A escolha de Shirley foi motivada pelo papel fundamental que ela desempenha na aproximação da universidade com os povos originários e seus saberes ancestrais. (Foto: Tepó Krenak)

Os Borum do Watu já têm uma doutora para chamar de sua. Uma das filhas e lideranças mais ilustres do povo indígena do Vale do Rio Doce, Shirley Djukurnã Krenak será condecorada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com o título de ‘Doutora Honoris Causa’, que é concedido àquelas pessoas que se destacam em sua área de atuação. Articulada por integrantes da comunidade acadêmica do campus de Governador Valadares, a honraria foi aprovada pelo Conselho Superior (Consu) no último dia 10.

Shirley ao lado de um indígena da etnia pataxó durante o evento Cine Acadêmico. (Foto: arquivo/Comunicação)

A escolha de Shirley foi motivada pelo papel fundamental que ela desempenha na aproximação da universidade com os povos originários e seus saberes ancestrais. Desde a instalação do campus avançado da UFJF em Governador Valadares, a indígena atua como educadora e coordenadora pedagógica em, pelo menos, dois programas de extensão: o Núcleo de Agroecologia (Nagô) e o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH).

Uma das primeiras indígenas do Brasil a ingressar em um curso superior, ainda no final dos anos 1990, Shirley acrescenta agora outro pioneirismo à sua extensa e produtiva biografia. Entre as mulheres oriundas dos povos originários, apenas ela e Eva Potiguara possuem o título de ‘Doutora Honoris Causa’.

Extremamente feliz com a condecoração, Shirley a considera uma conquista histórica para a trajetória de resiliência dos Krenak no Vale do Rio Doce. “Fiquei muito feliz, porque é um reconhecimento não só do que venho realizando – tanto aqui no Brasil quanto fora – mas também da história do meu povo. Um reconhecimento da luta para continuar nessa ação de existência constante na nossa região, porque a história que eu carrego é uma história de luta e de sofrimento muito grande, e 24 horas por dia a gente luta pra buscar paz. E quando vem um reconhecimento tão importante como esse, através de um coletivo da universidade, em que todos estão por dentro da história que eu carrego, de todo o trabalho que eu faço, isso é de uma honra muito grande”, afirma.

Quando estão em pauta  assuntos ligados à causa indígena e ao meio ambiente, Shirley é presença garantida nos eventos e ações da UFJF-GV. (Foto: arquivo/Comunicação)

A expectativa de Shirley é que o título possa impulsionar a luta de todas as mulheres indígenas em busca de uma existência e de um futuro mais dignos. “Quando pensamos no autocuidado do corpo da Terra, a gente pensa no autocuidado do corpo da mulher indígena e das mulheres não indígenas também. E com essa atitude da universidade de reconhecimento da minha pessoa e do trabalho que venho realizando dentro de diversos espaços reforça ainda mais a luta das mulheres indígenas em prol dos direitos humanos. Porque dentro da história das mulheres indígenas e diante do governo passado, as mulheres foram e ainda estão sendo muito maltratadas e sofrendo com feminicídio, estupro, com a falta dos seus territórios, com o garimpo e com a mineração. E sabemos muito bem que nós, mulheres indígenas, somos árvores sagradas nesse território que nos pertence. E a gente se preocupa muito com o futuro, com o futuro das crianças, com o futuro das anciãs”, explica.

Embora aprovado pelo Consu, o título de ‘Doutora Honoris Causa’ ainda não foi oficialmente entregue a Shirley Krenak. Ainda resta à UFJF realizar a cerimônia.

Principal interlocutora da extensão com os povos tradicionais

Se no campus da UFJF em Governador Valadares estão em pauta questões como a causa indígena e a defesa do território e da natureza, pode ter certeza que Shirley estará presente, propondo e conduzindo, ao lado de seus irmãos de sangue e de etnia, debates, cursos e seminários, a maioria dessas atividades focadas na história e nos saberes tradicionais do seu povo.

Na 1ª Jornada Intercultural Indígena. Na foto, ao fundo, o seu pai Waldemar Itchochó Krenak.

