor Honoris Causa por parte da UFJF; ainda não há uma data prevista para a entrega da honraria. A lista de professores Honoris Causa da UFJF conta com a presença de personalidades como o filósofo e educador Paulo Freire; o líder indígena, ambientalista, filósofo e escritor Aílton Krenak; a historiadora e expoente do movimento negro Adenilde Petrina; o líder sindical e político Clodesmidt Riani; e o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

O título de Professor Honoris Causa é concedido a personalidades que tenham se distinguido na vida pública ou na atuação pelo desenvolvimento da Universidade, do progresso das ciências, das letras e das artes.

Trajetória

Júlio Renato Lancellotti nasceu em São Paulo em 27 de dezembro de 1948. Antes de se tornar padre, ingressou no seminário em duas ocasiões: aos 12 anos, mas saiu meses depois devido à rigidez do local. Na segunda vez, tornou-se frade e simultaneamente cursou auxiliar de Enfermagem na Santa Casa de Misericórdia de Bragança Paulista. Ele estabeleceu uma enfermaria dentro do seminário, mas foi expulso após a chegada de um mestre mais conservador, por não se enquadrar nas normas estabelecidas.

Seguiram-se, então, a atuação profissional na Enfermagem e o curso de Pedagogia nas Faculdades Oswaldo Cruz. Na PUC-SP fez especialização em Orientação Educacional. Na mesma universidade, foi professor-assistente e também lecionou em outras instituições de ensino superior e ensino básico.

Registro de Lancellotti em meio à pandemia de covid-19 (Foto: Marcelo Renda/Reprodução Instagram)

Na década de 1970, Lancellotti tornou-se funcionário da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), hoje reestruturada como Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Ele já conhecia a instituição, pois seu pai foi funcionário do Serviço de Proteção ao Menor e sua família morou em uma unidade do serviço. Crescendo entre as crianças atendidas, Lancellotti, como funcionário da Febem durante a Ditadura, denunciou os maus tratos aos jovens internos, contando com o apoio de Dom Paulo Evaristo Arns.

Após ingressar na Pastoral do Menor, por intermédio de Dom Luciano Mendes de Almeida, a vocação religiosa voltou a se fazer presente. Em 1980, Lancellotti começa os estudos de Teologia e é ordenado sacerdote em 1985. Após ingressar no clero, padre Júlio continua seu trabalho em favor dos mais necessitados e se aproxima das pessoas em situação de rua no início dos anos 90, mesma década em que fundou as Casas Vida, em São Paulo, destinadas originalmente ao acolhimento de crianças com HIV.

Em meio às homenagens e reconhecimentos, Lancellotti também enfrentou ameaças. Mais recentemente, em 26 de agosto, um bilhete foi deixado na porta da Paróquia São Miguel Arcanjo, localizada na Zona Leste de São Paulo, contendo continha termos ofensivos e insinuava o fim do trabalho social do sacerdote: “seu dia de reinado aqui vai acabar”. O incidente não é o primeiro registro de ameaças na trajetória do padre, que já havia recebido ameaças semelhantes em 2018, levando entidades de direitos humanos a buscar medidas legais de proteção.

Anterior à Honoris Causa, a trajetória de Lancellotti também foi marcada por reconhecimentos. Em 24 de setembro, o Ministro da Justiça, Flávio Dino, concedeu ao sacerdote a medalha da Ordem do Mérito. Conforme informado pelo Ministério da Justiça, a medalha é atribuída a indivíduos que prestaram serviços notáveis ao país, especialmente nas áreas de Justiça e segurança pública.

Outras informações:

Paróquia São Miguel Arcanjo

Perfil oficial do padre Júlio Lancellotti

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