Dedicado aos 200 anos da Independência do Brasil, celebrados em 2022, o concerto desta quarta-feira, 26, às 20h, com entrada gratuita, em mais uma noite do 34º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, apresenta uma faceta ainda pouco conhecida do imperador Dom Pedro I – a de compositor. O grupo Musica Brasilis, dirigido pela cravista e forte-pianista Rosana Lanzelotte e dedicado ao trabalho de resgate e difusão de partituras de obras nacionais, recuperou todas as composições conhecidas do monarca brasileiro e apresenta dois de seus hinos mais célebres, o “Hino Constitucional”, datado de 1821, e o “Hino da Independência do Brasil”.
A obra mais remota que se conhece de D. Pedro é o “Hino a D. João”, escrito em 1817, em homenagem à aclamação de D. João VI, seu pai. Poucos anos depois, o príncipe afirmou seu espírito liberal oferecendo à nação portuguesa o hino em homenagem à sua primeira Constituição, de 1821. Como ressalta Rosana Lanzelotte, o “Hino Constitucional”, também conhecido como o Hino da Carta, cujo texto é também da lavra de D. Pedro, foi adotado como Hino Nacional de Portugal desde maio de 1834, quando D. Pedro reconquista a coroa portuguesa, até a proclamação da República, em 1910. “Impresso e distribuído pelas principais editoras europeias, é certamente a obra de D. Pedro I mais tocada. Todavia, o hino de maior relevo é o Hino da Independência do Brasil, até hoje um dos símbolos do país”, destaca Rosana.
Dele não se conhece a data precisa, mas o hino foi pela primeira vez noticiado na imprensa em dezembro de 1824, informa a cravista. “A única cópia conhecida do punho de D. Pedro refere-se à versão orquestral e pertence ao Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Ambos os hinos foram escritos na tonalidade de mi bemol maior, com os três bemóis formando o triângulo, um dos símbolos maçônicos. Como muitos dos liberais e dos músicos de sua época, D. Pedro foi iniciado à maçonaria.”
Talento
Segundo Rosana, D. Pedro herdou o talento para a música de seus antepassados Bragança, entre os quais o rei compositor D. João IV (1604 – 1656), o fundador da dinastia, que reuniu em sua época a maior biblioteca musical de toda a Europa. “O pai de D. Pedro, o futuro rei D. João VI, apreciava a música sobre todas as artes e cuidou para que os filhos tivessem formação esmerada, pelas mãos do mais famoso compositor português da época, Marcos Portugal (1762-1830)”, explica.
Conforme fontes da época, D. Pedro também era um bom cantor, regia e tocava piano, flauta, clarineta, violino, baixo, trombone, harpa e violão. Iniciou-se na composição pelas mãos de Sigismund von Neukomm (1778 – 1858), compositor e discípulo predileto de Joseph Haydn, que chegou em 1816 ao Rio de Janeiro. “Aluno preferido de Joseph Haydn, Neukomm certamente estimulou o Príncipe a compor, pois as primeiras obras de sua autoria – as seis valsas – compostas no mesmo ano, aparecem repertoriadas no catálogo de Neukomm. Infelizmente, estão perdidas”, lamenta.
À Capela Real, D. Pedro dedicou suas mais alentadas obras. “Os quatro manuscritos de obras litúrgicas de sua autoria – o “Responsório para São Pedro de Alcântara”, a “Antífona de Nossa Senhora”, “o Credo, Sanctus e Agnus Dei da Missa de Nossa Senhora do Carmo” e o “Te Deum” – abrigados no Arquivo da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro – revelam uma escrita musical de notáveis qualidades retóricas, compatíveis com a técnica dos compositores de seu tempo.”
A diretora do Musica Brasilis lembra que, em carta ao pai, o Imperador Francisco I da Áustria, D. Leopoldina aponta o “estilo um tanto teatral” de algumas dessas obras, que seriam “culpa de seu professor”, Marcos Portugal. “Ao contrário da música litúrgica da Europa setentrional, a música dos compositores portugueses da época conferia à liturgia um caráter festivo compatível com o encontro social que a igreja proporcionava”, explica.
Repertório inaugural
Além dos dois hinos de autoria de D. Pedro I, o concerto Música da Independência apresenta algumas obras de seu mestre austríaco, Sigismund Neukomm, um dos mais importantes compositores ativos na corte do Rio de Janeiro na década de 1820.
Entre as 70 obras que compôs enquanto esteve no Brasil, entre 1816 e 1821, Neukomm escreveu as peças apresentadas no programa e que inauguraram os repertórios de câmara no país. Segundo Rosana, o compositor dedicou duas à princesa Maria Teresa, a filha mais velha de D. João: a Sonata (1819) e o Noturno (1817).
