* Reportagem colaborativa

Projeto Encontro de Saberes é realizado na UFJF desde 2014 (Foto: Carolina Bezerra)

“A ambição é transformar a universidade em lugar de múltiplos conhecimentos e saberes, um lugar de partilha: você não só ensina, mas também aprende. A experiência do curso aqui tem sido essa. Nós temos aprendido bastante a cada turma que entra.”

Quem nos aponta essa perspectiva é Uwira Domingues, indígena Xacriabá e professor na Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA). Antes de conhecer melhor sua vivência na academia como docente de um curso voltado a povos e comunidades tradicionais, vamos trilhar por outras experiências no Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. 

A ideia é discutir e apresentar diferentes formas como saberes e conhecimentos populares e tradicionais circulam pelo ambiente universitário. Resultado do esforço de jornalistas ligados a instituições federais de ensino superior, esta reportagem é uma parceria entre o Jornal da Universidade (UFRGS), o Jornal Beira do Rio (UFPA), o Jornal UFG e o UFJF Notícias.

Saberes que se encontram

Quando sujeitos de diferentes territórios e pertencimentos étnico-raciais se inserem no ambiente universitário não como objetos de pesquisa, mas ocupando a posição de docentes, surgem oportunidades para que a academia se repense e se transforme. Essa aposta está no coração de um projeto nomeado como Encontro de Saberes. O modelo original dessa proposta foi iniciativa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), sediado na Universidade de Brasília, em 2010.

Desde então tem se espalhado por diferentes instituições. Em 2014, a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) passou a ofertar em seu currículo a disciplina “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”, que recebe o apoio da Pró-Reitoria de Extensão. Para o professor do Departamento de Botânica Daniel Pimenta, que integrava a iniciativa em sua concepção, trata-se de uma “potência pedagógica incomensurável”, à medida que permite repensar o modelo de sociedade atual ao valorizar a sabedoria dos povos ancestrais.

Reinaldo Duque acredita que a descolonização do pensamento acadêmico só é possível por meio do diálogo com os saberes tradicionais e outras formas de conhecimento (Foto: Arquivo pessoal)

Neste ano, a disciplina será também ofertada no campus avançado de Governador Valadares da UFJF, a partir do processo de curricularização da extensão. A iniciativa se estruturou por meio da aprovação em edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). O financiamento será utilizado para garantir a participação dos mestres e mestras, bem como a realização de viagens de mapeamento, oficinas e intercâmbios. Em Governador Valadares estão disponíveis 40 vagas para estudantes de graduação. Já na sede são 350 vagas, sendo 250 para graduandos, 50 para pós-graduandos e outras 50 para a comunidade externa.

“Temos uma formação muito limitada, com várias lacunas de conhecimento e aprendizado sobre história e cultura indígena” (Reinaldo Duque)

No campus avançado, já existem ações em parceria com as comunidades do entorno do Vale do Rio Doce, sobretudo por meio do Núcleo de Agroecologia (Nagô), que contempla o projeto Pluriversidade do Watu, nome que honra a entidade sagrada que representa o Rio Doce para o povo Krenak. Além disso, há o trabalho de assessoria a organizações indígenas, quilombolas e camponesas no território do médio Rio Doce. 

Coordenador dos projetos extensionistas, o professor da UFJF Reinaldo Duque acredita que a descolonização do pensamento acadêmico só é possível por meio do diálogo com os saberes tradicionais e outras formas de conhecimento. Dessa maneira, promover esse espaço de educação intercultural ajuda a corrigir as distorções do processo educacional.

“Temos uma formação muito limitada, com várias lacunas de conhecimento e aprendizado sobre história e cultura indígena, que a gente carrega desde a escola, passando pelo nível superior, com profissionais formados sem ter esses conhecimentos, muitas vezes ainda reféns de uma visão distorcida, preconceituosa e pejorativa sobre os povos tradicionais”, completa. 

Notório Saber

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a disciplina Encontro de Saberes tem oferta para todos os cursos de graduação desde 2016. Por ela já passaram cerca de 40 mestras e mestres. Embora seu protagonismo esteja garantido no espaço da sala de aula, fora dela o reconhecimento de sua participação ainda encontra obstáculos na estrutura administrativa da Universidade, como questões ligadas a registro, pagamentos e validação das contribuições desses atores.

