Na concepção de Paulo Freire, inexiste uma hierarquia entre saberes, apenas “saberes diferentes”. E para promover o diálogo e a troca entre os diversos conhecimentos tradicionais presentes na região do Vale do Rio Doce, o campus Governador Valadares da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF-GV) passa a ofertar para os estudantes dos seus dez cursos de graduação, a partir deste mês de agosto, a disciplina eletiva ‘Encontro de Saberes’.
Idealizada e organizada por dois programas de extensão da UFJF-GV – o Núcleo de Agroecologia (Nagô) e o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) – a disciplina contará com aulas teóricas e atividades de campo, como o intercâmbio em comunidades tradicionais da região. Os conteúdos será ministrados por mestres indígenas, quilombolas, camponeses, assentados de reforma agrária e ribeirinhos.
A pedagoga e especialista em educação do campo Maria do Carmo Fisika é uma dessas educadoras. Integrante da comunidade quilombola de Ilha Funda, localizada no município de Periquito, suas aulas se concentrarão principalmente na forma como os quilombolas se relacionam com o meio ambiente e com a própria saúde a partir de experiências agroecológicas. “Pretendo abordar técnicas integrativas de relaxamento e partilhar saberes tradicionais da nossa ancestralidade presentes nos nossos dias, bem como a evolução desse conhecimento aplicado hoje a partir de algumas práticas, mas sempre à luz dos conhecimentos adquiridos da nossa ancestralidade”, afirma. Fisika ainda destaca que a disciplina “significa uma oportunidade ímpar na formação dos estudantes” e enfatiza que “o saber acadêmico e o saber popular são instrumentos educativos que se completam.”
E quem também enxerga uma complementariedade entre essas duas correntes de saberes é o agricultor familiar Sebastião Martins Barbosa. Na avaliação dele, o ‘Encontro de Saberes’ ajuda a “quebrar o paradigma de que o conhecimento é só aquele que vem das universidades”. Tião também defende que essa troca proporcionada pela disciplina é uma forma de perpetuar e difundir os conhecimentos populares. “Esse intercâmbio entre o campo e a cidade faz bem ao estudante, pois se ele tem esse conhecimento, vai trazer também para dentro da cidade e vai difundir. Ao mesmo tempo, a gente [homem e mulher do campo] ter o conhecimento técnico, o conhecimento acadêmico, que vai chegar também na roça, é muito importante. Não é só a universidade e nós, camponeses, quem ganhamos. A sociedade também tem muito a ganhar com isso, pois vai ter um conhecimento real”. E o agricultor adverte: “É um monte de coisa que a gente resgata e não deixa morrer. Se ficar só na roça com os mestres e não for para dentro da universidade, o saber popular vai acabar.”
Os estudantes interessados em cursar a disciplina precisam solicitar a matrícula, via Sistema Integrado de Gestão Acadêmica (Siga), até essa sexta-feira, 18, data da primeira aula. O código da disciplina é ‘CBV026’ e as inscrições são limitadas. O ‘Encontro de Saberes’ será ofertada anualmente, com a disponibilização de 40 vagas. Essa primeira oferta prevê 11 encontros, oito deles acontecendo às sextas-feiras, de 14h às 16h, e os demais aos sábados.
“Momento histórico” para a UFJF-GV
Para o professor da UFJF-GV e coordenador do Nagô, Reinaldo Duque, trata-se de um “momento histórico” para o campus, já que pela primeira vez os estudantes terão uma disciplina ministrada por “mestres e mestras das artes e ofícios dos povos e comunidades tradicionais” integrando o currículo. O docente, que desde 2016 tem atuado junto com outros integrantes do Departamento de Ciências Básicas da Vida (DCBV) para incluir a atividade como disciplina, ainda destaca a importância dessa temática nos cursos de graduação:
“A inclusão dos saberes tradicionais e saberes e práticas historicamente marginalizados – como o dos povos indígenas, negros camponeses e ribeirinhos – na universidade e, juntamente com isso, a inclusão dos próprios mestres e mestras, pessoas que são detentores de conhecimento, com trajetórias de vida riquíssimas, com várias lições que se aplicam de uma forma transdisciplinar, que atravessam as fronteiras entre as disciplinas e áreas do conhecimento. Apesar disso, muitos desses mestres não tiveram a oportunidade de acessar a universidade, de ter altos graus de formação formal. Então é uma forma de reconhecê-los, incluí-los e valorizá-los”, frisa Duque.
A comunidade externa também terá acesso aos conteúdos
Mesmo que não é estudante de graduação do campus também poderá ter acesso ao ‘Encontro de Saberes’. Só que no caso do público externo à universidade, a formação tem uma outra dinâmica, sendo ofertada como curso de extensão. Nessa modalidade, as inscrições acontecem pela internet, até essa terça-feira, 15. Basta enviar e-mail para nago.ufjf.gv@gmail.com. No assunto deverá constar “Solicitação de inscrição no Encontro de Saberes” seguido do nome do interessado. Além disso, na mesma mensagem também deverá constar carta de apresentação explicando as motivações em participar do curso.
São 20 vagas para a comunidade, sendo que nessa modalidade a prioridade é para professores das redes municipal e estadual, estudantes indígenas, pretos ou pardos de outras instituições de ensino.
O Encontro de Saberes conta a parceria do Centro Agroecológico Tamanduá (CAT), da Cooperativa Regional de Economia Solidária, da Agricultura Familiar e Agroecológica (Cresafa), do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Governador Valadares e do Instituto Shirley Djukurnã Krenak. A atividade ainda tem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), da Pró-Reitoria de Extensão e do Jardim Botânico da UFJF.