Em 2017, por exemplo, ela coordenou a 1ª Jornada Intercultural Indígena, oportunidade em que também ministrou uma palestra sobre colonização e resistência indígena do leste mineiro. Ainda no mesmo ano, foi a responsável por um curso de extensão que tratou da história e cultura dos Krenak. Um ano depois, esteve à frente de outro curso de extensão, dessa vez sobre os povos indígenas de Minas Gerais.

Shirley também foi a responsável pela organização do Encontro de Benzedeiras e Curandeiros do Rio Doce, que teve edições em 2018 e 2019. Pelo menos 415 pessoas participaram dessas ações, que ainda resultaram em publicações e apresentações de trabalhos em eventos importantes, como o Congresso Brasileiro de Agroecologia.

Nem mesmo a pandemia de covid-19 foi capaz de interromper o ativismo e a atuação de Shirley. Foi graças à sua articulação que Pluriversidade do Watu – projeto de extensão do campus Governador Valadares – conseguiu realizar um ciclo de 15 eventos on-line com lideranças de povos indígenas de sete estados brasileiros.

As ações de extensão realizadas por Krenak com o Nagô e o CRDH desde 2017 já envolveram mais de 1700 pessoas de 54 municípios dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, entre indígenas, agricultores familiares, assentados de reforma agrária, quilombolas, profissionais da saúde, terapeutas tradicionais, artistas e educadores populares.

A indígena também faz parte da coordenação pedagógica e do quadro de mestras e mestres do Encontro de Saberes, uma disciplina criada este ano pelo Departamento de Ciências Básicas da Vida do campus avançado da UFJF, e que é ofertada a todos os cursos de graduação.

Professor e extensionista da UFJF-GV, Reinaldo Duque foi um dos articuladores da concessão do título a Shirley Krenak. (Foto: arquivo/Comunicação)

Coordenador do Nagô – programa de extensão com foco, principalmente, em questões ligadas aos povos originários e tradicionais – e professor da UFJF, Reinaldo Duque destaca o simbolismo desse reconhecimento da indígena como doutora. “Antes de qualquer universidade se instalar na região, antes mesmo da própria cidade de Governador Valadares existir e desse lugar se chamar Vale do Rio Doce, esses povos, os Borum, do qual os Krenak são os descendentes, já viviam aqui, construindo, socializando conhecimentos sobre esse território, com seus próprios saberes e fazeres e suas próprias ciências. Então, para além do reconhecimento individual, da trajetória e história de luta da Shirley Krenak, que é uma figura de uma potência extraordinária, uma voz que ecoa longe, esse título também vai para o povo Krenak, como um todo”.

Para Duque, a extensão universitária é extremamente beneficiada pela atuação de Shirley. “Ela contribui muito para a criação desses espaços de educação intercultural dentro da nossa universidade, trazendo a possibilidade de conhecermos a história da região a partir dos próprios povos indígenas, e não dos colonizadores, como a gente costuma ler nos livros de história. Mesmo em Valadares, essa história dos pioneiros da cidade precisa ser questionada, e acho que a partir da ótica de quem descende do povo originário desse território temos um descortinar de uma história verdadeira”, destaca o professor.

Uma trajetória de defesa das causas indígenas e ambientais

Professora, escritora, comunicadora, artista, ativista e líder dos Krenak, Shirley Adilson Silva ingressou na luta em prol dos povos originários ainda bem jovem, influenciada pelo pai, Waldemar Itchochó Krenak, outra importante liderança dos borum. Tal qual a trajetória do seu povo, marcada por luta e resistência, aquela pequena guerreira, que ao redor de uma fogueira, às margens do rio Doce, escutava atenta às histórias dos ancestrais, começou a disseminar esses saberes e a chamar a atenção da população para a realidade do planeta e dos problemas enfrentados pela humanidade, especialmente os indígenas. E não parou mais.

O ‘Adilson Silva’ acabou dando lugar aos codinomes ‘Djukurnã’ e ‘Krenak’, que significam, respectivamente, “espírito novo” e “cabeça da terra”. Carregando o seu povo no nome, no peito e nos punhos, Shirley segue nessa luta constante contra todas as investidas em desfavor das águas dos rios e do meio ambiente e pela preservação dos territórios, da cultura, da história e da existência dos indígenas.

Tão logo concluiu os estudos, alinhou o ativismo com a educação social por meio de projetos como ‘A terra é sagrada’ e ‘Ererré’, em que percorria escolas de Governador Valadares para difundir a cultura e história dos indígenas de Minas Gerais, principalmente os Krenak.