O coletivo de docentes que construiu e executa a disciplina lembra que a iniciativa foi “criada com intenções de convidar a Universidade pública, e também a sociedade, a efetivamente promover a inclusão de subjetividades, epistemes e valores plurais e com isso repensar suas práticas de produção e transmissão de conhecimento, ampliando seu impacto social”.

Por isso, propôs a inclusão do reconhecimento de Notório Saber a mestres de saberes de povos e comunidades tradicionais e populares. A resolução que regula o procedimento foi aprovada no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão no ano passado.

Dessa forma, segundo o coletivo, amplia-se a “’legitimidade’, na perspectiva institucional, da presença de mestres de saberes tradicionais e populares e pertencentes a matrizes não eurocêntricas, na medida em que eles se tornam titulados como Doutores, passando a ser reconhecidos em suas especificidades de formação e atuação e na mesma situação de hierarquia que pessoas de trajetórias também reconhecidas como Doutoras – formados/as e/ou atuantes, por exemplo, nos programas de pós-graduação”.

Mestre Gerônimo Franco (Verá Tupã), indígena Mbya Guarani, durante a visita da turma da disciplina Encontro de Saberes a sua aldeia em Barra do Ribeiro – RS (Foto: Marília Stein/Arquivo pessoal)

Na prática, esse reconhecimento assegura aos mestres o fortalecimento de seus direitos enquanto participantes das atividades de ensino, extensão e pesquisa ao prever uma equiparação intelectual e garantir remuneração de modo rotinizado. Os docentes apontam que a concessão de títulos como o Notório Saber remete a uma dimensão tanto política como simbólica.

“Política porque requer rever privilégios estruturais e regimes de discurso e pensamento que não dão conta do mundo real em sua diversidade e complexidade, e também simbólica porque pode significar uma efetiva inclusão, em que sejam ouvidas e possam atuar na transformação também de imaginários, valores, percepções.”

Coletivo de docentes

A formalização do reconhecimento de Notório Saber de mestres de saberes tradicionais e populares teve o pioneirismo da Universidade Federal de Minas Gerais, que desde 2020 já titulou mais de 20 doutores.

Os docentes ressaltam que quem tem a oportunidade de conviver com os mestres “reconhece a riqueza, relevância e complexidade de saberes, ciências, artes, formas de vida que podem ensinar a uma sociedade que se ergueu às custas de seus corpos e conhecimentos, mas que se recusa a reconhecer sua validade e se abrir para um diálogo que some, aproxime e amplifique mundos”.

Carolina Urzúa Talikis, estudante de Museologia que cursou a Encontro de Saberes no último semestre, relata que a disciplina ao mesmo tempo que confirmou a invisibilidade que há em relação a grupos indígenas, por exemplo, também deu a oportunidade de entrar em contato de maneira mais profunda com esses coletivos e suas lutas. “Eu saí impactada e agradecida pela oportunidade de vivenciar.”

Licenciatura intercultural

Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé, do povo Apyãwa (Tapirapé – MT), tornou-se o primeiro professor indígena a tomar posse na Universidade Federal de Goiás (UFG) no dia 13 de fevereiro de 2023. O fato histórico não fora imaginado ou mesmo sonhado por Gilson quando em 2007 ingressou na primeira turma do curso de Educação Intercultural da UFG. 

Com base nas articulações de lideranças e professores indígenas, a licenciatura em Educação Intercultural da UFG começou a dar os seus primeiros passos, de fato, em 2005. Naquele ano, o cacique Raul Hawakati, da Aldeia Buridina, dos Karajá, em Aruanã (GO), Aruani Karajá, também de Buridina, a professora Creusa Krahô, da Aldeia Nova, em Goiatins (TO), e Cassiano Sopero Apinajé, da aldeia São José (MT), entre outros, procuraram a professora da Faculdade de Letras, Maria do Socorro Pimentel da Silva e apresentaram a demanda de um curso superior para a formação de professores indígenas.