“A Sonata para pianoforte, com acompanhamento de violino, inaugurou a forma sonata no país. No terceiro movimento – Allegroalla Turca –, Neukomm brinca com a temática oriental, tão em voga à época. Poderia se tratar de um piscar de olhos a seu conterrâneo Mozart.” O austríaco marcou a chegada ao Rio de D. Leopoldina, em novembro de 1817, dedicando-lhe as “6 Variações com Acompanhamento de Violoncelo”, sobre um tema de Kozeluch, mestre de música da Princesa em Viena. “O Noturno para pianoforte, violino e violoncelo, também dedicado à princesa Maria Teresa, é uma obra-prima do repertório camerístico. Provavelmente era tocado por Neukomm nos saraus que costumava frequentar na casa de seus amigos o barão e a baronesa de Langsdorff”, ressalta.
Além do Musica Brasilis, mais importante grupo radicado no Brasil dedicado à interpretação histórica da música brasileira de princípios do século XIX, o concerto “Música na Independência” tem ainda uma atração especial: é permeado por falas do ator Adam Lee, que interpreta Dom Pedro I nesse importante momento da história brasileira.
Resgate
Os especialistas afirmam que cerca de 80% dos repertórios brasileiros nunca foram editados e permanecem em formato manuscrito abrigados em arquivos de difícil acesso. “O formato manuscrito não é o ideal para performances, além do risco que representa o seu manuseio”, observa Rosana. Por isso é necessário o trabalho de transcrição com o objetivo de realizar edições, e essa foi a motivação para a criação do portal Musica Brasilis, em 2009. Já são mais de cinco mil edições de obras de compositores de todos os períodos e gêneros, consultadas por cerca de 60 mil usuários mensalmente, informa a diretora.
A partir da descoberta do ouro, no início do século XVIII, as cidades mineiras se constituíram como grandes polos de criação musical. “Os festivais de Juiz de Fora possibilitaram a recriação de repertórios de compositores emblemáticos, como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Manuel Dias de Oliveira e João de Deus de Castro Lobo”, relembra a diretora do Musica Brasilis.
Desde 2022, está em curso o projeto Acervo Digital de Partituras Brasileiras, patrocinado pelo Instituto Cultural Vale, com apoio financeiro do BNDES. Através deste projeto está sendo possível ampliar a atuação a diversas regiões do país, principalmente Norte e Nordeste. Além do resgate de obras de compositores célebres dessas regiões, o projeto tem possibilitado a descoberta de repertórios que nunca circularam.
Ao lado de Aurélio Cavalcanti (1874–1916), Eduardo Souto (1882–1942), Homero de Sá Barreto (1884–1924), Henrique Albertazzi (1830-1888), João Itiberê da Cunha (1870–1953), Adolpho Mello (1861–1926) e Euclides Fonseca (1853–1929), diversas compositoras também estão entre os nomes redescobertos, com destaque para Viúva Guerreiro (1858–1936), Cinira Polônio (1857–1938), Georgina Erismann (1893–1940), Judith Ribas (1846–1928), Leontina Gentil Torres (1875–1945), Luiza Leonardo Boccanera (1859–1926) e Júlia Cesarina Ribeiro Cordeiro (1867–1947). “É um trabalho infindável, considerando-se que o Brasil é um celeiro inesgotável de músicos, e fico muito feliz por estar à frente da iniciativa”, afirma Rosana.
O Teatro Paschoal Carlos Magno fica à Rua Gilberto de Alencar, s/n – Centro – Juiz de Fora, MG. A entrada é franca e não há distribuição de ingressos. Todos os concertos noturnos do Festival são precedidos de palestras ministradas pelo professor do Departamento de Música da UFJF, Rodolfo Valverde, com início às 19h, nos mesmos locais das apresentações. Com exceção dos dias 30 de julho e 26 de agosto, em que a palestra ocorre às 18h.
Programa
A recente comemoração do bicentenário da Independência do Brasil oferece a ocasião para celebrar a criação musical no Brasil da época, por meio da valorização da memória do imperador D. Pedro I como compositor. Ainda que seja sempre lembrado como o autor do Hino da Independência, popular até os dias de hoje, sua obra musical é variada e pouco estudada e conhecida do público em geral. Durante o período da Independência, pela primeira vez no Brasil, foram compostas obras sinfônicas e de câmara. É também neste momento que se inaugura a mescla da música clássica com a popular, pelas mãos de Sigismund Neukomm (1778 – 1858), professor de música de D. Pedro e de D. Leopoldina.