O instituto que leva o seu nome se dedica a lutar pelos direitos dos povos indígenas. (Foto: Instagram/ISDK)

E esse processo de divulgação e defesa dos conhecimentos dos povos originários acabou levando Shirley à literatura. Ela é autora da cartilha ‘Krenak Ererré’, publicada em 2019, e do livro ‘Borum Huá Kuparak’ [que em português recebeu o título ‘A Onça Protetora’], de 2009, que conta também com uma versão em inglês. Além disso, trouxe importantes contribuições para o vocabulário indígena colaborando no ‘Dicionário Krenak-Português’, lançado em 2010, com o irmão Geovani e com Maria Thereza Alves. Ainda na área da educação, Shirley já atuou como orientadora de trabalhos de mestrado e doutorado em diversas instituições de ensino.

Fundou, em 2020, o Instituto Shirley Djukurnã Krenak (ISDK), organização sem fins lucrativos cujo objetivo é desenvolver o engajamento social, pela educação, em prol do meio ambiente e da biodiversidade. Sediada em Governador, a instituição se dedica a lutar pelos direitos dos povos indígenas, atuando, inclusive para proporcionar segurança alimentar de grupos de Minas Gerais. O instituto também desenvolve ações fora do contexto dos indígenas, como em estabelecimentos prisionais e em instituições para jovens em conflito com a lei, numa clara demonstração de que os povos originários têm muito o que ensinar à humanidade.

Em evento realizado em Brasília, ao lado de outras lideranças indígenas. (Foto: Instagram/ISDK)

No campo da militância, Shirley faz parte de importantes instituições brasileiras e internacionais. É uma das fundadoras e coordenadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), ao lado de nomes como Sônia Guajajara e Célia Xakriabá. Já colaborou com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e participou de movimentos como o Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas. E é presença constante na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nos ministérios da Justiça e dos Povos Indígenas e demais órgãos do governo nas pautas envolvendo os povos originários.

Fora do Brasil, já participou de eventos importantes ligados às pautas indígena e ambiental, caso da Convenção das Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU). Através de Shirley, a voz dos povos ancestrais já ecoou em fóruns e discussões na Alemanha, Holanda, Itália, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Egito, México, Chile e outros países. A mensagem dela em todos os lugares por onde passa é uma só: o mundo precisa aprender a escutar as vozes dos biomas, o recado da floresta e a sabedoria dos povos indígenas. E propõe um questionamento: “que tipo de adubo você quer para a Mãe-Terra?”

Shirley é uma crítica ferrenha da mineração e das violações causadas pela Samarco, Vale e BHP com o rompimento da barragem de Mariana, em 2015, e uma lutadora incansável por justiça e reparação do seu povo e dos demais afetados pelo desastre.

Shirley vem percorrendo o mundo com a obra musical ‘Sons que Curam’. (Foto: Instagram/Shirley Krenak)

Toda a força e potência dessa “árvore sagrada” – como Shirley se refere às mulheres indígenas – também podem ser percebidas no campo das artes. Conhecedora de músicas ancestrais do povo Krenak, já cantou e colaborou com Maria Gadú, Chico César e Criolo. É responsável também por instalações artísticas, como o projeto ‘Sons que curam’, presente na Auraldiversities: Listening in the Present e na 3ª Marcha das Mulheres Indígenas. A cria dos borum também foi parar na tela dos cinemas, protagonizando dois documentários sobre a sua vida: ‘Mãe de todas as lutas’ e ‘Kunhã Karaí e as narrativas da terra’.

Como todo texto, este também precisa de um ponto final. Só o texto. Porque a história de luta de Shirley Djukurnã Krenak tem muitas páginas para serem escritas e contadas. O Watu já não é mais doce como outrora. Os krenak e demais etnias ainda sofrem uma série de violações. Mas assim como o Rio Doce e todos os povos originários deste país, Shirley existe e resiste. Indígena guerreira, o que essa “árvore sagrada” mais quer é que o título que recebe possa fortalecer ainda mais a articulação e a história dos borum e “que venham mais mulheres indígenas sendo doutoras pela UFJF”. E finaliza desejando, no idioma krenak, tudo de bom e positivo: “Ererré! Inhauit!”