“A união é quase impossível, pois são visões e mundos diferentes. Mas é possível coexistir…” (Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé)

O então curso de Licenciatura Intercultural, hoje curso de Licenciatura em Educação Intercultural, se inspirou no pioneiro Núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), criado em 2001, com o qual a professora Maria do Socorro havia colaborado. Entre os parceiros, estavam as Universidades Federais do Maranhão (UFMA) e de Tocantins (UFT), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Centro de Trabalhos Indigenistas (CTI).

Durante cinco anos, Gilson cursou a graduação na área de Ciências da Linguagem, depois participou da primeira edição da especialização em Educação Intercultural e Transdisciplinar: Gestão Pedagógica, seguiu para o mestrado em Letras e Linguística na Faculdade de Letras da UFG e atualmente cursa o doutorado na mesma unidade. Após 16 anos de estudos acadêmicos, o professor da UFG não acredita na união entre os conhecimentos indígenas e os acadêmicos, e sim no seu encontro, na sua coexistência.

“A união é quase impossível, pois são visões e mundos diferentes. Mas é possível coexistir, discutir as ciências de como a universidade entende determinado fenômeno e de como os indígenas entendem.” 

Com o acesso de estudantes indígenas às universidades, as quais mantêm uma produção bibliográfica e epistêmica historicamente afastada da realidade dos povos originários, espera-se uma mudança também no ambiente acadêmico e na produção do conhecimento científico. “Ser o primeiro professor indígena da UFG”, afirma Gilson, “é resultado de uma grande luta coletiva. Entendemos que a partir de então a universidade cumpre o dever de criar, de fato, a interculturalidade. Esperamos que se garanta o espaço para os conhecimentos indígenas.”

Visita de turma da Licenciatura em Educação Intercultural à aldeia do povo Boe Bororo (Foto: Ana Paula Purcina Baumann/Arquivo pessoal)

O curso de Licenciatura em Educação Intercultural da UFG tem duração de cinco anos e é dividido em três matrizes específicas: Ciências da Cultura, Ciências da Linguagem e Ciências da Natureza. Nos dois primeiros anos, o acadêmico estuda a matriz básica para só depois fazer a escolha de qual matriz específica irá se dedicar nos três anos seguintes. A estrutura do curso não conta com disciplinas, mas se organiza por temas contextuais. “As disciplinas são essa caixinha formatada, fechada. Os temas contextuais permitem a abordagem do conhecimento ampliado, alargado, sem fronteira, compartilhado entre saberes e culturas. Possibilita uma abordagem mais dialógica na sala de aula. Nessa perspectiva tudo é assunto da aula. Se aquela temática surgiu no debate é porque ela faz parte do conteúdo da aula”, afirma a professora do Curso de Educação Intercultural, Mônica Veloso Borges.

Ao longo do ano, os acadêmicos indígenas e os docentes da UFG se dividem entre a universidade e a aldeia. O curso é estruturado em quatro etapas anuais: duas na Universidade, normalmente de janeiro a fevereiro, e de julho a agosto; e duas nas aldeias, nos meses de abril ou maio, e outra em setembro ou outubro. Contando com a presença de 30 povos indígenas em seu quadro de acadêmicos, o curso se organiza por meio de Comitês, que reúnem os docentes de acordo com a sua afinidade e conhecimento adquirido a respeito dos povos.

Renovar as definições de etnodesenvolvimento

Essa mesma lógica de tempo aldeia e tempo universidade tem o curso de Etnodesenvolvimento da UFPA, no qual Uwira Domingues é professor. Pertencente à etnia Xacriabá, grupo do tronco linguístico Jê que vive entre Minas e a Bahia, mora há quase 30 anos com os Asurini do Xingu, que é um povo tupi. Atuava voluntariamente na aldeia como técnico em enfermagem e professor quando, em 2003, fez vestibular para um curso intervalar (com aulas condensadas) de Pedagogia.

“Os parentes me convenceram do contrário. Disseram que a gente tinha muitas coisas em comum, às quais a gente devia se prender – a principal delas era a forma como a gente se relacionava com a terra” (Uwira Domingues)

Ao final da graduação, ele e alguns parentes (termo utilizado para se referir a outros sujeitos indígenas, mesmo que sejam de outras etnias e não haja laço consanguíneo direto) fizeram uma proposta para a criação de um curso específico para a formação de povos indígenas na UFPA. Nos trâmites dentro da universidade, estabeleceu-se que o curso só seria aprovado se abarcasse outros grupos de pertencimento.