Sigismund Neukomm (Salzburgo, 1778 – Paris, 1858)
Sonata em sol maior (Rio de Janeiro, 1819)
Allegro ma non troppo
Andante con moto
Allegroalla turca
Variações sobre um tema de Kozeluch (Rio de Janeiro, 1817)
Noturno (Rio de Janeiro, 1817)
Andante, quasi Adagio
Andantino e Variações
Presto
1. Pedro I (Queluz, 1798 – 1834)
Hino Constitucional (1821)
Hino da Independência (1822)
Rosana Lanzelotte (pianoforte, concepção e roteiro)
Roberto Santamarina (violino)
Lucas Bracher (violoncello)
Adam Lee, ator, como D. Pedro I
Rosana Lanzelotte (BRA) – pianoforte
Além da intensa carreira no Brasil, apresentou-se nas principais capitais europeias. Gravou obras raras de Bach e Haydn, sonatas inéditas do português Avondano e peças de compositores brasileiros a ela dedicadas. Resgatou as obras de Sigismund Neukomm que inauguram o repertório de câmara no país, registradas no álbum Neukomm no Brasil (Biscoito Fino). Nominado para o Latin Grammy, o álbum foi o vencedor do V Prêmio Bravo.
Doutora em Informática, Rosana concebeu em 2009 o portal Musica Brasilis, para o resgate e difusão de partituras de obras brasileiras pela web. Com um acervo de mais de 3.800 peças de compositores de todos os tempos e gêneros, o portal é mensalmente consultado por cerca de 50.000 usuários. Foi agraciada com a Ordem do Mérito do Livro da Biblioteca Nacional, o prêmio “Golfinho de Ouro” do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro e a comenda Chevalier da Ordem das Artes e Letras do governo francês. youtube.com/rosanalanzelotte | linkedin.com/in/lanzelotte | facebook.com/lanzelotte | instagram.com/rosanalanzelotte
Adam Lee (BRA) – ator
Encarnou D. Pedro no vídeo “Música da Independência”, sob a direção de Ernesto Araújo. Participou de diversas montagens no teatro, entre elas “Ayrton Senna, o musical”, “O estúpido cupido”, “Brilha La Luna”. Entre as atuações na área audiovisual, destacam-se as séries “As Canalhas”, da GNT, e “Todo dia a mesma noite”, para a NetFlix. Cursou a Escola Técnica Martins Penna e o curso de teatro da Unirio.
Roberto Santamarina (ESP) – violino
Estudou violino no Conservatório de Santiago de Compostela. Através de uma bolsa do IGAEM, Santamarina se aperfeiçoou com os Virtuosos de Moscou e Yuri Nashuskin. Paralelamente,estudou interpretação histórica na Universidade de Salamanca sob a orientação de Ángel Sampedro, Emilio Moreno e Eduardo López Banzo, integrando a Orquestra Barroca de Salamanca. É integrante e colaborador de vários grupos especializados na interpretação historicamente informada da música antiga, como Martín Códax, Grupo 1500, Favola d’Argo, Il Combattimento, além de ser concertino e diretor da orquestra de câmara Música Acordada.
É membro fundador do Cuarteto Alicerce, grupo criado em 2016, especializado na interpretação histórica da música de câmara de finais do século XVIII, com especial foco na península ibérica e com o qual realizou diversos concertos na Espanha e em Portugal. Desde 1997, desenvolve uma intensa atividade pedagógica como professor de violino da Xóven Orquestra de Galicia e do Conservatório de Santiago de Compostela, onde também é regente da orquestra. Colaborou com o Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora como diretor musical das óperas Il Ballo delle Ingrate, de Claudio Monteverdi (2017) e Vendado es amor, no es ciego, de José de Nebra (2018).
Lucas Bracher (BRA/BEL) – violoncelo
Iniciou seus estudos de violoncelo aos 10 anos, com João Guilherme Figueiredo. Participou de masterclasses de violoncelo moderno com Nerisa Aldrighi, Atelisa de Salles, Hugo Pilger, Antonio Guerra Vicente, Zygmunt Kubala, Gretchen Miller e Dennis Parker. Estudou com Dimos Goudaroulis de 2001 a 2004 na Unicamp. A partir de 2003, iniciou seus estudos de violoncelo barroco em masterclasses com os professores Mime Yamahiro, João Guilherme Figueiredo e Gaetano Nasillo.
Em 2011, foi para a Itália estudar violoncelo barroco com o professor Gaetano Nasillo no Conservatório Guido Cantelli de Novara, onde também participou de oficinas de jazz e improvisação com Marco Detto, Giovanni Hoffer e Alberto Mandarini. Em 2019 ingressou no Conservatório Real de Bruxelas na classe de violoncelo barroco sob a direção de Hervé Douchy e Marc Vanscheeuwijck. Atualmente faz parte de grupos de câmara por todo o Brasil e atua constantemente na Orquestra Barroca da Unirio – OBU, onde participou de importantes projetos, entre eles o projeto com o Centro de Música Barroca de Versalhes – CMBV, cuja função é a difusão do repertório barroco francês pelo mundo.
Outras informações
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