No mundo, 110 milhões de pessoas foram deslocadas à força, segundo relatório divulgado pela Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur) no último dia 14. Os números bateram recorde em 2023 e têm como principal fator a recente Guerra no Sudão e a da Ucrânia. Além desses, outros conflitos ao redor do mundo e os efeitos das mudanças climáticas também têm contribuído para essa triste realidade.
Ainda de acordo com a Acnur, o aumento foi de 19,1 milhões em relação ao ano anterior (2021) – o maior já registrado. Os dados apontam que do total de 110 milhões, 35,3 milhões são refugiados e outras 62,5 milhões de pessoas foram deslocadas internamente em seus países de origem devido a conflitos e violência.
No Brasil há 16 anos, o mestrando em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Guido Wazime conhece de perto essa situação. “A guerra e questões políticas, ideológicas, sexuais e religiosas são os pilares para alguém sair de um país”, explica o estudante, preso e torturado durante a guerra na República Democrática do Congo. O exército de Ruanda invadiu o país em meados dos anos 1990 causando mortes e pânico entre a população, após o genocídio dos tutsis.
Natural da França, Wazime tinha o sonho de ser missionário e conhecer o país onde seus avós nasceram. Teve o primeiro contato com o Congo ainda na adolescência, e retornou ao país logo após a graduação em Filosofia. Foi nessa época que começaram os ataques do exército ruandês. Missionário jesuíta, Wazime atuava na Cáritas Diocesana, instituição parceira do Programa Alimentar Mundial da Organização das Nações Unidas (ONU) e, por enfrentar o esquema local de venda de alimentos e roupas doados, passou seis meses sob o domínio do exército. Foi colocado em um buraco de 20 metros de profundidade e chicoteado centenas de vezes.
Terras brasileiras e preconceito
Após receber ajuda e conseguir fugir do Congo, Wazime veio para o Brasil onde cursou Relações Internacionais pela Universidade Católica de Santos (Unisantos). Também possui formação em filosofia, teologia e direito. Em território nacional, o francês relata que, na cultura brasileira, é comum as pessoas olharem os refugiados com uma visão marginalizada, o que não acontece com imigrantes brancos.
“Quando se fala em refugiado, muitas pessoas, pelo menos aqui no Brasil, pensam que você é pobre, bandido, miserável e veio para cá para se esconder. Já passei por vários estados brasileiros e vivi isso. Quando morei no Paraná, ninguém sentava do meu lado no banco da igreja. Quando eu usava batina, as pessoas ficavam espantadas ao ver um padre negro. Eu era um estranho para eles.”
Tenho liberdade, as pessoas não têm medo de mim, me respeitam pela pessoa que sou e isso é algo que mexe de forma positiva em mim
Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas no exterior e no Brasil, o mestrando se sentiu acolhido ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em História (PPG-História) da UFJF, por meio das cotas destinadas para refugiados. “Consigo ver aqui várias pessoas estrangeiras e negras, assim como eu também sou. Isso é algo que não se vê lá fora. Aqui na UFJF não tem isso. Nunca ninguém aqui me ofendeu, me desrespeitou. Dessa forma, eu me senti e me sinto pertencente a esse lugar. Tenho liberdade, as pessoas não têm medo de mim, me respeitam pela pessoa que sou e isso é algo que mexe de forma positiva em mim.”
Cátedra presta apoio para refugiados e estrangeiros
Atualmente, a UFJF conta com seis alunos refugiados. De acordo com o coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, professor Rodrigo Christofoletti, o foco do projeto são os refugiados que queiram entrar na Universidade e os que já estão na instituição. A Cátedra atua em quatro frentes principais: ensino sobre temáticas vinculadas ao universo do refugiado; pesquisas sobre este universo; extensão da comunidade externa e internacionalização.
Em relação ao ensino, o professor destaca o ingresso e políticas de permanência nos cursos de graduação, além das cotas na pós-graduação e da isenção de taxas para revalidação de diplomas. Houve, ainda, a criação de disciplinas específicas sobre refugiados nos currículos dos cursos da instituição. O ingresso de refugiados é regido pelas resoluções 17/2003, do Conselho Superior da UFJF e 5/2004, do Conselho Setorial de Graduação.
“Trata-se de uma via de mão dupla. A universidade cumpre seu papel de acolhimento e pluralidade e recebe muito com as vivências e experiências desse contingente que tem na admissão a universidade chances de socialização e melhoria de vida concreta. Não se trata de assistencialismo, mas de compreensão de que quanto mais plural for a universidade, mais forte serão seus princípios e bases.”
A Cátedra, que completa um ano de sua instalação em 2023, também incentiva e promove temas ligados à proteção e integração local de pessoas refugiadas no Brasil e no mundo, além de ações de extensão como apoio psicossocial e de saúde mental, atendimento odontológico gratuito, dentre outros.
De acordo com o vice-coordenador Alexandre Cadilhe, as cátedras nas universidades cumprem propósitos, agendas ligadas ao campo do ensino da pesquisa e da extensão – o que é diferente de instituições, como ONGs, que buscam oferecer emprego, moradia ou alimentação.
Cadilhe explica que a presença de pessoas refugiadas em Juiz de Fora decorre das ações de interiorização da migração e do refúgio. E por isso é necessário preparar a UFJF para lidar com a diversidade. “A presença do estudante refugiado não é exclusivamente um tipo de ação reparadora, um tipo ação assistencial. A universidade tem muitos ganhos epistêmicos com a presença de um estudante que está em situação de imigração forçada. Esses alunos colaboram e colocam em diálogo outros saberes e outras demandas e problemas sociais. Tudo isso colabora para o amadurecimento e aprimoramento da própria UFJF.”
Projeto da UFJF para integração de professores refugiados é aprovado em primeiro lugar pela Capes
Os professores Rodrigo Christofoletti e Alexandre Cadilhe estão à frente do projeto “Acolhimento como soft power: o universo dos refugiados entre a educação, a linguagem e o patrimônio”, aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes). A ideia é contratar dois docentes em situação de imigração forçada e de refúgio, a partir de agosto. Além deles, outras duas bolsas serão direcionadas para pesquisadores brasileiros que desejam realizar o pós-doutorado na área correlata entre o patrimônio, a linguística e o universo dos refugiados.
“A presença desses docentes é fundamental para trazer a situação de migração como tópico de pesquisa, de ensino e de extensão, a partir do lugar de sujeitos e não do lugar de objetos de pesquisa. Então é fundamental que tenhamos o próprio sujeito em situação de migração forçada desenvolvendo pesquisas e nos ajudando a pensar em outras formas de compreender essa situação sociopolítica e como colaborar, para esse movimento de intensificação da diversidade sociocultural,” explica Cadilhe.
UFJF e Prefeitura realizam curso de capacitação sobre a população migrante internacional
Entre os dias 19 e 21 de junho acontece o curso de Capacitação sobre População Migrante, Refugiada, Apátrida e Retornada no Teatro Paschoal Carlos Magno e na Casa dos Conselhos. A ação é em comemoração ao Dia Mundial da Pessoa Refugiada, comemorado no dia 20 de junho e é uma parceria entre a Cátedra Sérgio Vieira de Mello/UFJF, a Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a Diretoria Regional de Juiz de Fora, Muriaé e São João Del Rei.
As atividades estão voltadas aos servidores e servidoras da Prefeitura de Juiz de Fora; gestores e gestoras, servidores e servidoras, equipes técnicas das cidades atendidas pelas Diretorias Regionais de Juiz de Fora, Muriaé e São João Del Rei. As inscrições se encerram nesta segunda, 19, através deste link.