“Eu era representante aqui da região e era contrário a estudar com esse povo com quem muitas vezes a gente tava em litígio por conta da terra. Os parentes me convenceram do contrário. Disseram que a gente tinha muitas coisas em comum, às quais a gente devia se prender – a principal delas era a forma como a gente se relacionava com a terra. No entendimento dos parentes esses povos eram nossos irmãos de terra.” 

O docente revela que a iniciativa utiliza a noção de grupos de pertencimento. “O que os une é a relação com a terra, o entendimento da terra como mãe ou como sujeito de direito, como uma pessoa com a qual nós partilhamos vida”, reflete.

Pertencente à etnia Xacriabá, Uwira Domingues é professor do curso de Etnodesenvolvimento, sediado na Faculdade de Etnodiversidade, no campus Altamira da UFPA (Foto: Alexandre de Moraes/Arquivo Ascom UFPA)

Esses grupos de pertencimento compõem um perfil bastante variado:  indígenas, de diferentes territórios e etnias, quilombolas, ribeirinhos, pescadores tradicionais, assentados, camponeses e sujeitos provenientes de reservas extrativistas. Esses estudantes acessam o curso por meio de processo seletivo específico a cada dois anos. Neste ano, foram ofertadas duas turmas, uma no campus de Altamira e outra flexibilizada, ou seja, fora da sede, no município de São Caetano de Odivelas, na região nordeste do Pará.

Diretor da Faculdade de Etnodiversidade, que abriga o curso, Marcos Formigosa observa que são sujeitos diferentes que estão ocupando a universidade, com outra perspectiva de mundo.

“A forma como esses sujeitos lidam com o mundo, a relação que eles têm com a rua, que é como eles denominam aqui, a cidade, é muito diferente. A lógica de funcionamento do seu tempo é diferente da lógica de funcionamento do que a universidade exige. Então, eles se adequam por vezes, mas também a gente tem tensionado a instituição para fazer adequações para que esses alunos tenham garantida a permanência para conclusão com êxito desse curso.”

Alguns ajustes dizem respeito ao calendário dos editais para acessar benefícios, que costumam ocorrer fora do período em que os estudantes estão no campus, explica Marcos, que é ribeirinho da Ilha do Marajó e, desde 2016, é professor do curso de Educação no Campo, também ligado à faculdade. 

“A gente tem tensionado a instituição para fazer adequações para que esses alunos tenham garantida a permanência para conclusão com êxito desse curso.” (Marcos Formigosa)

Ele destaca que, ainda que o curso de Etnodesenvolvimento seja uma licenciatura e forme majoritariamente professores, os egressos atuam em diversas frentes: na qualificação de suas associações e comunidades, na construção de projetos de etnodesenvolvimento – numa perspectiva de etnoeducadores, “que têm a possibilidade de pensar numa lógica de ensinar e aprender diferente do modelo cartesiano que a gente encontra na escola básica, mas uma lógica de ensinar em que a cultura, os modos de vida desses sujeitos sejam inseridos no contexto da sala de aula”.

Uwira relata que há entre os egressos mestres, doutores, vereadores, secretários municipais de educação e de saúde. “Isso mostra que o curso tem conseguido alcançar aquilo a que ele se propunha desde o início, que era ser uma ferramenta de emancipação social desses coletivos.”

Sobre a ideia de etnodesenvolvimento, o docente ressalta que não se trata de um conceito canônico. “Ele vai sendo desconstruído e reconstruído a cada turma nova que entra, de acordo com as características dessa turma, porque todo o processo precisa ser refeito”, explica.

“A universidade”, defende Uwira, “precisa se aparelhar melhor para dialogar com esses etnoconhecimentos, porque infelizmente nós ainda vivemos um processo colonizatório. O nativo da terra brasileira assumiu um papel de colonizador do seu próprio povo. Mas à medida em que a universidade consiga estar com o ouvido preparado para não só ouvir mas escutar, ela tem muito a aprender com isso”.

 

*Texto redigido por Felipe Ewald (UFRGS), Carolina Melo (UFG) e Carolina Pires (UFJF), com apoio de Edmê Gomes (UFPA)